domingo, 8 de setembro de 2013

O fato moral.

Por Jacques Leclercq(Retirado do site da Editora Quadrante) 

Os preceitos morais são distintos dos preceitos sociais e dos religiosos, embora os três estejam relacionados. Neste artigo – o primeiro capítulo do seu livro As grandes linhas da filosofia moral –, o Autor define com clareza o que é propriamente moral, sem deixar de afirmar que na personalidade equilibrada a religião, a moral e as normas de convivência estão plenamente harmonizadas.

Quando se quer refletir sobre a moral, pode-se partir de pontos de vista muito diversos. Escolheremos partir da moral considerada como fato.

Não quer dizer que a moral não seja uma teoria, uma regra e uma verdade. Sendo, porém, regra e verdade, é a moral, ao mesmo tempo, um fato e fato humano, neste sentido: é um fato que os homens admitem uma verdade moral. Entre os fatos humanos, existe um que é chamado moral, do mesmo modo que fato é a física, como também as matemáticas, a Filosofia e a religião. Fora da questão de saber se tal ou tal moral é verdadeira, ou de saber qual é a verdade moral ou a verdadeira regra moral, impõe-se-nos um fato: os homens admitem uma regra moral, crêem nela, e pouco importa que nela tenham refletido ou não. O fato moral, isto é, o fato de crer numa regra moral, é um fato humano. Onde quer que encontremos homens, achamo-los de posse duma moral, isto é, crendo numa moral.

Parecem decisivas, a este respeito, as pesquisas da etnologia contemporânea. Encontra-se o fenômeno moral até entre os povos mais primitivos. Podem-se precisar os elementos essenciais tais quais se apresentam à primeira vista? O fenômeno moral é, essencialmente, fato que encerra aprovação ou censura. Certos atos despertam sentimento de aprovação, de estima, até de entusiasmo, enquanto outros excitam a reprovação, o desprezo, a indignação. Em regra geral, só se aplica o sentimento moral aos atos humanos, e está ele ligado à intencionalidade do ato, ficando, embora, sob certos aspectos, independente dela no sentido que a moralidade, ou o caráter moral do ato, depende do fato de ser este feito por um agente livre, que obra voluntariamente com uma intenção, mas que, ao mesmo tempo, o valor moral não depende da livre vontade deste agente. Tem o ato um valor moral em si, independente da livre vontade do agente, embora, ao mesmo tempo, seu caráter de moralidade venha do fato de ser seu autor um agente livre. Tudo isso, que é assaz complicado, dá lugar, nas morais primitivas, a não poucas confusões e suscita, ainda, problemas delicados nas morais refletidas, construídas racionalmente.

Ao sentimento de estima e de censura, característico do fenômeno moral, corresponde o sentimento dum constrangimento interior, que leva o homem ao respeito da lei moral, sem, contudo, determiná-lo do mesmo modo que as causas físicas. Este constrangimento interior não determina necessariamente o ato, mas traz consigo um sentimento de satisfação ou um sentimento penoso, conforme se obedece ou não a ele.

IMPERATIVOS MORAL, SOCIAL E RELIGIOSO

Manifesta-se, pois, a moral por um imperativo que se exprime em preceitos; este imperativo é acompanhado dum constrangimento interior; devo fazer isto, devo evitar aquilo; sofro uma pressão interior que me inclina a conformar minha ação com o preceito. Em outras palavras, a moral é, essencialmente, normativa.

Mas não é só a moral que se manifesta por imperativo, preceitos, constrangimento interior. Sofre o homem muitos outros constrangimentos, e vários deles se manifestam por sinais que se assemelham, singularmente, ao da moral. Tais são, por exemplo, os constrangimentos sociais e religiosos. O homem está sujeito a preceitos sociais e preceitos religiosos, como está sujeito a preceitos morais. Preceitos sociais e religiosos também se lhe apresentam como verdades e regras imperativas e, como a moral, é a regra social e religiosa um fato, ao mesmo tempo que uma verdade. Para compreender o que é a moral, é preciso distingui-Ia dos outros fatos que se manifestam de maneira análoga.

O preceito social é imposto pelo meio social: impõe certas atitudes a quem quer ser aceito em determinado meio social. Podem-se tomar como exemplo as regras de polidez: é preciso cumprimentar de tal modo, empregar tal fórmula de saudação, começar e terminar uma carta de tal maneira. O preceito religioso é imposto pela divindade: é a regra de nossas relações com ela. Devemos dobrar-nos a ele na medida em que desejamos ter boas relações com Deus ou com os deuses.

O preceito moral é de outra natureza; não corresponde nem a uma pressão social, nem a uma pressão divina. Pode estar de acordo com uma obrigação social ou religiosa, como o veremos; mas, em si, distingue-se delas. O preceito moral corresponde às exigências da vida boa ou da vida correta, da vida que realiza o pleno desenvolvimento humano. Enquanto o preceito social atinge o homem nas suas relações com seus semelhantes, e o preceito religioso, em suas relações com Deus, aplica-se o preceito moral ao homem tomado em si mesmo, sem levar em conta nada mais que ele.

Cada um destes preceitos se impõe a título diferente, mas traduz-se em fatos de consciência que, muitas vezes, se assemelham, a ponto de gerar confusões.

Um homem comete uma falta moral; mentiu ou roubou, tem disso profundo desgosto, persegue-o o pensamento de sua falta, tudo daria para não ter cometido essa falta, desejaria apagá-la por um ato reparador. Não ousa mais aparecer diante daqueles que foram testemunhas ou vitimas de sua falta: tem a impressão de que todos conhecem sua perfídia e a condenam.

Outro comete uma falta contra o código das convenções sociais [...]. Sente-se ridículo, cora de vergonha, experimenta violento dissabor; o tormento de sua humilhação não o deixa durante todo o serão e persegue-o até em casa; [...] quereria apagar o seu fiasco por um ato reparador; tem impressão que toda gente escarnece dele.

São tão semelhantes os dois estados de espírito que é difícil encontrar neles diferenças: a mesma perturbação, o mesmo dissabor, a mesma humilhação, o mesmo desejo de reparação, a mesma impressão de estar sendo condenado pelos que o cercam. No entanto, o primeiro pecou contra a moral, o segundo, contra as convenções sociais apenas; e um e outro tem consciência do caráter de sua falta. Sabe o segundo que não há nenhuma falta moral em seu ato; o primeiro nem sonha em identificar sua falta com sua repercussão social.

O mesmo acontece com as faltas religiosas, embora seja mais difícil dar aqui um exemplo, em nossa sociedade impregnada de espírito cristão, porque o Cristianismo, como teremos ocasião de ver, aproximou a moral da religião a ponto de não se conceber a separação duma doutra, a não ser por uma deformação do senso religioso. Não insistiremos, pois, na distinção entre o moral e o religioso.

Mostra-se, ao contrário, bastante nítida a distinção, na diferença dos constrangimentos. O constrangimento moral exprime-se pela consciência dum extravio pessoal; o constrangimento social, pelo receio de ser desconsiderado aos olhos dos homens; o constrangimento religioso, pelo temor de desagradar à divindade.

A diferença dos estados de consciência correspondentes a cada um destes imperativos provém do fato de aí se encontrar o homem em relação com realidades diferentes. Esses estados de consciência encontram-se mais ou menos desenvolvidos conforme estejam as realidades correspondentes mais ou menos no primeiro plano da consciência. Pode-se, assim, falar dum senso moral, de um senso social e de um senso religioso que consistem numa sensibilidade ou facilidade de percepção mais ou menos aguda, com respeito a cada um dos três grupos de imperativos. Em muitos, confundem-se os três imperativos de modo quase inextricável; em outros, pelo contrário, um desses imperativos toma a dianteira aos demais e, às vezes, é o único a desenvolver-se.

Há certos homens dotados de senso moral muito refinado, mas desprovidos de senso religioso e de senso social. Mostram-se muito ciosos de retidão, de pureza; evitam com cuidado tudo que os poderia desconsiderar a seus próprios olhos; a menor mancha na integridade de sua pessoa é, a seus olhos, a pior das degradações. O imperativo moral é, para eles, o imperativo categórico, o absoluto, e aceitariam todos os inconvenientes e até todos os sofrimentos antes que aviltar-se por uma falta.

Pelo contrário, parece-lhes sem importância o domínio das convenções sociais. Pode acontecer que esses homens não creiam em nada e não experimentem nenhuma necessidade religiosa. É desses homens que se diz, às vezes, que são naturalmente morais ou naturalmente virtuosos. O bem moral é, para eles, o primeiro e, às vezes, o único valor; a mancha moral, o único mal.

Outros, pelo contrário, têm muito desenvolvido o senso social, e carecem de senso moral. Para eles a única regra de vida é seguir os costumes do meio; o argumento supremo é “toda gente faz assim” ou “ninguém faz isso”. Não lhes passa pela mente opor as exigências de sua consciência ao costume existente.

Outros, enfim, têm certo senso religioso e carecem de senso moral. Pode isto parecer surpreendente na sociedade cristã, mas encontra-se muitas vezes entre maus cristãos. Encontram-se cristãos que não experimentam nenhuma repugnância espontânea, nem pelo furto, nem pelo adultério, nem pela mentira, mas que têm muito medo do inferno. Procuram então preservar-se do inferno ou até agradar a Deus, por meios religiosos não-morais, procurando, por exemplo, ganhar indulgências ou mandando celebrar missas, ou praticando eles mesmos exercícios de piedade, pecando embora por outro lado e não tendo nenhum desejo de renunciar ao pecado.

Procuram, pois, uns, o bem da reta consciência, outros, o bem de serem benquistos dos homens, os últimos, o bem de agradarem a Deus, cada um, porém, considerando apenas o ponto de vista que lhe aparece como um absoluto.

No comum da vida, os três imperativos se acham, às mais das vezes, misturados, e muitos seriam incapazes de dizer a qual deles obedecem. Aliás, em muitos casos, os imperativos concordam entre si e confirmam-se mutuamente. A concordância dos imperativos é o sinal de formação equilibrada.

A regra moral, em sua parte mais visível, provém da sociedade ou da religião; a religião vem também, de certa maneira, da sociedade; por outro lado, moral e religião confirmam muitas vezes os preceitos sociais. Torna-se então difícil determinar se se obedece ao preceito em razão de seu caráter social, moral ou religioso. A diferença de natureza destes preceitos é fácil de estabelecer em teoria, mas difícil de se perceber na prática.

Vê-se isso na educação. Impõe-se à criança o respeito a um conjunto de preceitos, entre os quais uns têm caráter moral, outros, caráter meramente social. É pouco mais ou menos a distinção entre o que é “mal” e o que “não é conveniente”. Mas uns e outros lhe são inculcados do mesmo modo; dir-lhe-ão, por exemplo, que é “muito feio” mentir e também que pôr os dedos no nariz é “muito feio”. No entanto, um é mal, porque ofende à regra moral; o outro opõe-se apenas aos costumes sociais. Ou, então, dir-lhe-ão duma e doutra coisa: “não podes fazer isso”. Vê-se assim a criança carregada com uma porção de imperativos entre os quais não nota diferença, e que lhe vêm todos da mesma autoridade que se exprime do mesmo modo.

Também não é de admirar não seja muito comum a distinção clara entre o imperativo moral e o social. A maior parte dos homens fica toda a vida na confusão. Experimenta-se a mesma espécie de sentimentos de estima ou de desprezo para com o homem virtuoso e o homem bem educado, ou para com o homem corrupto e o homem mal educado. As coisas “que não se devem fazer” são tanto de ordem moral como de ordem social, e a repugnância que se tem em muitos meios por quem cospe no chão ou quem usa de palavras grosseiras é da mesma natureza que a em que incorre quem mente ou rouba.

Aliás, é tanto mais fácil a confusão, porquanto o moral e o social ordenam, muitas vezes, os mesmos atos, e o moral se exprime pelo social, isto é, pela vida social é que se recebe o imperativo moral, por meio dos pais, dos mestres, dos superiores. O imperativo social ordena atos morais: o respeito dos filhos para com os pais, o respeito aos mais velhos, o respeito pelos bens alheios. O ladrão viola um imperativo tanto social quanto moral. O moral, por sua vez, ordena atos sociais, atos de asseio, de reserva no comer e beber, como os que acabamos de ver. Dum ponto de vista mais geral, pode-se mesmo dizer que o moral manda respeitar as condições gerais da vida social, e que muitos preceitos sociais, puramente sociais, se tomados em si, prendem-se contudo à moral por algum caráter geral. Tais são os preceitos de polidez, convencionais em si mesmos, contudo expressões do dever de deferência para com o semelhante ou superior, e as regras de conveniência, ligadas a uma idéia geral de recato que exclui que se entregue ostensivamente a suas necessidades físicas.

Compreende-se, nestas condições, que seja difícil fazer a distinção entre os pontos de vista e que muitos não o consigam.

É a mesma a situação, no que diz respeito às relações do moral e do religioso. Todas as religiões superiores ordenam o respeito da moral, e se a religião é verdadeira, a moral ordena a prática religiosa. Por outro lado, aí também se junta o social, porquanto, numa sociedade religiosa, o meio social impõe o respeito da religião. Pode ser que se vá à igreja ou por desejo de honrar a Deus, ou porque toda gente vai e se perderia a consideração, se lá não fosse.

No que concerne à moral e à religião, é muitas vezes difícil de dizer se o cristão é casto, sóbrio, leal, por convicção religiosa ou por preocupação moral. A religião ordena essas atitudes, a moral também, mas por motivos diferentes. Entro a maioria dos homens, os motivos se confundem; e, em determinado número, transparece no primeiro plano a preocupação religiosa, moral ou social; manifesta-se, por exemplo, pelos motivos que invocam em favor de determinada atitude. Dirá um pai de família: “quero que meu filho vá à missa: sempre se foi à missa em minha família”; ou manifestará diante dum divórcio certo sentimento de humilhação, pelo fato de que o divorciado irá ficar afastado da sociedade. Outro, pelo contrário, dirá: “pouco me importa o que irão dizer, mas, é-me insuportável o pensamento de que irá perder a alma”; outro ainda: “há nisso uma diminuição de si mesmo, um aviltamento que não se pode aceitar”.

A experiência da confusão e interdependência do moral, do social e do religioso realiza-se de modo particularmente completo na Igreja Católica, a qual constitui, por isso, privilegiado posto de observação.

Com efeito, não só a religião cristã ordena o respeito da moral como o meio por excelência, e até o único meio de agradar a Deus; mas também as Igrejas, em geral, e a Igreja Católica, em particular, impõem prescrições de caráter social, que se prendem, é verdade, à moral e à religião enquanto meios de observá-las, mas que, por outro lado, têm caráter puramente social, porquanto o motivo, por que se impõe ao respeito dos fiéis tal ou tal prescrição concreta, encontra-se unicamente no mandamento da autoridade social da Igreja.

Se impõe a Igreja aos fiéis a assistência à missa aos domingos e a abstinência de carne nas sextas-feiras, é certamente em aplicação da lei moral e religiosa que obriga à oração e à penitência. Mas a lei moral e religiosa como tal não obriga a essas práticas. É enquanto autoridade social que julga a Igreja dever concretizar a obrigação moral num ato mínimo que se deve exigir de todos; e esta obrigação de obediência é uma obrigação social, que tira da disciplina social seu caráter obrigatório e perde-o, quando a disciplina social não mais o impõe.

Ora, a maior parte dos católicos confunde aqui o moral, o social e o religioso. Bons cristãos, desejosos de cumprir inteiramente seu dever, fazem consistir seu fervor religioso em fazer abstinência nas sextas-feiras, mesmo se a Igreja os dispensa disso, mas nem sequer pensam em fazer uma penitência voluntária ou espontânea; ou então se mostram mais exigentes que a Igreja, quanto à missa aos domingos, mas nunca assistem missa em dia de semana. Dão valor moral à regra social e esquecem o ponto de vista moral propriamente dito. Atribuem caráter moral ao fato de fazer abstinência na sexta-feira e não em outro dia, quando esta especificação de dia é propriamente social, e perdem completamente de vista o preceito moral da penitência, muito mais importante, e obrigatório em qualquer tempo, preceito que pode ser cumprido de muitas maneiras, e que não se identifica e ainda menos se limita ao preceito da abstinência na sexta-feira.

Têm os moralistas contemporâneos estudado muito o caráter específico do fenômeno moral e da distinção do moral com relação aos outros estados de consciência. Suas reflexões têm-se principalmente desenvolvido sob o império das preocupações fenomenológicas que pretendem encontrar uma apreensão direta do real na análise dos estados de consciência. A distinção entre o moral, o religioso e o estético ocupa lugar importante, entre outras, na Filosofia alemã1. Teremos ocasião de falar disso mais adiante. Por enquanto contentemo-nos com as distinções acima, que nos permitem fazer uma idéia do que encerra de particular o fenômeno moral.

(1) Ver, por exemplo, filósofos como Max Scheler e Nicolai Hartman na Alemanha; como Edgard de Bruynf, na Bélgica.
 
A maioria dos filósofos atuais estuda a questão de um ponto de vista diferente do que acabamos de ver. Analisa os estados de consciência, procura ver em que se diferenciam uns dos outros, e se esta diferenciação implica uma diferenciação dos objetos. Seu ponto de partida é o estado de
consciência. Pelo contrário, no que acabamos de ler, a diferença se refere à diferença dos objetos de que se tem consciência, à fonte do moral, do social e do religioso. O moral se diferencia do social e do religioso, não por verificar o homem em si um estado psíquico diferente, mas por ter consciência de estar diante de outra realidade. Não se pode analisar e compreender o estado de consciência sem levar em conta o real de que se toma consciência. Verdade que, num e noutro caso, se parte sempre da consciência. De onde mais se poderia partir? Só se pode partir dum objeto conhecido, e não se pode considerar o objeto conhecido a não ser enquanto conhecido. Difere contudo o ponto de vista, segundo se considera o objeto enquanto se o conhece ou o ato de conhecimento pelo qual se conhece. Um, por intermédio do ato de conhecimento, nos coloca diretamente em face dum objetivo que concebemos como independente de nosso conhecimento, embora não o possamos conhecer senão enquanto conhecido; o outro pára no fenômeno de conhecimento e na análise deste.

OBJETO, ORIGEM, CONDIÇÕES DO IMPERATIVO MORAL

Tentemos precisar a noção de moral, limitando-nos a uma análise do conteúdo imediato da consciência comum, do fenômeno moral tal qual se encontra no homem ordinário, desprovido de formação científica. A vantagem deste ponto de vista provém do fato de ser a consciência mal polida do simples mais espontânea que a consciência elaborada do requintado.

Primeiramente mostra a análise que acabamos de fazer das diversas formas de imperativos que o imperativo moral se caracteriza pela sua gratuidade, no sentido que se impõe a nós, sem consideração de pessoas.

Trata-se da gratuidade com respeito ao imperativo social. Impõe-se este em consideração dos outros homens: quando nos encontramos sós, em geral deixamos de dar atenção às normas da urbanidade. Quanto ao imperativo religioso, impõe-se em consideração à divindade. O preceito moral impõe-se por si mesmo; corresponde ao sentido da retidão da vida, da honestidade da ação. Não tem o homem que consultar senão a si mesmo, sem outra consideração que ele próprio, para que o preceito moral se imponha a seu espírito.

Afirma-se o imperativo moral de modo particular em oposição com o desejo de felicidade, quando o homem tem a impressão que a busca duma satisfação trará para ele uma diminuição. Gostaria de fazer tal coisa, mas não posso. Exprime-se o imperativo de diversas formas: isto fica bem ou não fica bem; devo, posso, não posso.

Por outro lado, o objeto deste imperativo fica extremamente vago para a maioria dos homens. Cada um conhece dele uma fórmula geral que mais comumente se expressa pela regra: “deve-se fazer o bem e evitar o mal”, ou ainda: “o bem é o que se deve ou se pode fazer; o mal é o que se deve evitar”. Quando porém se quer precisar em que consiste o bem e o mal, a maior parte não é capaz de responder, a não ser por meio de exemplo; dir-se-á: “O bem é, por exemplo, não matar, não furtar, não cometer adultério”. Via exemplificativa e também via negativa. Dizem as pessoas simples: “Sou um homem honesto: não faço nada de mal”.

E entre estes preceitos encontram-se alguns bastante gerais, admitidos por todos os povos. Encontram-se porém diferenças de opinião, quando se quer determinar a regra com mais precisão. Todos os povos admitem que não se deve matar e todos admitem também que se pode matar em certos casos, mas não estão de acordo a respeito de suas aplicações. Estas diferenças fazem surgir, desde o princípio, certos problemas de moral. Mas encontra-se por toda parte a regra universal: deve-se fazer o bem; deve-se evitar o mal; o bem torna digno de estima; o mal torna desprezível.

Donde provém o imperativo moral?

Parece, à primeira vista, que vem do meio social. Sabemos dever fazer ou evitar tal coisa, porque no-lo disseram. E contudo tem-se a impressão de que o preceito moral se impõe por si mesmo. Pode ser que eu saiba que não devo matar, porque mo disseram; tenho contudo consciência de que não é por mo terem dito que não posso fazer, mas que mo disseram porque não o posso fazer.

Mais, se a criança recebe docilmente os preceitos dos que têm autoridade sobre ela, e se acontece mais ou menos o mesmo com os simples, que crêem na sabedoria dos que os ensinam, o desenvolvimento do senso moral leva muitas vezes a entrar em conflito com o meio social. A influência social, portanto, é apenas a ocasião de tomar consciência do imperativo moral. De si, o imperativo impõe-se por si mesmo ao espírito. É por isso que o senso moral é essencialmente fonte de independência. O homem moral tem tendência ao individualismo, a viver por si mesmo, a opor as exigências de sua consciência às exigências de fora. Leva-nos o senso moral a encontrar em nós mesmos o principio diretor de nossa ação. O homem plenamente moral prefere ser posto à margem da sociedade, aceita todas as penas, até mesmo a morte, antes que pôr-se em desacordo com a própria consciência.

Que se deve entender aqui por consciência? A consciência moral é a visão das condições de retidão de vida ou integridade da ação, e julgamento de nossos atos conforme essa visão. O primeiro bem para o homem moral é o não degradar-se, é agir conforme sua dignidade de homem. Seu ser é antes de tudo sua dignidade de homem. A vida perde o valor, se for preciso pagá-la com o sacrifício de seu ser.

Isto nos introduz nas condições da moral.

Como vimos, ela só se aplica aos homens, porque se reconhece nos homens um principio de ação estranho aos animais e às coisas. Supõe o ato moral esta autonomia interior que vem do espírito e que torna um ser responsável. Responsável quer dizer que responde por seus atos, ou que os atos são, em última análise, imputáveis ao sujeito que os pratica. Só se realiza essa autonomia no ser dotado de reflexão, capaz de vontade refletida.

Como não se reconhece tal caráter à atividade animal ou à ação dos seres inanimados, não se lhes atribui responsabilidade, e são eles julgados estranhos à ordem moral. Ou às vezes se supõe, por trás da ação do animal ou da coisa, um espírito que age intencionalmente. A pedra que cai é atirada por um espírito. Em todo caso, só há moral, se houver intencionalidade. A intencionalidade acarreta liberdade, responsabilidade.

O domínio moral é portanto aquele onde se exerce a atividade dos seres livres. Estes merecem elogio ou censura, conforme o caráter de sua ação. A noção de responsabilidade traz consigo a exigência da sanção.

A sanção consiste em ter o ato conseqüências proporcionadas a seu valor. Quando um ser livre age, julga-se inadmissível que seu ato não tenha conseqüências, e que estas não estejam em relação com o valor moral do ato. Uma boa ação deve trazer vantagem e uma ação má, desvantagem, ou, segundo a linguagem popular, recompensa ou castigo. Aqui também o acordo é universal: testemunham-no todas as literaturas do mundo; na imaginação popular, o bom deve ser recompensado e o mau punido

Sobre a natureza, da sanção, não chega a haver acordo. Cada qual imagina a sanção conforme suas convicções filosóficas ou religiosas e segundo suas aspirações próprias. Para uns, a sanção está nos bens desta terra, como a saúde e a riqueza; para outros, no testemunho da boa consciência, para outros ainda, na consideração ou desprezo público; numa recompensa eterna. Diverge-se na determinação da sanção, mas todos concordam que deve haver uma.

No entanto, a experiência não manifesta a sanção. Reage então o senso moral, pelo escândalo. A felicidade dos maus e a desgraça dos justos é o grande escândalo da terra, escândalo permanente, contra o qual se têm revoltado os homens de todos os tempos. O senso moral manifesta-se então pela indignação, que é a recusa em aceitar o fato.

Fonte: “As grandes linhas da filosofia moral”, São Paulo, s/d, págs. 3-14.

Para que servem os filósofos.

Por Robert Spaemann (Retirado do site da Editora Quandrante)

O texto recolhe as palavras de agradecimento pronunciadas pelo pensador alemão Robert Spaemann ao receber o Prêmio Roncesvalles de Filosofia, que lhe foi concedido pela Universidade de Navarra. A cerimônia de entrega do Prêmio realizou se no Palácio do Governo de Navarra, em Pamplona (Espanha), no dia 3 de maio de 2001.

O pai do nosso grêmio filosófico, Sócrates, foi convidado a escolher o castigo que lhe parecesse mais adequado para sancionar o seu atentado contra a political correctness de Atenas. Respondeu com uma provocação ao tribunal: solicitou que, como benfeitor da pátria, lhe fosse concedido comer de graça todos os dias no palácio do governo... Foi sobretudo essa desfaçatez que fez com que fosse condenado à morte. Como bons democratas, os atenienses eram sensíveis a tudo o que considerassem arrogância.

Os tempos mudaram, como podemos ver nesta celebração no palácio do Governo de Navarra. Segundo ouvi dizer, o presidente Miguel Sanz vai oferecer-nos – mas apenas hoje, não diariamente – algo para comer e beber. Mas antes entregou-me esta preciosa medalha, outorgada pelos meus colegas da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Navarra, depois de me terem admitido como seu colega concedendo-me, anos atrás, o doutorado honoris causa.

E tudo isso no próprio palácio do Governo! Que mudou, a esse respeito, em comparação com os tempos de Sócrates? Um filósofo deve fazer aqui um exame de consciência. Por acaso tornou se politicamente correto, ao invés de ser um delinqüente? Será possível que a sociedade chegue a interessar-se pela Filosofia? Mas se se trata precisamente do interesse em levantar em público aquelas questões cujo ocultamento assegura a estabilidade da nossa vida cotidiana! Afinal, não falamos das assim chamadas “perguntas últimas”?

São justamente a reflexão e o discurso continuado sobre essas “perguntas últimas” o que define a Filosofia. Em si mesma, a Filosofia não conhece tabus, embora ponha em dúvida o sentido dos tabus vigentes na vida pública. “Quem diz que não é necessário honrar os deuses nem amar os pais não merece argumentos, mas uma reprimenda”, escreve Aristóteles. A Filosofia pode dizer por que isso é assim, e di-lo com argumentos. Mas isso só é possível quando também se pode argumentar contra essas afirmações, como ocorre nos seminários filosóficos. Ali deve ser legítimo defender a imoralidade, a lei do mais forte, a eutanásia ou o racismo. Mas esse é também o âmbito onde se compreende a fundo por que não se pode defender qualquer coisa na sociedade, que não é o âmbito da busca da verdade, mas da práxis. A filosofia é essencialmente anarquista, e só pode ser cultivada num âmbito de anarquia teórica, embora esteja muito longe de trabalhar em prol da anarquia prática.

ESTADO, SOCIEDADE E FILOSOFIA

Que interesse podem ter o Estado e a sociedade na Filosofia? Que interesse pode ter converter os fundamentos da ordem social em objetos de reflexão crítica? De fato, o Estado moderno não faz derivar a sua legitimidade da verdade de determinadas convicções, mas da correção de procedimentos dos seus mecanismos de decisão. Non veritas sed auctoritas facit legem, diz Thomas Hobbes. Mas convém deixar claro que a legalidade dos procedimentos somente proporciona legitimidade quando esses procedimentos produzem decisões compatíveis com as intuições humanas elementares a respeito da justiça. Só se pode prescindir das questões relativas à verdade e à justiça na medida em que a paz interna seja considerada o supremo valor absoluto.

Mas sempre há circunstâncias nas quais os homens consideram que não vale a pena conservar essa paz. Circunstâncias nas quais se pode afirmar, com Bertold Brecht: “Decidimos temer mais a nossa má vida do que a morte”. Não é possível desterrar do discurso público a pergunta sobre a vida boa. Mas essa é a pergunta própria da Filosofia. E uma sociedade só é livre na medida em que possibilita esse discurso.

A Filosofia não depende do reconhecimento social. A reflexão livre sobre as “perguntas últimas”, em diálogo com todos os que nelas pensaram em todas as épocas, sempre tem lugar, inclusive quando os que a praticam se vêem obrigados a ganhar o seu sustento a duras penas, como bibliotecários, limpadores de janelas ou presidiários. Mas a experiência mostra que os sistemas que tentam isolar os filósofos dessa forma são muito mais instáveis do que as sociedades livres, que pagam os professores de Filosofia sem lhes prescrever o que devem ensinar.

COMO TORNAR INOFENSIVAS AS OPINIÕES

Isso pode ser entendido como uma refinada estratégia de imunização. Os filósofos e outros intelectuais podem falar tudo o que quiserem: é a maneira mais segura de tornar as suas opiniões inofensivas... De fato, os escritores comprovaram com freqüência que a influência dos intelectuais dissidentes é muito maior em Estados com liberdade de expressão limitada do que nas sociedades livres. Daí que o valor daquilo que o filósofo sabe, ou pensa que sabe, seja apenas o de uma opinião entre outras. Os filósofos não podem pretender que a distinção entre doxa e episteme, ou entre opinar e saber, ou entre um filósofo e um sofista, obtenha um reconhecimento social geral.

Quem torna inteligível essa diferença é a Filosofia. Para o Estado não existe diferença entre filósofos e sofistas, como aliás já ocorria na Atenas dos tempos de Sócrates. Não obstante, esse Estado tem um certo interesse na existência e na atividade desses homens: é o interesse em não deixar que os processos sociais se desenvolvam de maneira puramente espontânea e violenta, mas sob a forma de um debate baseado em argumentos.

É esse mesmo interesse que fundamenta a obrigação de comparecer em juízo com um advogado. O fato de que uma das partes disponha do melhor advogado não significa que a justiça esteja do seu lado. É igualmente improvável que nenhuma das partes tenha razão. Pode perfeitamente ocorrer que uma das partes tenha toda a razão e ao mesmo tempo tenha o pior advogado. Em qualquer caso, a obrigação de contar com um advogado defensor está bem fundamentada. Não é desejável que as partes se ataquem com violência, nem que exprimam mediante gritos a urgência dos seus interesses. Em vez disso, devem argumentar. E é o juiz quem no final pondera, não os interesses, mas os fundamentos e argumentos a favor dos interesses. Os Filósofos, sofistas e intelectuais em geral são os advogados de defesa do conjunto da sociedade.

JÁ QUE ÀS VEZES SOMOS ÚTEIS...

Os filósofos são também outra coisa, mas isso só eles próprios e os outros filósofos entendem. Não há nenhum motivo para remunerá los por isso ou distingui los com prêmios. Mas por sermos às vezes úteis como cidadãos graças à nossa competência argumentativa, de modo ocasional se nos dá de comer publicamente no Pritaneu.

Agradeço por isso sinceramente e de coração. Neste caso, meu coração bateu mais forte quando ouvi o nome do prêmio que recebo: Roncesvalles. Não teria sido possível imaginar algo mais romântico. Nem algo que fosse mais importante para uma democracia. As democracias só podem ser boas e duradouras quando as almas dos seus cidadãos não são democráticas. Por sorte, os democratas dos países livres empregam no tratamento o termo “senhor” e não outros, como “cidadão” ou “camarada”.

No âmbito político, hoje não saberíamos o que fazer com uma figura como Carlos Magno. Por isso mesmo é da maior importância que ele encontre um trono no coração de cada europeu. Em política é mais importante a capacidade para o discurso do que a habilidade no manejo das armas. Mas somente aqueles que conservam viva a lembrança da espada de Rolando merecem ser escutados.

Em política não importa apenas ter razão, mas que essa razão seja reconhecida publicamente. Mas só merecem esse reconhecimento aqueles que, seguindo a inspiração socrática, pensam que é melhor sofrer a injustiça do que cometê la. Sócrates e Rolando merecem ser lembrados mais pela sua morte do que pela sua vida.

Se a Filosofia deixa de ser a doutrina da boa morte, também deixa de ser a da vida boa. Então desaparece: deixa de existir, não restando ninguém mais além dos sofistas.

Tradução: Quadrante

 

O mistério e a filosofia .

Por Joseph Pieper (Retirado do site da Editora Quandrante)

Não vamos falar aqui daquilo que a Filosofia ou certos filósofos opinam sobre o tema específico do “mistério”. Do que iremos tratar é do conceito de Filosofia e do filosofar, pois ambos caracterizam-se por terem uma certa relação com o que é misterioso.

Nos tempos culminantes da consciência filosófica – que aliás parecem estar chegando ao fim –, alguma vez esqueceu-se de que os conceitos de Filosofia e de filosofar são, desde a sua origem, conceitos mais negativos que positivos, ou pelo menos foram interpretados como tais. Não preciso entrar aqui em detalhes sobre a conhecida história de Pitágoras. Segundo uma antiga lenda, foi esse grande mestre do século VI antes de Cristo quem pela primeira vez empregou a palavra “filósofo”. Só Deus pode ser chamado sábio: o homem só pode ser – quando muito – um amoroso buscador da sabedoria.

Platão também fala da contraposição entre filosofia e sabedoria, entre sophos e philosophos. No diálogo Fedro, põe em boca de Sócrates: “Sólon e Homero não devem ser chamados de sábios. Isso parece-me, ó Fedro, grande demais: é algo que só corresponde a um Deus. Mas parece-me correto e adequado chamá-los de filósofos”. E no Banquete, Diótima pronuncia umas palavras que expressam, em formulação negativa, os mais profundos pensamentos platônicos: “Nenhum dentre os deuses filosofa”.

Pois bem: o que isso significa, senão que a Filosofia e o filosofar foram, desde o princípio, entendidos como algo que não é sophia, que não é sabedoria, que não é conhecimento, que não é compreensão, que não é posse da verdade?

Essa maneira de pensar não é uma particularidade pitagórico-platônica. Com efeito, Aristóteles – o fundador de um filosofar crítico-científico – vai pelo mesmo caminho, pelo menos no que se refere à Metafísica, a mais genuína disciplina filosófica. E Tomás de Aquino, em seu magistral comentário à Metafísica de Aristóteles, segue de forma escrupulosamente fiel a opinião do genial grego ao dizer que a verdade metafísica sobre o ser não é, em sentido estrito, algo cuja posse corresponda ao homem (non competi homini ut possessio): não é adquirida pelo homem como propriedade, mas como empréstimo (sicut aliquid mutuatum). E acrescenta a isso uma base especulativa cuja profundidade mal se consegue alcançar: diz que somente podemos enunciá-la. Tomás de Aquino diz que a sabedoria não pode ser uma propriedade do homem precisamente porque é desejada por si mesma; e aquilo que podemos possuir plenamente não nos pode proporcionar a satisfação de ser desejado por si mesmo: “unicamente é buscada por si mesma aquela sabedoria que não é suscetível de ser possuída pelo homem”.

Não é que o homem – segundo a opinião de Aristóteles e de São Tomás de Aquino – esteja separado da sophia ou não tenha nenhuma relação com ela. A questão filosófica incide precisamente na sabedoria: o filosofar consiste precisamente em inquirir os mais profundos fundamentos do conhecimento. Pois bem (e isso é algo que precisa ser dito da maneira mais rotunda): nós não somente não possuímos esse conhecimento como também está descartado que o possamos possuir, de modo que também não iremos possuí-lo no futuro. Sem dúvida estamos em condições de obter respostas para as questões das ciências particulares, mas tais respostas não nos podem proporcionar a satisfação de serem buscadas “por si mesmas”.

A essência das questões filosóficas consiste em indagar a última essência, o significado extremo, a raiz mais profunda de uma realidade. O modelo de uma autêntica questão filosófica é: Qual é o último e decisivo fundamento do homem, da verdade do conhecimento, da vida? Perguntas deste tipo apontam, por sua própria natureza, para uma resposta que pretende conter plenamente a essência daquilo pelo qual se pergunta. Como diz São Tomás (ao definir o que é compreender), tais perguntas requerem respostas nas quais a coisa é “conhecida a tal ponto que chega a ser reconhecida em si mesma”.

Com outras palavras: a resposta adequada a uma questão filosófica teria que ser uma resposta que esgotasse por completo o objeto; nela, a cognoscibilidade do real pelo que se pergunta teria que ser averiguada exaustivamente, de modo a não restar nada desconhecido, nada que não esteja já conhecido. Digo que essa seria uma resposta “adequada” para uma questão filosófica – “adequada” significa aqui que a resposta corresponde formalmente à pergunta –, mas devemos lembrar que a pergunta refere-se à última essência e às mais profundas raízes de uma realidade: a questão filosófica, pela sua própria natureza, pugna por uma resposta do conhecimento em sentido estrito. Mas, como diria São Tomás, nós só estamos em condições de compreender desse modo aquilo que é obra nossa (desde que seja realmente obra nossa: o mármore, por exemplo, não é ele mesmo obra do escultor).

Tudo o que dissemos até aqui nos faz compreender que a questão filosófica, por sua própria natureza, não pode ser respondida no mesmo nível em que é formulada. Nesse sentido, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino estão de perfeito acordo com a grande tradição de todo o gênero humano. Seria uma aberração racionalista perante a philosophia perennis lt;“filosofia perene”gt; querer passar por cima desse elemento negativo no conceito original de Filosofia. Lancemos novamente um olhar sobre a tradição da philosophia perennis, para ver se nela se mantém essa estranha e até irritante asserção.

Falando de maneira solene e, por assim dizer, pouco aristotélica, Aristóteles afirma que a questão do ser permanece aberta “em todos os tempos, agora e sempre”. São Tomás comenta essa frase da Metafísica não só sem fazer-lhe nenhuma objeção, como tornando-a sua. Ele mesmo diz, por exemplo, que o esforço de todos os filósofos não conseguiu ainda fazer vislumbrar a essência nem mesmo de um mosquito. A frase reaparece com freqüência na Suma Teológica e nas Questões disputadas: não conhecemos as diferenças essenciais entre as coisas, o que significa que não conhecemos as coisas em si mesmas; é essa a razão pela qual não lhes podemos dar nomes especiais. São Tomás fala inclusive da imbecilitas intellectus nostri, da idiotice do nosso espírito, que não consegue “ler” nas coisas naturais o que elas manifestam a respeito de Deus.

Parece realmente que São Tomás não somente estabeleceu – numa formulação extrema – os fundamentos de uma Teologia negativa (“o máximo conhecimento de Deus que o homem pode alcançar é o de saber que não conhecemos a Deus já que a Sua essência está acima de tudo o que dEle conhecemos”), como também estabeleceu o princípio de uma Filosofia negativa (cujo enunciado em palavras presta-se facilmente a abusos e a interpretações errôneas, mais ainda do que a Teologia negativa).

Essa particularidade essencial que se dá numa questão filosófica – o fato de ela exigir uma resposta que não pode ser dada de forma adequada – é uma diferença com relação às questões que se formulam nas ciências exatas. As ciências particulares têm, por princípio, uma relação completamente diferente com o seu objeto. Por sua própria natureza, as ciências particulares formulam as suas questões de tal forma que podem ser adequadamente respondidas, ou que pelo menos não sejam por princípio irrespondíveis. Um dia a Medicina saberá qual é a origem do câncer. Mas a questão da essência do conhecimento, do espírito, da vida; a questão do significado último de todo esse mundo maravilhoso e terrível; todas essas questões jamais poderão ser respondidas filosoficamente de um modo definitivo, apesar de estarem formuladas filosoficamente.

Na genuína questão filosófica pergunta-se expressamente pelo conhecimento da causa suprema (o qual é simplesmente, como diz São Tomás, a essência da sabedoria), mas a Filosofia, porém, continuará estando à sua busca, permanecerá a caminho enquanto o homem e a própria Humanidade estiverem também a caminho, in statu viatoris lt;“em condição de viajantes”gt;. Por isso a pretensão de ter encontrado a “fórmula do mundo” pode ser qualificada, sem nenhum reparo, de não-filosófica. Forma parte da essência da Filosofia o fato de ela nunca poder oferecer um “sistema fechado”, em que “fechado” significaria que no seu seio pode-se incluir adequadamente toda a realidade do mundo.

O que ocorre com esse elemento “negativo” da Filosofia, quando se trata da Filosofia cristã? É sabido – segundo uma opinião bastante difundida – que a Filosofia cristã realmente supera a Filosofia não-cristã pelo fato de poder oferecer respostas rotundas e definitivas.

Isso, porém, não é bem assim. De fato, a Filosofia cristã oferece alguma vantagem, ou pelo menos está em condições de oferecê-la, mas não porque disponha de respostas concludentes e definitivas sobre questões filosóficas. Em que consiste, pois, tal vantagem? Garrigou-Lagrange, no seu belo livro sobre o sentido do mistério, diz que a característica diferencial da Filosofia cristã é justamente não dispor de soluções concludentes, mas possuir no mais alto grau – mais do que em qualquer outra Filosofia – o sentido do mistério. Perguntemo-nos uma vez mais em que consiste essa diferença: como pode dar-se uma superioridade na Filosofia cristã, se nem mesmo ela pode oferecer uma solução definitiva para os problemas?

Pois bem: a superioridade de que aqui se trata consiste num maior grau de verdade. O maior grau de verdade reside em descobrir que o mundo e o próprio ser são um mistério e, portanto, inesgotáveis. Quanto mais profundamente se reconheça a estrutura da realidade, tanto mais claramente se verá que a realidade é um mistério. E o fundamento dessa inesgotabilidade é este: o mundo é criação, é uma criatura. O mundo reconhece a sua origem no reconhecimento incompreensível e criador de Deus. O fato de serem fruto do conhecimento criador divino – que supera absoluta e infinitamente o conhecimento humano – é o que dá a todos os seres esse seu caráter de inesgotabilidade e de mistério, que se manifesta de forma tanto mais convincente quanto mais profundamente sejam considerados.

Entendemos então por que a experiência mostra que a realidade, por ser criatura, é inesgotável, ao conhecê-la e compreendê-la muito mais profundamente que um sistema de teses lúcido e aparentemente fechado.

Mas ao nos remontarmos à verdade teológica, não acaba sendo possível a solução definitiva? Perante essa pergunta, é possível formular a seguinte contra-pergunta: O sentido da Teologia – o sentido do sagrado, por assim dizer – não estaria impedindo o pensamento humano de chegar a certas conclusões, cuja abstrata penetrabilidade talvez acarrete uma perigosa tentação e uma confusão, e que afinal não estariam de acordo com as múltiplas e misteriosas estruturas da realidade? Esse “impedimento” (que na verdade é um grande dom) faz com que a Filosofia cristã não seja mentalmente compreensível; ou, melhor dizendo: a complicação que aqui surge é precisamente uma outra característica diferencial da Filosofia cristã. Quando São Tomás se remonta aos argumentos teológicos, não o faz com a intenção de oferecer soluções definitivas: o que quer é romper as barreiras metodológicas que limitam tudo o que é “puramente filosófico”, e levar o autêntico ímpeto das questões filosóficas – superando as aporias do pensamento natural – para o terreno do mistério.

Antes de mais nada, falar de mistério não significa falar de algo exclusivamente negativo: não é referir-se somente à obscuridade. Olhando bem, mistério não significa obscuridade de modo nenhum: significa luz, mas uma luz de tal plenitude que nem o conhecimento humano nem a linguagem humana a podem captar na sua totalidade. Mistério não significa que o esforço do pensamento choca-se contra um muro. Significa, pelo contrário, que esse esforço atreve-se a penetrar naquilo que não se pode abarcar com a vista: o espaço – ilimitado em largura e profundidade – da Criação.

A aspiração e a vantagem da Filosofia cristã apóia-se, portanto, no fato de sentir-se chamada a conseguir uma visão mais profunda da verdade, na plenitude e na inesgotabilidade próprias da verdade. Quanto mais profunda seja a penetração na sua plenitude, tanto mais profunda será a visão da sua inesgotabilidade. A convicção da insuficiência do conhecimento humano cresce na mesma medida em que cresce esse mesmo conhecimento.

A Ciência pode por si mesma estabelecer limites no terreno do conhecimento positivo. Mas a Filosofia, cuja natureza é questionar as raízes do real e assim penetrar em seu caráter criatural, enfrenta-se formalmente com o incompreensível, com a criatura enquanto mistério.

Tradução: Quadrante

 

Conhecer: um trabalho permanente.

Por A. D. Sertillanges (Retirado do site da Editora Quadrente0

Nossa inteligência está sempre ativa, sempre querendo conhecer. Que desperdício seria que não a aplicássemos sempre para compreender cada vez mais sobre a vida, as pessoas e o mundo! O autor dá alguns conselhos práticos para não deixarmos de encarar todas as situações como ocasiões de aprendizado.

Instintivamente queremos conhecer do mesmo modo que pedimos pão. Se os mais dos homens se deixam prender por desejos errôneos, o pensador é obsidiado pelo desejo de saber; porque o não utilizará, aproveitando-o como se aproveita um curso de água para mover uma turbina?

Será isso possível? Sim, é; a experiência e a psicologia o ensinam. O cérebro trabalha sem remissão; as turbinas, que reclamo, existem, giram, arrastando em suas voltas um sistema de rodas donde se escapam as idéias como as centelhas dum dínamo em pleno rendimento. Os processos nervosos encadeiam-se em série contínua e não param, do mesmo modo que os movimentos do coração ou dos pulmões. Que falta para aproveitar, em favor da verdade, esta vida permanente? Só a disciplina. É preciso que os dínamos estejam ligados às turbinas, as turbinas à corrente de água; é preciso que o desejo de conhecer acione regularmente, e não por intermitências, o funcionamento cerebral, consciente ou inconsciente.

A maior parte da atividade nervosa de nada serve, pela simples razão de não ser captada. A falar a verdade, nunca o será totalmente, porque o nosso poder sobre ela é relativo, e, se tentarmos forçar o rendimento, arriscamo-nos a quebrar a máquina. Mas para obter o possível, basta relativamente pouca dessa atividade, desde que saibamos cultivar o hábito. Este, bem montado, opera como segunda natureza. Têm aqui lugar os nossos conselhos práticos.

“Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”, recomenda São Tomás ao homem de estudo. Mais abaixo voltaremos a esta comparação, que pode dar margem a equívocos; aqui trata-se do cuidado em adquirir, não da maneira. O que importa ao homem de verdade é compreender que a verdade está em toda a parte, como corrente contínua capaz de acionar a alma, mas que ele deixa passar em vão.

A sabedoria clama nas ruas, diz a Bíblia; eleva a voz nas praças públicas; prega à entrada dos lugares ruidosos, às portas da cidade: até quando, ó ignorantes, amareis a ignorância?... Convertei-vos... que sobre vós espalharei o meu espírito... estendo a mão e ninguém me dá atenção (Prov. 1, 20-24). Se esse apelo incessante em favor da verdade fosse escutado, alargaria o espírito e enriquecê-lo-ia mais do que muitas sessões laboriosas. Estas são necessárias; mas a luz que aí se concentra expandir-se-ia até iluminar quase toda a vida; estabelecer-se-ia uma corrente que atrairia para a lâmpada os resultados do pensamento difuso, e de lá reverteria para este mesmo pensamento, a fim de lhe comunicar orientação e fecundidade.

Que sucede quando quereis mobiliar um quarto? Em princípio, nem sequer pensáveis nos móveis. Circuláveis pelas ruas de Paris, onde abundam as lojas de antiquários, mas não reparáveis nelas. Desconhecíeis as tendências da moda, o valor provável de tal ou tal achado, a especialidade de tal bairro, os preços, etc. Mas, uma vez estimulado o espírito pelo desejo, tudo vos impressiona, tudo vos retém; dir-se-ia que Paris é um vasto armazém e no espaço de oito dias ficais ao par do que não lograríeis conhecer durante a vida inteira.

Ora, a verdade está mais espalhada que os móveis: clama nas ruas e não nos desampara, se a não desamparamos. As idéias estão nos fatos; estão também nas conversações, nos acasos, nos espetáculos, nas visitas e nos devaneios, nas leituras, por banais que sejam. Tudo contém tesouros, porque tudo está em tudo, e algumas leis da vida ou da natureza governa o mais.

Newton não teria descoberto a gravitação, se a atenção ao real o não tivesse advertido e disposto a reparar que as maçãs caem como os universos. As leis da gravitação dos espíritos, as leis sociológicas, filosóficas, morais, artísticas, não têm menos aplicação em toda a parte. Qualquer fato pode gerar um sublime pensamento. Em toda a contemplação, mesmo na de uma mosca ou de uma nuvem que passa, há oportunidade de reflexões sem-fim. Toda a captação de luz pode conduzir ao sol; todo o caminho aberto é corredor para Deus.

Ora, podemos captar todas essas riquezas estando presentes. Olhando tudo com espírito de inspiração, veremos em toda a parte lições, profecias da verdade ou confirmações, causas e conseqüências. Mas no mais das vezes estamos ausentes, nós ou a nossa atenção. “Toda a gente olha o que eu olho, mas ninguém vê o que eu vejo”, dizia Lamartine diante do mar encapelado. Habituai-vos, pois, a estar presentes a este jogo do universo material e moral. Aprendei a olhar; confrontai o que se vos oferece com as idéias que vos são familiares ou secretas. Numa cidade não vejais somente casas, mas vida humana e história. Que um museu vos não mostre apenas quadros, mas escolas de arte e de vida, concepções do destino e da natureza, orientações sucessivas ou diversas da técnica, do pensamento inspirador, dos sentimentos. Que uma oficina vos não fale apenas de ferro e de madeira, mas da condição humana, do trabalho, da economia antiga e moderna, das relações entre as classes. Que as viagens vos ensinem a conhecer a humanidade; que as paisagens evoquem a vossos olhos as grandes leis do mundo; que as estrelas vos falem das durações incomensuráveis; que as pedras do caminho sejam para vós o resíduo da formação da terra; que a vista duma família se associe em vós à das gerações, e que a menor conversa vos informe sobre a alta concepção do homem. Se não souberdes olhar assim, tornar-vos-eis banais, se já não sois. O pensador é filtro onde a passagem da verdade deixa o melhor da sua substância.

Aprendei a escutar, e escutai, primeiro, quem quer que seja. Se na praça se aprende a língua materna, como pretendia Malherbe, também na praça, isto é, na vida corrente se pode aprender a língua do espírito. Nas mais simples conversas circulam verdades sem conta. A mais pequena palavra escutada com atenção pode ser oráculo. Há ocasiões em que um camponês mostra maior sabedoria que um filósofo. Todos os homens se encontram no íntimo de si próprios, sempre que lá refluem, e se uma profunda impressão, se um regresso instintivo ou virtuoso à simplicidade original afastar os convencionalismos e as paixões que ordinariamente nos escondem a nossos olhos e aos dos outros, ouve-se um discurso divino todas as vezes que um homem fala.

Em cada homem está o homem todo, e daí podemos retirar uma profunda iniciação. Se fosseis romancistas, quanta riqueza aí recolheríeis! O maior romancista forma-se no limiar das portas, o menor na Universidade ou nos salões. Só que, em vez de se imiscuir, o grande observador reserva-se, vive para si, sobe, e, a mais insignificante vida afigura-se-lhe um soberbo espetáculo.

Ora, o que o romancista busca pode servir a todos, porque todos precisam desta experiência intensa. O pensador só é verdadeiramente pensador se encontrar no mais pequeno impulso de fora, a ocasião dum entusiasmo ardente. O seu caráter consiste em conservar, pela vida afora, a curiosidade da infância, a vivacidade de impressão, a tendência para ver tudo sob o ângulo do mistério, a feliz faculdade de encontrar em toda a parte surpresas fecundas.

No entanto, atenção, sobretudo se tendes a dita de tratar com alguém que sabe e que pensa. É pena que os homens de escola sejam tão pouco úteis aos que os rodeiam! Praticamente assemelham-nos aos simples de espírito; toma-se o que têm de comum e não o que têm de raro. Há neles um tesouro, mas brinca-se com a chave sem o abrir. As vezes sorrimo-nos do seu acanhamento, das pequenas excentricidades de pessoas abstratas, e nisso não há mal; o ridículo é tomar ares de superioridade, que esquecem o valor dos outros.

Os grandes valores estão assaz disseminados para que os deixemos sem uso. Empregam-se a si próprios e toda a gente se utiliza deles sem o saber; mas sabendo-o, recebe deles instrução e impulso capazes de decidirem, às vezes, duma vida inteira. Quantos que foram santos, generais, exploradores, sábios, artistas, por terem encontrado uma personalidade eminente e ouvido o som duma alma! Esse apelo mudo ecoou neles através de toda a existência; era um clamor que os impelia para a frente; levava-os uma onda invisível. A palavra de um grande homem, como a de Deus, é, por vezes, criadora.

Mas os grandes homens só são grandes após a morte. Em vida, quase ninguém repara neles. Talvez haja a vosso lado quem valha um Descartes e não lhe prestais atenção, não o interrogais, discutis com ele só por discutir, cortais-lhe a palavra para proferir bagatelas. E, se a despeito da sua potente grandeza de espírito, não revela tão potente envergadura, nem por isso consintais que ele sepulte ou gaste em silêncio a sua riqueza.

Observando e escutando – não falo da leitura, porque lá voltaremos – assimilareis e adaptareis às vossas necessidades o que houverdes adquirido. As grandes descobertas são apenas reflexões sobre fatos comuns a todos. Quantas vezes passamos sem nada ver, até que um dia o homem de gênio observa os laços existentes entre o que ignoramos e o que vemos constantemente. Que é a ciência senão a lenta e sucessiva cura da nossa cegueira? É verdade que a observação precisa ser preparada por estudos e soluções anteriores. Encontramos o que procuramos. Só é dado àquele que tem. Por isso eu falava dum vaivém entre as luzes interiores e as exteriores. O espírito deve manter-se em perpétua disposição de refletir, como em perpétua disposição de ver, de ouvir, de apontar a presa que passa, como bom caçador.

Precisando mais, dizemos que esta atenção de espírito pode aproveitar não só a nossa cultura geral, mas a nossa especialidade, ao nosso estudo atual, ao trabalho em gestação. Levai convosco os vossos problemas. O cavalo de aluguel entra na cocheira após a corrida; mas o corcel em liberdade sempre respira à vontade.

Encontrando-se a verdade em toda a parte e estando todas as coisas ligadas entre si, por que não havemos de estudar cada questão, relacionando-a com as demais? Tudo deve alimentar a nossa especialidade. Tudo deve testemunhar pró ou contra as nossas teses. O universo é, em grande parte, obra nossa. O pintor só vê a sua volta formas, cores, movimentos, expressões; o arquiteto equilibra massas; o músico percebe ritmos e sons; o poeta, motivos de metáforas; o pensador, idéias em ato.

Nessas atitudes não há particularismos estreitos; é questão de método. Não podemos abarcar tudo. Reserva-se o interesse para a livre observação, consagramos, a uma pesquisa particular, a atenção de sobresselente, e, “pensando sempre nisso”, como Newton, recolhemos elementos para uma obra.

O segredo está em ter sempre pensamento em expectativa. O espírito do homem é um ruminante. O animal olha ao longe, mastiga lentamente, colhe aqui um tufo, ali uma vergôntea, toma o prado a sua conta, e também o horizonte, compondo com aquele o leite, e com este a sua alma obscura.

Ensinam-nos a viver na presença de Deus; por que não viver também na presença da verdade? A verdade é como que a divindade especial do pensador. Tal verdade particular ou tal objeto de estudo podem estar de contínuo presentes ao espírito. Será sensato, será normal deixar o investigador no gabinete de trabalho, ter assim duas almas: a do trabalhador e a do homem folgado que circula? Tal dualismo é inatural, pois leva a crer que buscamos o bem por ofício e não por nobre paixão.

“Há tempo para tudo” (cfr. Ecle 3, 17), diz a Bíblia, e concordo que não se pode evitar a divisão; mas se de fato pensamos todo o tempo, por que não utilizaremos o pensamento em benefício do que nos inquieta?

Dir-se-á que semelhante tensão é incompatível com a saúde cerebral e com as condições da vida? De acordo; mas também não se trata de tensão, nem mesmo, ordinariamente, de vontade atual. Falei de hábito; falemos, se quiserdes, de subconsciência. O espírito tem o poder de funcionar sem nós, por pouco que preparemos a faina e tracemos de leve o esforço dos canais por onde correrão os seus veios obscuros.

Radicado em nós o desejo de saber e ateada a paixão da verdade, concentrada a atenção consciente sobre os fatos da vida próprios para entreter o fogo e satisfazer o desejo, o espírito assemelha-se a um galgo pronto para a caça. A tarefa já lhe não custa; obedece a uma nova natureza. Pensais tão facilmente numa direção, como outrora ao acaso.

Esta direção é, sem dúvida, só aproximada e seria absurda uma tensão excessiva; mas convirá recusar o que se pode, argüindo com o que se não pode? Tendes aí um imenso recurso; empregai-o, introduzindo um pouco de disciplina num trabalho cerebral que se efetua, mas sem vós e de maneira anárquica. Regulai esse trabalho, de sorte que o cérebro seja, também ele, um intelectual.

Mostrar-vos-á a experiência que isto não cansa, que, pelo contrário, poupa muitas canseiras; porque as descobertas feitas assim ao acaso, sem as buscarmos, simplesmente porque nos resolvemos e decidimos a não ser cegos, estas invenções, muitas vezes mais felizes porque mais espontâneas, incutem ânimo ao investigador, conservam-no alerta e bem disposto; ele espera com delícia a hora de retiro para fixar e desenvolver o resultado das pesquisas.

Alcança-se muitas vezes, desse modo, a ligação difícil, a saída que embalde se procurara à mesa de trabalho. O que não tinha relação com o trabalho conduz a alguma coisa que constitui o fundo do mesmo trabalho. A ciência laboriosa recebe daí nova luz; o homem sabe para onde vai e brevemente um lucro inesperado virá coroar os esforços envidados.

Este processo de acaso responde as contingências cerebrais e ao trabalho obscuro da associação das idéias. Muitas leis se verificam aí, sem que haja lei para a sua aplicação a uma ou a outra, a tal ou a qual hora, e tudo isto se combina sem nossa intervenção – quer dizer, sem que a vontade intervenha, só debaixo da impressão do desejo que é a alma do pensador e que o qualifica; como o jogo qualifica a infância, como o amor qualifica a mulher – isto não é o excesso de carga que se supõe.

Cansa-se porventura a mulher que, durante o passeio, detém-se a espiar as homenagens dos transeuntes, ou a moça à cata de ocasião de rir, ou o rapaz a espreita da oportunidade de brincar? O espírito que espreita a verdade por amor, não por constrangimento, por tendência a princípio instintiva, depois cultivada, mas amorosa e apaixonadamente, também não sofrerá mais por isso. Diverte-se, caça, entrega-se a um desporto útil e inebriante, longe do esforço concreto e voluntário das horas de concentração.

Deste modo o sábio passeia, por todos os tempos e em todas as estradas, um espírito maduro para aquisições que o vulgo descura. A seus olhos, a mais humilde ocupação é o prolongamento da mais sublime; as visitas de cerimônia são inquéritos felizes, os passeios explorações, as suas audições e respostas mudas um diálogo que mantém, nele, a verdade de acordo consigo própria. Por toda a parte o seu universo interior se confronta com o outro, a sua vida com a Vida, o seu trabalho com o incessante trabalho dos seres, e ao sair do estreito espaço em que o seu estudo se concentra, sente a impressão, não de abandonar a verdade, mas de lhe abrir a porta de par em par, a fim de o mundo drenar para ele toda a verdade que se gasta nos seus potentes folguedos.