segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Raízes da teologia liberal.

Hoje em dia, o termo fundamentalismo está muito em voga, principal­mente em face do fundamentalismo islâmico e de suas ligações com o movi­mento terrorista internacional. Contudo, o fundamentalismo não se restringe aos seguidores de Maomé, mas também tem lugar no seio do cristianismo, em especial, no protestantismo, onde, de fato, o movimento teve seu início. Os fundamentalistas têm sido alvo de inúmeros comentários depreciativos e equivocados, sem que tenha havido uma pesquisa adequada sobre as causas que deram origem ao movimento oposto, denominado Liberalismo Teológico.1 O propósito do presente artigo é preencher esta lacuna, apresentando, sob o enfoque histórico-teológico, um breve comentário das principais idéias dos responsáveis pelo desenvolvimento da teologia liberal.

Liberalismo é um termo muito usado e pouco compreendido. Ele é usado no campo político, social e religioso sem que haja uma definição universalmente aceita. No que se refere ao liberalismo teológico há quem o defina como uma forma de pensamento religioso que empreende a investigação sistemática da fé com base em uma norma diferente da autoridade da tradição.2 Contudo, há definições genéricas, como a das pessoas que dizem serem liberais todos aque­les que têm uma mente mais aberta do que a delas. Para uns, a característica definidora deste tipo de liberalismo é uma vontade de ser libertado da coerção dos controles externos e uma conseqüente ênfase na motivação interior. Porém, para os setores conservadores da Igreja, com os quais o autor se identifica, o liberalismo teológico envolve o comprometimento com uma série de proposi­ções religiosas que deram origem, na realidade, a uma nova religião, que reteve traços da terminologia ortodoxa tradicional, mas que redefiniu radicalmente esses termos, dando a eles um significado especial.

Dentre as várias classificações acadêmicas para o tema em lide, no que se refere à estrutura cronológica do movimento liberal, a opção básica foi pela linha adotada por Thomas Lang, da Universidade de Chicago, editor da con­ceituada Enciclopédia Britânica, que considera a obra de René Descartes, um filósofo do século 17, como o ponto de partida do liberalismo teológico. Para Lang, o liberalismo, já desgastado pelo tempo, esmaeceu a partir de 1930.4 Vez por outra aparecem teólogos que apresentam velhas idéias liberais com novas roupagens; entretanto, esse fenômeno não será alvo de apreciação.

Embora haja indicações antigas da existência de um pensamento liberal, inclusive no Antigo Testamento,5 ele se tornou mais evidente durante o Renas­cimento, quando surgiram indagações sobre o homem natural e seu espírito, e também durante a Reforma. A primeira fase do moderno liberalismo teológico, chamada Racionalismo ou Iluminismo, perdurou até meados do século 18. Os principais filósofos e teólogos dessa fase foram Baruch Spinoza (judeu holan­dês), Gottfried Wilhelm Leibniz e Gotthold Ephraim Lessing (alemães), John Locke (inglês), os escritores e filósofos ingleses conhecidos como Platonistas de Cambridge e também os deístas.

O segundo estágio do liberalismo teológico, o Romantismo, também cha­mado de Modernismo, aconteceu a partir no final do século 18 e perdurou até o final do século 19. Nele se destacam Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, que foram os arquitetos do liberalismo romântico. Na teologia, o maior desta­que coube ao alemão Friedrich Schleiermacher, chamado de pai da moderna teologia protestante. O alemão Albrecht Ritschl dominou a teologia liberal protestante após Schleiermacher, e outro teólogo alemão, Adolf von Harnack, foi o mais proeminente discípulo de Ritschl.

1. FASE RACIONALISTA OU ILUMINISTA

No mundo cristão, a partir do final do século 16, a filosofia, que era con­siderada serva da teologia, se expandiu para além dos limites do pensamento aristotélico e da Bíblia – em parte devido à ciência natural e em parte fruto de reflexões de pensadores como René Descartes (1596-1650). O progresso da ciência, especialmente devido à obra de Isaac Newton (1642-1727), a partir da publicação, em 1687, de seus Principia Mathematica (Princípios de Ma­temática),6 fez com que muitos homens se convencessem do poder da razão e da necessidade de todas as coisas serem testadas por ela, inclusive aquelas relacionadas à área da consciência ou do espírito, que, até então, se pensava serem inacessíveis à razão.

1.1 Racionalismo

No período que marca a virada do século 16 para o 17, alguns teólogos começaram a atacar o calvinismo, através do uso da razão. De uma maneira geral, reagiram à confessionalidade e à disciplina, chamando-as, respectiva­mente, de dogmatismo e intolerância.

Nos anos que se seguiram ao Sínodo de Dort (1618-19), que tratou da controvérsia arminiana na Holanda, os adeptos do uso da razão ou racionalistas, por fazerem oposição ao calvinismo, foram englobados no contexto arminiano, pois, especialmente na Holanda reformada e na Inglaterra puritana, quem não era calvinista era tido como arminiano. Essa classificação generalizada, por algum tempo, serviu para encobrir os racionalistas. Entretanto, o movimento veio à tona e seus adeptos foram chamados de latitudinarians (latitudinários), termo derivado da palavra latina latitudo, inis, que significa amplo ou largo.

O objetivo dos latitudinários era manter a igreja unida com base em uns poucos artigos fundamentais de fé, permitindo uma ampla variedade de doutrinas, formas de governo e de culto. Os principais mentores desse movimento foram os Cambridge Platonists (Platonistas de Cambridge) ou Teólogos-Filósofos de Cambridge (c. 1640-1680) – que diziam que a “razão é um reflexo da mente divina na alma humana”.7

Houve uma sensível mudança no comportamento da sociedade cristã em face da influência do racionalismo. Essa influência fez-se mais presente na Europa continental, pouco afetando, pelo menos inicialmente, as novéis colô­nias inglesas na América, que no século 17 estavam fortemente impregnadas de religiosidade. 

O racionalismo dava ênfase principalmente a dois pontos: (1) liberdade e dignidade, e (2) investigação científica. Os principais filósofos racionalistas da época foram: o judeu holandês Baruch Spinoza (1632-1677)8 e o matemático alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) no Continente Europeu, e, na Inglaterra, John Locke (1632-1704). Para Locke, a prova da verdade era a razoabilidade, no sentido de conformidade com o senso comum.9 Entre os filósofos alemães, o barão Christian von Wolff (1679-1754), membro do grande núcleo pietista que funcionava a partir da Universidade de Halle, desenvolveu uma espécie de teologia matemática, caracterizada pela busca de uma verdade racional e imutável. Halle foi aos poucos se tornando um centro de teologia racionalista entre os protestantes. 

Embora tenha havido algumas contribuições benéficas à sociedade como um todo, o racionalismo provocou graves e perturbadoras conseqüências na vida da igreja, dentre as quais o ateísmo, o declínio da fé e o enfraquecimento da vida religiosa. No campo teológico-eclesiástico, a teologia racionalista tendeu a modificar, e até mesmo destruir, as ortodoxias confessionais protestantes. Os teólogos racionalistas defendiam a tese de que a bondade em Deus não poderia diferir em essência da bondade no homem e, por conseguinte, Deus não pode­ria fazer o que para o homem seria imoral.10 Embora, em sua grande maioria, pelo menos até o final do século 18 os racionalistas aceitassem os milagres do Novo Testamento, eles suspeitavam de tudo que não se conformava com sua visão mecanicista do universo.11

O racionalismo teve grande influência no escolasticismo protestante, cuja teologia começou a tender para um número exagerado de definições precisas, muitas vezes acompanhadas de frieza espiritual. Para os escolásticos, ser um bom religioso era aceitar as doutrinas corretas.

1.2 Deísmo

O deísmo teve início na Inglaterra na primeira metade do século 17, no seio de um grupo de escritores de tendência racionalista, alguns dos quais dis­cípulos de John Locke. Foi um movimento de curta duração, que em meados do século 18 já havia perdido a sua força original. Contudo, foi o estopim de outros movimentos de reação à ortodoxia protestante, em especial na França, Alemanha e Estados Unidos. Dentre os deístas ingleses destaca-se, especial­mente, John Toland (1670-1722), defensor do princípio da lei natural. Toland defendia a idéia de que “a doutrina cristã nunca foi misteriosa e devia ser entendida somente como uma réplica da religião natural”.12 

O movimento deísta surgiu como uma reação à idéia de que o conheci­mento teológico somente poderia ser adquirido através do ensino da Igreja ou da revelação pessoal de Deus, por intermédio do Espírito Santo, sob a alegação de que há uma religião natural, um conhecimento religioso inato em todas as pessoas, ou que pode ser obtido pelo uso da razão. Seu propósito era estabelecer uma religião ao mesmo tempo natural e científica.13 

Dentre os princípios que balizavam o deísmo, destaca-se a crença num Deus transcendente, que está acima e além da sua criação, sendo a causa primeira. Tudo é regido por leis naturais, não havendo lugar, portanto, para revelação bíblica, milagres, providência e encarnação.14 Deus não se envolve mais com o mundo que ele mesmo criou. Cristo foi apenas um mestre e, como tal, não deveria ser cultuado.15 Os deístas criam também que a ética e a piedade eram as virtudes que necessitavam ser desenvolvidas, como culto perene a Deus, sendo a Bíblia um manual eminentemente ético.

Para corroborar o que foi dito resumidamente sobre os princípios do deísmo, podem ser retiradas cinco idéias básicas da obra de Matthew Tindal (1657-1733), Christianity as Old as the Creation (O Cristianismo é Tão Antigo quanto a Criação, 1730), considerada por alguns historiadores como a bíblia deísta: 1) tudo que é reconhecido além e acima da razão é crença sem prova; 2) os piores inimigos da humanidade são os que têm mantido as criaturas na superstição: os sacerdotes, por exemplo; 3) tudo o que é de valor na revelação já foi dado aos homens na religião natural racional, daí o cristianismo ser tão antigo quanto a criação; 4) tudo o que é obscuro, ou está acima da razão, na assim chamada revelação, é superstição e não tem valor; 5) os milagres não são prova real da revelação, pois, ou são supérfluos, explicados à luz da razão, ou são um insulto à perfeita obra de um Criador, que pôs este mundo a girar segun­do as mais perfeitas leis mecânicas e não interfere no seu funcionamento.16

Os deístas, em síntese, substituíram a revelação pela razão e pelos senti­dos, mudando o foco da teologia de Deus para o homem, ou seja, preocuparam-se mais com o sujeito conhecedor, do que com a realidade a ser conhecida. Em seu afã de valorizar o homem, desvalorizaram o pecado. O legado do deísmo não foi, contudo, totalmente negativo, posto que o cultivo da ética e da piedade estimulou, de alguma forma, o empenho dos cristãos em atividades humanitárias e em uma maior tolerância religiosa. 

O deísmo não ficou restrito à Inglaterra, mas migrou para a França, a Alemanha e especialmente as colônias inglesas na América, que, em 1776, obtiveram sua independência, como Estados Unidos da América. Dentre os líderes do movimento de independência, alguns eram declaradamente deístas, como Benjamin Franklin (1706-1790), Thomas Jefferson (1743-1826) e Tho­mas Paine (1737-1809). Este último, com seu livro Age of Reason (Idade da Razão, 1794-1796), popularizou as idéias deístas em seu país.17

1.3 Iluminismo

Iluminismo é o nome do movimento cultural, social e religioso que se desenvolveu na Europa no período que vai da Revolução Inglesa (1688) até a Revolução Francesa (1789),18 ou seja, cerca de 100 anos. Em 1784, o filósofo alemão Immanuel Kant, ao responder a uma pergunta sobre o que era o ilu­minismo, disse que era a chegada do homem à maturidade, ou seja, ao estágio em que o homem pensa por si mesmo, sem a tutela de autoridades externas, tais como a Bíblia e o Estado, que lhe diziam o que devia fazer.19

O objetivo do movimento era iluminar o povo, mediante a razão, contra o obscurantismo da história, da tradição e da sociedade política e religiosa. O alvo era o homem no estado de pura natureza, que devia ser restaurado. Sua fonte principal foi o racionalismo, que forneceu ao iluminismo o método crítico que utilizou com habilidade.20 O seu lema foi Sapere Aude (Tenha a coragem de usar o seu próprio entendimento).

O iluminismo teve origem na Inglaterra, daí passando para a França, Itália e Alemanha. Como foi visto, Locke desenvolveu o deísmo inglês como uma religião natural e racional dos livres pensadores.22 No campo da ética, Locke defendeu a moral natural, racional e autônoma. 

O pleno desenvolvimento do iluminismo ocorreu na França, onde houve o culto da razão, ou seja, a razão humana passou a dominar acima de tudo e de todos. Essa postura enfaticamente racional gerou uma forte oposição a todas as atividades e instituições que não fossem meramente racionais, como a Igreja. A Revolução Francesa, considerada o maior movimento social dos tempos modernos, foi altamente influenciada pelo iluminismo e colocou em dúvida os dogmas da religião cristã, em especial a ingerência da Igreja nas coisas do Estado.

Dentre os principais iluministas franceses destacaram-se, inicialmente, Jean D’Alembert (1717-1783) e Denis Diderot (1713-1784), responsáveis pela editoração da Enciclopédia,23 que foi um poderoso instrumento para a difusão das idéias iluministas, não só na França, mas em outros países. Outra figura de destaque foi François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido como Voltaire, colaborador da Enciclopédia e autor de vários tratados na área da filosofia. Voltaire professava um teísmo baseado na ordem e na realidade do mundo, e pregava a tolerância para todas as religiões, exceto para a oficial, imposta. Não menos importante que Voltaire foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778),25 autor do Contrato Social, que tanto influenciou os chamados Pais Fundadores da Independência Americana. Rousseau repudiou a doutrina cristã da queda, afirmando:

Todo homem é nobre por natureza.26 Ele nasceu livre, mas em todos os lugares se acha em cadeias. Sua escravidão deve-se à corrupção da sociedade, para a qual a religião deve arcar com boa dose da culpa.[...] Assim, as crianças devem ser criadas fora da influência danosa da Igreja.27 

O fundador do iluminismo na Alemanha foi Christian Wolff, responsável pela divulgação do racionalismo de Leibniz. Foi no Sacro Império Germânico que a teologia iluminista alcançou o seu maior desenvolvimento,28 em especial o deísmo de Locke, através das obras de Hermann Reimarus (1694-1768) e Moses Mendelssohn (1729-1786).

Reimarus é considerado o precursor, no âmbito da teologia histórica, do tema do Jesus Histórico, através do livro Apologie oder Schutzschrift für die vernunftigen Verehrer Gottes (Apologia dos Adoradores Racionais de Deus), no qual retratou Jesus como um pregador simples da Galiléia, cujo ensinamento moral se misturou com a política e a escatologia, e que morreu desiludido, tendo procurado em vão estabelecer o reino de Deus na Terra. Disse ainda que o cristianismo se baseia nas alegações fraudulentas da ressurreição e da segunda vinda de Cristo, que os discípulos teriam inventado depois da morte de Jesus.29 

Para Reimarus, os livros da Bíblia deveriam ser lidos e estudados como todos os outros livros. Conseqüentemente, a história da vida de Jesus deveria passar pelo crivo da razão, segundo o qual todos os fatos e circunstâncias estariam obrigados a ser considerados exclusivamente à luz da evidência dos Evangelhos. Essa atitude se tornou típica do iluminismo teológico, que foi, portanto, responsável pelo novo tratamento dado pelos historiadores e teólogos a detalhes da vida de Jesus, inclusive verificando aspectos ligados à credibi­lidade dos escritos evangélicos.30

Muitos estudiosos consideram que o maior expoente do iluminismo alemão foi Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), autor de Die Erziehung des Menschengeschlechts (A Educação do Gênero Humano, 1780). Essa obra expressa a sua crença na perfeição da raça humana e na perspectiva do desen­volvimento de uma consciência moral que poderia conduzir a humanidade a um estágio nunca atingido de irmandade universal e liberdade moral, superior a todos os dogmas e doutrinas. Para Lessing, “a cultura, a ciência, a verdade não é uma posse, e sim uma perene investigação, segundo uma concepção historicista, a que se submete também a religião, inclusive o cristianismo”.31 Ele ainda considerava que as principais religiões eram expressões diferentes da única religião verdadeira, cujo papel é fornecer uma educação moral para a raça humana, ensinando todos os homens a viverem como irmãos.

O iluminismo exerceu significativa influência, embora negativa, sobre o cristianismo de um modo geral, mormente sobre o movimento evangélico, no século 19. Isso porque a ênfase dos iluministas estava centrada no homem, colocando Cristo e seu evangelho em segundo plano. Tal entendimento os levou, naturalmente, a uma racionalização da teologia e, conseqüentemente, deu azo ao surgimento, identificação e desenvolvimento de várias tendências religiosas e filosóficas. 

Os liberais iluministas rejeitaram o antigo aforismo “todo poder emana de Deus”, mesmo com o acréscimo tomista “para o povo”.32 Assim, os gover­nantes, mesmo os reis ou príncipes de sangue, não têm direitos inalienáveis de governo. Pelo contrário, o governo deriva sua autoridade do consentimento do povo governado. É interessante a comparação entre a concepção de Calvino sobre o Estado e o pensamento iluminista. O primeiro entendia que o Estado era um instrumento estabelecido por Deus para a manutenção da moralidade e para a promoção da verdadeira religião, razão pela qual a Genebra calvinista, no período de 1555 a 1564,33 é um exemplo clássico de moderna teocracia. A concepção dos iluministas era substancialmente diferente: embora reco­nhecessem a Divindade, propunham alvos essencialmente humanistas para a sociedade. 

Nos campos político e social, o iluminismo exerceu forte influência sobre dois movimentos que marcaram a história recente da civilização ocidental: a Revolução e Independência Americana (1775-83) e a Revolução Francesa (1789-99). A Revolução Industrial também pode ser considerada uma das filhas do iluminismo.34 Ainda com base no pensamento iluminista, houve um notável desenvolvimento da maçonaria, em especial na Europa e nos Estados Unidos. 

Não obstante as diferenças essenciais assinaladas, o iluminismo tinha pelo menos um ponto em comum com o movimento evangélico: a ética moralizadora da sociedade. Isso pode ser constatado na leitura da obra de Matthew Tindal, para quem “a moralidade é o alvo da religião”.35 Nessa mesma linha moralizante também se enquadra o racionalismo neologista de Johann Semler (1725-1791), que afirmou: “Em contraste com a teologia existe a religião, que significa a piedade viva que coincide com a consciência religiosa universal”.36

 2. FASE ROMANTISTA OU MODERNISMO

Os diversos movimentos de reação à ortodoxia estão interligados entre si, de modo que fica difícil discernir fronteiras específicas, quer quanto à época de sua aplicação, como no que se refere ao seu conteúdo. Dessa forma, se constata que é muito tênue a linha divisória entre as fases e subfases do liberalismo teológico. Na realidade, o modernismo nada mais foi que uma continuação de seus antecessores: racionalismo, deísmo e iluminismo.37 

2.1 Kant

O modernismo teve origem na Alemanha, para onde haviam convergido várias correntes teológicas e filosóficas no século 19. Quem deu início a esse tipo de teologia liberal foi Immanuel Kant (1724-1804), especialmente através do livro Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft (Religião dentro dos Limites da Razão Somente, 1793). Kant se mostrou simpático à ênfase deísta apoiada no tripé Deus, virtude e imortalidade, mas divergiu do iluminismo no que tange ao propósito da vida, colocando em primeiro lugar a ética absoluta, ao invés da felicidade. Com base nessa premissa, ele se posi­cionou ante a religião enfatizando que a religião moralista da razão é a única necessária, pois produz modificação no caráter de tal modo que “o mal radical do homem é derrotado e o bem é trazido à tona”.38 Para Kant, o princípio básico da moralidade é o imperativo categórico, o qual é universalmente conhecido. 

As idéias de Tindal estão bem presentes no pensamento de Kant, quando ele afirma que “a verdadeira religião é natural e universal. Ela não é baseada em uma revelação particular ou histórica, mas, ao contrário, na própria natureza da vida humana”.39

Segundo o modelo de Kant, o cristianismo, embora seja expressão de uma religião natural, é também uma religião particular e histórica, que tem certas características que nenhuma outra religião possui. Porém, não é a religião verdadeira, pois a verdadeira religião, sendo natural e universal, não pode ser fundada por qualquer pessoa, no caso, Jesus de Nazaré. Nesse contexto de “nem sim, nem não, muito pelo contrário”, Kant vai misturando o sagrado e o profano com um linguajar complicado próprio de um erudito que escreve para si mesmo. Nesse particular, o filósofo Umberto Padovani, ao concluir sobre a obra de Kant, assim se expressa:

Muito frágil é a parte construtiva do criticismo. Resta apenas a parte destru­tiva pela qual Kant, mais talvez que nenhum outro contribuiu para fomentar o ateísmo, o racionalismo e a incredulidade do século passado. A sua grande construção filosófica é contraditória no seu plano, falsa nos seus fundamentos, absurda e incoerente nas suas conclusões.40

Foi grande o impacto da obra de Kant no desenvolvimento posterior da teologia. Alguns teólogos, notadamente Ritschl e sua escola, seguiram os pas­sos de Kant, tentando basear a religião nos valores morais. Outros divergiram em alguns aspectos, procurando encontrar suas próprias respostas às questões fundamentais da existência humana e do seu relacionamento com a Divindade. Nesse campo encontra-se Schleiermacher.

2.2 Schleiermacher

O luterano Friedrich Schleiermacher (1768-1834) é talvez o mais influente teólogo alemão do século 19, sendo considerado o fundador da moderna teologia protestante. A influência do seu pensamento no campo da teologia histórica é significativa, considerando-se o rol de simpatizantes entre renomados historiado­res eclesiásticos, tais como Robert Nichols, Williston Walker e Justo González. Para Walker, por exemplo, Schleiermacher “deu à teologia nova base e à pessoa de Cristo um significado em grande parte desconhecido em seu tempo”.41

A maior obra de Schleiermacher no campo da teologia dogmática foi Der Christliche Glaube (A Fé Cristã, 1831), onde, entre outros, encontra-se o seguinte conceito sobre religião: O Absoluto está em tudo. Deus está, por conseguinte, em Seu mundo. O homem é em si mesmo [...] um microcosmo, um reflexo do universo. Em contraste com o que é universal, absoluto e eterno, sente-se finito, limitado e temporário – numa palavra, dependente. Esse sentido de dependência é a base de toda religião. Lançar uma ponte sobre o abismo entre o universal e o finito, pôr o homem em harmonia com Deus, eis o alvo de todas as religiões [...]. Portanto, as religiões não devem ser divididas em falsas e verdadeiras, mas quanto aos seus relativos graus de eficiência. Todos os progressos da religião na história são verdadeira revelação; em algum sentido, uma plena manifestação do Deus imanente.42 

Contudo, esse Deus imanente não intervém na natureza e tampouco opera milagres através dos homens. Como se pode notar no texto reproduzido, as idéias de Schleiermacher, embora parecidas, diferem substancialmente daque­las esposadas pelo apologista Justino Mártir (c.100-c.165). O teólogo alemão afirmou que o cristianismo é a melhor das religiões, dando a entender que outras existem igualmente boas. O mestre Justino, em seu tempo, afirmara: “O cristianismo é a verdadeira filosofia!”.43 Não há, pois, outra menos verdadeira, todas são falsas! 

Ao tentar eliminar da teologia todo e qualquer resquício de dualismo, Schleiermacher fez as seguintes afirmações a respeito de Deus: 1) Deus e o mundo são, em última análise, idênticos; 2) Deus e o conceito natural são um; e 3) Deus é a única substância indivisível. No que se refere à Trindade Santa, ele diz: “O Filho e o Espírito são simplesmente formas de revelação desta substância. O Espírito Santo é identificado como o espírito público que aviva a comunhão dos crentes”.44 Assim, o teólogo alemão se aproximou da heresia sabelianista ou modalista.45 

Influenciado pelo romantismo da época, Schleiermacher rejeitou a idéia do diabo ou de espíritos maus, pois a criação não pode ser combinada com a idéia de um poder espiritual mau e, em conseqüência, nenhuma realidade ou influência pode ser atribuída ao diabo. O mal não pode ser concebido como algo hostil a Deus. Assim, as histórias do Éden não devem ser interpretadas como historicamente verdadeiras, mas devem ser vistas como expressões válidas da consciência de Deus e não devem ser ignoradas.46 Quanto à doutrina do pecado, ainda de modo romântico, Schleiermacher considerava que “o espírito é o que há de mais elevado no homem e não pode ser considerado algo mau. O pecado é simplesmente a carne em oposição ao espírito”. Dessa forma, ele rejeitou o conceito de pecado como desobediência a Deus ou à sua lei, a partir de Adão.

A cristologia de Schleiermacher é peculiar. A união do Divino com o humano recebeu sua expressão perfeita na pessoa de Cristo. Há comunica­ção de atributos somente no sentido da natureza divina para a humana, que permanece passiva. Esta união, entretanto, não é dependente da doutrina do nascimento virginal, a qual não deve ser considerada literalmente. O mesmo raciocínio se aplica às doutrinas da ressurreição, ascensão e segunda vinda.47 Ao expressar esses conceitos, Schleiermacher não difere substancialmente dos teólogos racionalistas. 

Ainda no campo da cristologia, Schleiermacher ataca frontalmente a or­todoxia, ao afirmar que a obra de Jesus (sofrimento, morte e ressurreição) nada significa para a salvação.48 Para ele, não se pode atribuir qualquer significado ao sofrimento de Cristo na cruz, sendo que a história da paixão serve apenas como exemplo e ilustração da perseverança em meio ao sofrimento. Bengt Hägglund considera que tal conceito aproxima Schleiermacher dos gnósticos, posto que estes também negligenciavam a morte e ressurreição de Cristo.49 

No que tange à hermenêutica bíblica, o enfoque principal de Schleierma­cher não era teológico, mas psicológico. Ele preconizava que os intérpretes da Escritura deveriam tentar entender as idéias de seus autores, que eram simples seres humanos. Daí a não aceitação de que as Escrituras fossem a Palavra de Deus inspirada. Sua pressuposição básica é que existe um único espírito ou consciência comum que une todos os seres humanos e tal espírito possibilita a correta interpretação. Dessa forma, as idéias de Tindal parecem brotar em seu subconsciente. 

2.3 Ritschl e sua escola

Uma teologia liberal até certo ponto nova e original, a teologia do valor moral, surgiu em fins do século 19 e nos primeiros anos do século 20, tendo como divulgadores o teólogo protestante alemão Albrecht Ritschl (1822-1889) e seus discípulos. Ritschl fora influenciado tanto por Kant como por Schleiermacher. A influência de Kant se traduz no conceito de religião como o triunfo do espírito ou do valor moral sobre os males da sociedade, e a de Schleiermacher, na crença de que Deus não é conhecido como auto-existente, mas somente até onde ele se auto-revela através de Cristo. Ritschl foi autor de várias obras, das quais a mais importante é Die christliche Lehre von der Rechtfertigung und Versöhnung (A Doutrina Cristã da Justificação e da Reconciliação, 1870-1874). Bengt Hägglund sintetiza o livro da seguinte forma:

Salvação, que Ritschl define como “justificação” (Rechtfertigung) ou perdão dos pecados, restaura a liberdade ética entravada pelo pecado. Mediante a fé, a relação entre o homem e Deus, antes perturbada, transforma-se em confiança e filiação. Disto resulta uma modificação interna na vontade do homem: o ho­mem chega a reconhecer a vontade de Deus e deste modo se predispõe a fazer o bem. Tal transformação interna é o que Ritschl denomina “reconciliação” (Versöhnung). Esta, por sua vez, manifesta-se em boas obras.50

Além de rejeitar o conceito jurídico da justificação, defendido por setores da ortodoxia protestante, a partir de Lutero e Calvino, Ritschl negou ou rein­terpretou as seguintes doutrinas tradicionais: trindade, igreja, reino de Deus, revelação, pecado original e encarnação.51 Ritschl não concebia o pecado como corrupção universal perante Deus e entendia que a divindade de Cristo era figurada e se caracterizava unicamente pela unidade de sua vontade com Deus, configurando uma espécie de monotelismo.52 

A tentativa de aplicar os princípios filosóficos kantianos ao cristianismo protestante constituiu atitude típica de uma era em que havia pouco respeito pelos mistérios da religião e praticamente nenhum temor ante o julgamento divino. O esforço de Ritschl em manter uma teologia de revelação divina sem a fé em milagres foi duramente atacada tanto por liberais como por conserva­dores, mas a sua influência na teologia protestante alemã da segunda metade do século 19 foi, sem dúvida, muito grande.

2.3.1 Harnack

O discípulo mais importante da escola de Ritschl foi Adolf von Harnack (1851-1930), teólogo e historiador alemão, grande erudito em patrística. Sua obra mais conhecida é Lehrbuch der Dogmengeschichte (História dos Dogmas, 1886-1889), onde ele procurou demonstrar que a relevância do cristianismo para o mundo moderno não repousa no dogmatismo teológico, mas no entendimento da religião como um desenvolvimento histórico. Sua idéia mais distintiva foi que o dogma da igreja primitiva consistia no resultado natural da busca de padrões para filiar membros, e que isto obscurecia a natureza essencial e o impacto prático dos ensinos de Jesus. Ele também procurou demonstrar que os credos formulados nos Concílios Ecumênicos de Nicéia (325) e Calcedônia (451) usaram um grande número de conceitos retirados da filosofia grega, na formulação do dogma da Trindade e da Pessoa de Cristo. A este desenvolvi­mento ele chamou de segunda onda da helenização, posto que a primeira onda, a doutrina gnóstica, havia sido rejeitada pela igreja. 

Paul Tillich, contemporâneo de Harnack, embora concorde com uma possível influência gnóstica, considera a generalização de Harnack inadequa­da, uma vez que ela leva à conclusão de que só deve ser aproveitado no Novo Testamento aquilo que tiver uma ligação clara ou for derivado do Antigo Tes­tamento. Diz mais, que se isso for verdadeiro, cerca de dois terços da escritura neotestamentária deve ser deixada de lado, pois tanto Paulo como João usam muitos conceitos helenistas.53 

As idéias de Harnack sobre os dogmas não eram inéditas, pois no século 17, na Assembléia de Westminster, havia um grupo que, paradoxalmente, se colocava contra toda e qualquer idéia de dogma configurada especialmen­te pelos credos, chegando alguns a considerar os Dez Mandamentos como elementos dogmáticos cuja referência deveria ser evitada no contexto dos padrões de Westminster.54 Contudo, o antidogmatismo de Harnack foi muito mais substancial e profundo. 

Numa série de conferências realizadas em Berlim em 1900, compiladas e publicadas com o título Das Wesen des Christentums (O que é o Cristianismo, 1900), Harnack procurou apresentar um sumário do que ele considerava a es­sência do evangelho. Sua intenção era separar essa essência, que ele chamou de o “miolo” do evangelho, que é permanentemente válido, do elemento peri­férico ou da “casca”, ou seja, das formas mutáveis de vida e de pensamento nas quais o evangelho foi transmitido. O miolo da mensagem de Jesus é o reino de Deus, e os cristãos devem seguir o exemplo de Jesus de uma “retidão superior” governada pela lei do amor, que existe independente do culto religioso.55

Em decorrência da fórmula de miolo e casca, Harnack cunhou a idéia de dois evangelhos, um verdadeiro e outro falso, ou seja, o evangelho de Jesus e evangelho sobre Jesus. Ele afirmou que o evangelho sobre Jesus não está conti­do no evangelho pregado por Jesus. Essa, na realidade, é a fórmula clássica da teologia liberal: o evangelho ou a mensagem pregada por Jesus nada tem com a mensagem posterior, contida na Bíblia, pregada sobre Jesus. Tal afirmativa

pressupõe a redução do evangelho somente aos sinóticos, e mesmo assim de­vem ser eliminados todos os sinais que identifiquem uma possível influência paulina. A teoria do conflito entre Paulo e Pedro, desenvolvida por Baur (ver adiante), é revivida aqui em uma versão mais refinada, moderna, ou seja, que Paulo interpreta Jesus de um modo que está muito longe do verdadeiro Jesus histórico. Na realidade, toda a comunidade cristã primitiva que rodeava Paulo estava impregnada de conceitos helenizantes, e foi ela, com base na experiência da ressurreição, que produziu as doutrinas sobre Jesus, doutrinas que não po­dem ser encontradas na mensagem original de Jesus. Esta mensagem original é a mensagem da vinda do reino, e o reino de Deus é o estado no qual Deus e os membros individuais de seu domínio estão em uma relação de perdão, mútua aceitação e amor. Tillich, ao concluir a sua análise crítica sobre a obra de Harnack, afirma que o maior erro dele e de toda a teologia liberal é que ela não está apoiada em uma teologia sistemática.56

2.4 Hegel e os idealistas

Muitos dos teólogos e filósofos liberais também são considerados como tendo ligações com o idealismo, uma escola filosófica que, em última análise, enfatiza que toda e qualquer experiência humana ou percepção consiste de idéias, ou seja, tudo o que existe só se torna real porque é percebido pela mente do homem. Dentre os principais idealistas destaca-se Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), reputado como o principal filósofo alemão de sua época. Contudo, ele mesmo se considerava apenas um teólogo e, como tal, voltou-se contra Schleiermacher. 

Para Hegel, o cristianismo é a religião absoluta e o universo está em uma constante luta, a partir do Absoluto, que é Deus. Ademais, ele desenvolveu um método dialético aplicável também à teologia, como, por exemplo, às doutri­nas da trindade e da encarnação. Na primeira, Hegel considerou o Pai como a unidade divina – a tese. Ele se objetiva no Filho – a antítese. O Amor que os une é o Espírito Santo – a síntese. O processo completo culmina na Trindade. No que se refere à encarnação, Hegel afirma que Deus é a tese. Distingue-se ele da humanidade finita – a antítese. A união se dá na mais suprema síntese – o Deus-Homem.57 

Apesar de não ter atacado a teologia ortodoxa tradicional, o método dialético de Hegel, em que cada conceito aponta além de si mesmo a outro conceito contrário, resolvendo-se a oposição em uma unidade mais elevada, trouxe sérias conseqüências ao desenvolvimento do hegelianismo posterior, em especial, por parte do grupo chamado de esquerda hegeliana, representada entre outros por Ferdinand Baur e David Strauss.

 2.4.1 Baur

Ferdinand Christian Baur (1792-1860), teólogo filosófico protestante alemão e fundador da Escola de Tübingen de crítica bíblica, achou na filosofia contemporânea de Hegel um instrumento adequado para a remodelação da teologia. Assim, com base em suas pesquisas do Novo Testamento, mais preci­samente em um ensaio sobre o chamado partido de Cristo na correspondência de Paulo aos coríntios, ele aplicou os conceitos hegelianos de tese, antítese e síntese ao desenvolvimento primitivo do cristianismo. O partido de Cristo começou essencialmente como um judaísmo messiânico sob a liderança de Pedro e adotado pelos apóstolos originais – a tese. A tensão inevitável surgiu com o cristianismo paulino –58 a antítese. Os partidos petrino e paulino lutaram e dessa luta surgiu o partido joanino, ou a Igreja Católica – a síntese.59 Segun­do Paul Tillich, nesse particular Baur parece ter sido influenciado por Kant e Hegel, que eram grandes admiradores do quarto evangelho.60 

Em seu livro Paulus, der Apostel Jesu Christi (Paulo, o Apóstolo de Jesus Cristo, 1845), Baur aplicou os mesmos princípios à vida e pensamento do apóstolo Paulo e concluiu que somente as Cartas aos Romanos, Coríntios e Gálatas eram genuinamente de Paulo.61 Ademais, ele acreditava que o autor de Atos era pós-apostólico, pois sintetiza e harmoniza o conflito entre cristãos judeus e gentios e, portanto, não poderia ter sido escrito no século 1. Ainda nessa linha, ele afirmou que a maior parte do Novo Testamento teria sido escrita no segundo século, sendo que o Evangelho de João, por seu irenismo e familiaridade com controvérsias da metade do século 2, foi escrito no final da segunda centúria.62 

2.4.2 Strauss

Outro membro da esquerda hegeliana foi David Friedrich Strauss (1808-1874), que, influenciado pelo pensador iluminista Reimarus e pelos ensinos da escola de Tübingen, do mesmo modo que Baur considerou o Evangelho de João como o mais afastado no tempo.63 Racionalista não confesso, em sua maior obra, de 700 páginas, Das Leben Jesu kritisch bearbeitet (A Vida de Jesus Criticamente Examinada, 1836), considerou os milagres bíblicos atribuídos a Jesus como impossíveis, justificando-os através da idéia de mito, que teriam sido engendrados por escritores do século 2, em atendimento aos anseios dos homens daquele tempo, que esperavam um Messias que fizesse maravilhas e aguardavam o cumprimento das profecias do Antigo Testamento.64 Os argu­mentos de Strauss podem ser reduzidos aos seguintes silogismos:

1) Todos os textos que não se conciliam com as leis conhecidas e universais que governam os acontecimentos não são históricos;

2) Todos os textos nos quais Deus intervem no curso natural dos fatos são irreconciliáveis com as leis conhecidas e universais que governam os acon­tecimentos;

3) Logo, todos os textos nos quais Deus intervém no curso natural dos fatos não são históricos.65

Para Strauss, Jesus existiu, mas o Cristo do Novo Testamento é essen­cialmente, em todos os seus característicos sobre-humanos, criação mitológica e deve ser entendido simbolicamente como a realização da Idéia ou Espírito Absoluto na raça humana. A vida de Jesus, conforme apresentada nos Evan­gelhos, foi uma tentativa de despir o Jesus histórico de sua moldura de mito criada pela imaginação poética da igreja antiga.66

No final de sua vida, Strauss publicou o livro Der alte und der neue Glaube (A Velha Fé e a Nova, 1872), no qual se propõe a substituir o cristianismo pelo materialismo científico, uma forma personalizada de darwinismo.67 Seu conceito de que o homem é a união entre o finito e o infinito, entre o espírito e a natureza, tem sido copiado por algumas crenças esotéricas modernas como a Nova Era. 

CONCLUSÕES

O exame do pensamento e conduta dos teólogos liberais analisados constitui-se em peça suficiente para demonstrar que a essência do liberalismo cristão é o desejo de contextualizar os fundamentos religiosos da tradição judaico-cristã. Para os liberais, desde o tempo da igreja apostólica o mundo experimentou sucessivas e progressivas alterações culturais, de modo que as terminologias da Bíblia e das declarações de fé contidas nos credos ecumê­nicos são pouco compreensíveis para as pessoas de hoje. Como base para a sua postura, os liberais sustentam que o cristianismo, ao longo da história, tem procurado adaptar sua estrutura organizacional, liturgia e linguagem às situações culturais específicas.68

Um segundo elemento do liberalismo é a rejeição da autoridade reli­giosa. Os defensores do deísmo racionalista advogavam que todas as crenças deveriam passar pela prova da razão e da experiência e que a mente do crente teria que permanecer aberta diante dos fatos e verdades, independentemente de sua origem. 

De um modo geral, os liberais são adogmáticos, posto que, para eles, nenhuma questão teológica está fechada ou decidida.69 Negam também a inerrância e a inspiração bíblica, com base na assertiva de que a Escritura é obra de autores limitados pelo seu tempo. A essência do cristianismo substitui a autoridade das Escrituras, dos credos e da igreja, não havendo contradição inerente entre a fé e a lei natural, entre a revelação e a ciência, entre o sagrado e o secular, e entre a religião e a cultura.70 Assim, a religião não deve se prote­ger contra a análise crítica. Esse é o ponto de partida da crítica que, até hoje, está presente nos debates teológicos, mesmo em setores reconhecidamente reformados. 

Entre a primeira e a segunda fase do liberalismo teológico, ou seja, entre o racionalismo e o romantismo, houve uma significativa diferença de enten­dimento no que se refere à presença de Deus, o Deus transcendente passando a ser tido como exclusivamente imanente.71 Com base na dialética de Hegel, os liberais falaciosamente concluíram que, pelo fato de Deus estar presente e atuante em tudo quanto acontece, não pode haver diferença entre o natural e o sobrenatural, pois a presença divina é revelada em coisas como a verdade racional, a beleza artística e a virtude moral. Ora, isso pode, naturalmente, levar o cristão à velha fórmula do panteísmo, ou seja, Deus é tudo e tudo é Deus.72

A ênfase na imanência divina, por parte dos liberais, criou as condições necessárias para que sociedades como a maçonaria e o rosacrucianismo acei­tassem com tranqüilidade a presença, na irmandade, de membros de todas as religiões, em face da crença de que há um sentimento religioso universal e a prática de boas obras é superior aos dogmas religiosos.73 

Na cristologia liberal há significativas distorções quanto à ressurreição de Jesus e a conseqüente ressurreição da raça humana preconizada pelo apóstolo Paulo nas Escrituras e inserida na fórmula do Credo Apostólico, visto que, de um modo geral, os liberais consideram que assim como a ressurreição de Jesus foi a continuação de seu espírito e personalidade, o mesmo acontece com todos os mortais depois da morte do corpo físico.74

Quanto à doutrina do pecado, a teologia liberal aproximou-se, em passos largos, de antigas heresias como o pelagianismo. Assim, o pecado ou o mal é visto como imperfeição, ignorância, desajustamento e imaturidade, e não como herança da desobediência a Deus pelo primeiro casal. Embora não afirme, como Pelágio, que a humanidade é naturalmente boa, todos podem obter a salvação, uma vez que os empecilhos decorrentes da carne podem ser vencidos pela persuasão e pela educação. Em decorrência disso, o liberalismo é otimista quanto ao futuro da humanidade, quase beirando a um universalismo coletivo,75 pois a sociedade está avançando em direção à realização do reino de Deus, que será um estado ético de perfeição humana. Como corolário, a escatologia liberal considera que a obra de Deus entre os homens é de redenção e salvação, não de castigo pelo pecado, e este propósito será atingido no decurso de um progresso de ascensão contínua. 

A religião, para os liberais, deixa de ser a ponte entre Deus e a humani­dade perdida, através de Jesus Cristo,76 preconizada pela ortodoxia evangélica, assumindo uma conotação filosófica, cujo poder possui qualidades espiritual­mente terapêuticas, sendo a oração entendida não como uma conversa franca e submissa entre a criatura e o Criador, mas sob a ótica de que ela beneficia a pessoa com paz de espírito, ou seja, como um remédio espiritual. 

Finalmente, a eclesiologia liberal é mais filosófica que teológica, sendo a igreja uma sociedade que reúne pessoas com o mesmo ideal, qual seja, seguir os princípios e os ideais anunciados por Jesus, nada diferindo, portanto, do chamado espiritismo cristão ou kardecista.  

* O autor é presbítero da Igreja Presbiteriana do Brasil, com mestrado em Teologia e História pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ) e doutorado em Política e Estratégia Marítimas pela Escola de Guerra Naval. É doutorando em Ministério (D.Min.) pelo CPAJ/RTS e professor do Seminário Teológico Presbiteriano do Rio de Janeiro, onde exerce a função de coordenador da área de Teologia Histórica.

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