terça-feira, 29 de outubro de 2013

Um estudo sobre São Tomás de Aquino.

INTRODUÇÃO

Tomaz de Aquino, filósofo e doutor da Igreja, nasceu no castelo Rocasseca, na Campânia, perto de Aquino, na estrada de Roma para Nápoles, por volta de 1224, de nobre estirpe italiana, de família feudal dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue a família imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão. Seu pai o ofereceu como oblato, em 1230, na abadia de Monte Cassino. Todos os seus irmãos e irmãs chegaram a ocupar altas posições na sociedade italiana da época.

Para Tomás, o mais jovem, os pais tinham escolhido a carreira eclesiástica, esperando que ele um dia ocupasse algum cargo de poder e prestígio, como o de abade Montecassino. Ele tinha cinco anos de idade quando foi colocado neste mosteiro, mesmo nunca tomando o hábito dos beneditinos. Aos quatorze anos ele foi estudar na universidade de Nápoles, onde pela primeira vez conheceu a filosofia aristotélica. Tudo isto era parte da carreira que seus pais e familiares tinham projetado para ele. Deste modo, até 1239 seguiu o trívio com os mestres beneditinos, na única biblioteca praticamente existente na Europa de então. Naquele ano o mosteiro, foco de defesa do papado, caiu em mãos de Frederico II, e o jovem Tomás seguiu para a recém-fundada Universidade de Nápoles, centro imperial, aberto às obras científicas e filosóficas dos gregos e dos árabes. Ali teve o seu primeiro contato com Aristóteles e seus comentadores árabes, Avicenna e Averroes. Recebeu então a primeira educação no grande mosteiro de Monte Cassino, e passou a sua mocidade em Nápoles na Itália, como aluno daquela faculdade.

Após haver estudado as artes liberais, entrou na Ordem Dominicana em 1244 renunciando a tudo, com exceção da ciência. Este acontecimento determinou uma forte reação por parte de sua família. A nova ordem ainda estava nos seus primeiros anos, e seus frades mendicantes eram mal vistos pela gente abasta. Por tudo isto, sua mãe que se tornara viúva, com a morte de seu pai poucos anos antes, e seus irmãos, fizeram todo o possível para obrigá-lo a abandonar sua decisão. Vendo que a persuasão não tinha sucesso, seqüestraram-no e o encarceraram em um antigo castelo da família, onde esteve recolhido por mais de um ano, enquanto seus irmãos o ameaçavam e tentavam dissuadi-lo com todo tipo de tentações.

Tomaz de Aquino conseguiu fugir de seu cárcere, superando a dificuldade criada por sua família, passando a se dedicar ao estudo assíduo da teologia, terminando seu noviciado entre os dominicanos. Em 1245 foi enviado pela Ordem a Paris, passando por Colônia, onde manteve os primeiros contatos com Alberto Magno, o Grande que lá ensinava. Tendo estudado de 245 a 1248 em Paris e depois em Colônia.

Quem conheceu Tomaz anteriormente, não poderia imaginar o gênio que nele estava adormecido. Ele era grande, grosseiro e tão carrancudo que seus companheiros zombavam dele chamando-o de “o boi mudo”. Pouco a pouco a sua inteligência passou a brilhar através de seu silêncio, e a ordem dos dominicanos se dedicou a cultivá-la. Com este propósito ele passou a maior parte da sua vida em círculos universitários, particularmente em Paris, onde se tornou mestre em 1256.

Sua produção literária foi muitíssima extensa. Suas duas obras mais conhecidas são a “Suma contra Gentios” e a “Suma Teológica”. Além destas, ele produziu um comentário “As Sentenças”, vários sobre as Escrituras e sobre diversas obras de Aristóteles, um bom número de tratados filosóficos, as conhecidas “questões disputadas”, e um sem-número de outros escritos. Tomaz de Aquino morreu em 1274, quando contava com cerca de cinqüenta anos de idade, e seu mestre Alberto ainda vivia.
 
1. A FORMAÇÃO FILOSÓFICA

Após uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica chegou ao seu ápice com Tomás de Aquino, adquirindo plena consciência dos poderes da razão, e proporcionando finalmente uma filosofia ao pensamento cristão. Assim, converge para Tomás de Aquino não somente o pensamento escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou em Agostinho, rico de elementos helenistas e neo-platônicos, além do patrimônio da revelação judaico-cristã, bem mais importante.

Para Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na sistematização imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, chega a Tomás de Aquino enriquecido com os comentários pormenorizados, especialmente os árabes. Não será exagerado concluir que Tomás de Aquino representa a síntese crítica do pensamento clássico e cristão, hebraico e árabe. É o que evidenciam a estruturação da sua grande obra filosófica, e  a exposição da sua doutrina. Com efeito, Tomás de Aquino expõe, em todas as questões particulares, todas as teses dos adversários e a relativa crítica, de modo que a solução racional das várias questões é baseada criticamente em toda a história positiva da filosofia. 

Alberto Magno, era alemão, dominicano e  um grande vulto da filosofia escolástica, filho da nobre família dos duques de Bollstadt, viveu entre 1207 e 1280, abandonou o mundo pagão e entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na universidade de Paris, onde teve também entre os seus discípulos, Tomás de Aquino, que o acompanhou a Colônia, onde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua ordem. Este mestre de Aquino tinha uma atividade científica vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados — ciências naturais, filosofia, teologia, exegese, ascética. Esforçou-se para apresentar Aristóteles ao mundo latino, esclarecendo-lhe o pensamento com toda sorte de explicações. Foi Alberto que introduziu Aquino no conhecimento aristotelino.

Em 1252 Tomás já possuía os pré-requisitos necessários para lecionar. Voltou então para a universidade de Paris, onde ensinou até 1260, regressando à Itália, por ter sido chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de Siger de Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274, viajou para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de Gregório X, e faleceu no mosteiro de Fossanova, entre Nápoles e Roma, quando contava com apenas quarenta e nove anos de idade.
 
2. AS OBRAS
 
As obras de Aquino podem ser divididas em quatro grupos:
 
1. Comentários: à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à Sagrada Escritura; a Dionísio Pseudo-Aeropagita; aos quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo.
 
2. Sumas: Suma Contra os Gentios, baseada substancialmente em demonstrações racionais; Suma Teológica, começada em 1265, ficando inacabada devido à sua morte prematura.

3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade, Da Alma, Do mal etc); Questões várias.
 
4. O púsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas; Da Eternidade do Mundo etc.
 
3. O PENSAMENTO: A GNOSIOLOGIA

Para Tomás de Aquino, a filosofia é a ciência teorética para resolver o problema do mundo. Diversamente do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico. Considerava também a filosofia como absolutamente distinta da teologia, — não oposta - visto ser o conteúdo da teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.

A gnosiologia tomista — diversamente da agostiniana e em harmonia com a aristotélica — é empírica e racional, sem inatismos e iluminações divinas. O conhecimento humano tem dois momentos: o sensível e o intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, realiza-se mediante a assim chamada espécie sensível. Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto material na alma. Isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do sinete na cera, sem a materialidade do sinete; ou, a cor do ouro percebido pelo olho, sem a materialidade do ouro.

O conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas transcende-o. O intelecto vê na natureza das coisas — intus legit — mais profundamente de que os sentidos, sobre os quais exerce a sua atividade. Na espécie sensível — que representa o objeto material na sua individualidade, temporalidade, espacialidade etc., mas sem a matéria — o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas implicitamente, na sua potencialidade. Para que tal inteligível se torne explícito, atual é preciso extraí-lo, abstraí-lo, isto é, desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se deste modo, a espécie inteligível, representado precisamente o elemento essencial, e a forma universal das coisas.

Pelo fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize, desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. Este intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a qual ilumina ela o mundo sensível para conhecê-lo; no entanto é absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos diferentemente de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade da alma individual, e não nos advém de fora, como pretendiam ainda o iluminismo agostiniano e o panteísmo averroísta. O intelecto que propriamente entendo o inteligível, a essência, a idéia, feita explícita, desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto passivo, a que pertencem as operacionais humanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.

Como no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam uma unidade mediante a espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual, mediante a espécie inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. Compreendendo as coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em si, tem em si mesmos, imanentes todas as coisas, compreendendo-lhes as essências e as formas.

Na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível não é coisa entendida, quer dizer, a representação da coisa (id quod intelligitur), pois, neste caso, conheceríamos não as coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no fenomenismo. Mas, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extramentais (é logo, id quo intelligitur). E isto corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante conhecermos coisas e não idéias; mas as coisas podem ser conhecidas apenas através das espécies e das imagens, e não podem entrar fisicamente no nosso cérebro.

O conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no mero intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: “veritas est adaequatio speculativa mentis et rei”. E tal adequação é possível pela semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento inteligível, a essência, a forma, a idéia. O sinal visto que muitos conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.

Todos os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por conseqüência, todos os conhecimentos sensíveis são, por si, verdadeiros. Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas interpretações dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo intelectual, poucos são os nossos conhecimentos evidentes. São certamente evidentes os princípios primeiros (identidade, contradição etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência mediante a demonstração, como já dissemos. É neste processo demonstrativo que se pode insinuar o erro, consistindo em uma falsa passagem na demonstração, e levando, à discrepância entre o intelecto e as coisas. A demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do universal para o particular. No entanto, os universais, os conceitos, as idéias, não são inatas na mente humana, como pretendia o agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente da experiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto esta essência das coisas, universal e necessária. Desta essência conhecida, derivam dedutivamente e necessariamente as suas propriedades e atividades. Nisto precisamente consiste o processo dedutivo, que é o processo científico propriamente dito.
 
4. A METAFÍSICA

A metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica geral ou ontologia, tem por objetivo o ser em geral e as atribuições e leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes especificações: Deus, o espírito, e o mundo. Daí temos a teologia racional, assim chamada, para distinguí-la da teologia revelada; a psicologia racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da moderna psicologia empírica, que é ciência experimental): a cosmologia ou filosofia da natureza (que estuda a natureza em suas causas primeiras, passo que a ciência experimental estuda a natureza em suas causas segundas).

O princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em potência e ato. Ato significa realidade, perfeição; potência quer dizer não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade absoluta, mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma determinada perfeição, capacidade de concretizar-se. Tal é ato puro; este não muda e faz com que tudo exista e venha a existência. Opõe-se ao ato puro a potência pura que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode tornar-se todas as coisas, e chamar-se matéria.
 
4.1 A NATUREZA

Uma determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para toda a realidade, é o princípio da matéria e da forma. Este princípio vale unicamente para a realidade material, para o mundo físico, e interessa portanto especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é absoluto, não-ente; é, porém, irreal sem a forma, pela qual é determinada, como a potência é determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa existir um ser completo e real (substância). A forma  é a essência das coisas (água, ouro, vidro) e é universal.

A individualização, a concretização da forma, essência em vários indivíduos, que só realmente existem (esta água, este ouro, este vidro), depende da matéria, que portanto representa o princípio de individualização no mundo físico. Resume claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na filosofia de Aristóteles e Tomás de Aquino, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e dominante (a forma).

Além destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais têm outras duas causas: a causa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a que realiza o sínolo, a saber, a síntese daquela determinada matéria com a forma que a especifica. A causa final é o fim para que opera a causa eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada no universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro causas — material, formal, eficiente e final; estas causas constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do universo físico.
 
4.2 O ESPÍRITO

Quando a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está dentro do ser, chama-se alma. Portanto, têm uma alma as plantas (alma vegetativa: que se alimenta, cresce, se reproduz), e os animais (alma sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto, à psicologia racional, que diz respeito ao homem, interessa apenas a alma racional. Além de desempenhar as funções da alma vegetativa e sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino, existe uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e a alma superior cumpre as funções da alma inferior, como o mais contém o menos.

No homem existe uma alma espiritual — unida com o corpo, mas transcendendo-o — porquanto além das atividades vegetativa e sensitiva, que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais, como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é orientada para entidades imateriais, como os conceitos; e, por conseqüência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial, espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana é livre, indeterminada — como veremos mais adiante — ao passo que o mundo material é regido por leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a faculdade de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que pelo fato de ser imaterial, isto é, espiritual, não é composta de partes e, por conseguinte, é imortal.

Como a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, isto é, é imortal, assim transcende a origem material do corpo e é criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo corpo já formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás sustenta que a alma, espiritual embora, é unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma. Desse modo o corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua vez, ainda que imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu instrumento indispensável.
 
4.3 DEUS

Como a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental da potência e do ato, mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a teologia racional tomista depende — e mais intimamente ainda — da doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta que Deus não é conhecido por intuição, mas é cognoscível unicamente por demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e racional, não recorre a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori, partindo da experiência, que sem Deus seria contraditória.

As provas tomistas da experiência de Deus são cinco; mas todas têm em comum a característica de se firmar na evidência (sensível e racional), para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a primeira dessas provas — que é fundamental e como que norma para as outras — baseia-se diretamente na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma em dois elementos, cuja solidez e evidência são igualmente incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do movimento, das causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas ou da ordem que entre elas reina; e uma aplicação do princípio de causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à causa primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a ordem à inteligência ordenadora".

Se conhecemos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, ainda mais limitado é o conhecimento que temos da essência divina, como sendo a que transcende infinitamente o intelecto humano. Segundo o Aquinate, antes de tudo, sabemos que Deus não é (teologia negativa), entretanto conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de Deus, graças precisamente à famosa doutrina da analogia. Esta doutrina é solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus se deve realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve ter semelhança com a causa. A doutrina da analogia consiste precisamente em atribuir a Deus as perfeições criadas positivamente, tirando, porém, as imperfeições, isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos à respeito de Deus é, portanto, um conjunto de negações e de analogias; e não é falso, mas apenas incompleto.

Quanto ao problema das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base no conceito de criação, que consiste numa produção do mundo por parte de Deus, total, livre e do nada. Segundo a solução dualista, grega, do problema metafísico, teológico, o mundo e o homem são algo de verdadeiramente autônomo e independente de Deus, mas Deus fica limitado pelo mundo e o mundo inexplicável; segundo a solução monista desse problema, o homem e o mundo são da mesma substância de Deus, mas Deus é resolvido no mundo e o mundo fica igualmente inexplicável; segundo a solução teísta do problema teológico, o homem existe verdadeiramente, mas depende totalmente de Deus, no ser e no agir. Como se concilie tal casualidade absoluta de Deus com a liberdade humana, não é possível explicar racionalmente; entretanto, que os dois termos não são contraditórios, porquanto a ação de Deus é absolutamente diversa, transcendente à ação humana na sua livre natureza.
 
5. A MORAL

Também no campo da moral, Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral tomista é essencialmente intelectualista, ao passo que a moral agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade não só é condição do conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não depende da vontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da divina essência, isto é, a ordem moral é imanente, essencial, inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essência divina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente significa agir racionalmente, em harmonia com a natureza racional do homem.

Entretanto, se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que executa livremente esta ordem moral. Tomás afirma e demonstra a liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísico fundamental. A vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto tivesse a intuição do bem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria determinada por este bem infinito, conhecido intuitivamente pelo intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas com seres e bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não é mister acrescentar que, para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o elemento objetivo, a lei, que se distingue mediante a razão; e o elemento subjetivo, a intenção, que depende da vontade.

Analisando a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e portanto forçado a viver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de que depende a conservação do gênero humano; a segunda forma é o estado, de que depende o bem comum dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, se compreende como o indivíduo não é um meio para o estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás de Aquino, o estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material (econômica), mas também positiva (organizadora) e espiritual (moral). Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém, subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à igreja, que tem como escopo o bem eterno das almas. O estado tem como escopo, apenas o bem temporal dos indivíduos.
 
6. FILOSOFIA E TEOLOGIA

Em torno do problema das relações entre filosofia e teologia, ciência e fé, razão e revelação, e mais precisamente em torno do problema da função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá uma solução precisa e definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base no sólido sistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação, agostiniana, que levava inevitavelmente a uma confusão da teologia com a filosofia. Finalmente, é conquistada a consciência do que é conhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um lógico procedimento de princípios evidentes para conclusões inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possível demonstração racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não evidentes, transcendentes à razão, mistérios, e igualmente ininteligíveis suas conclusões lógicas.

Em todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé, porquanto procede da mesma verdade eterna. E, com relação à fé, deve a razão desempenhar os papéis seguintes:

1) A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o que é impossível, mas com argumentos extrínsecos, de credibilidade (profecias, milagres etc), que garantem a autenticidade divina da Revelação.
 
2) A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentos prováveis.
 
3) A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo que a sacra teologia é ciência, e ciência em grau eminente, porquanto essencialmente especulativa, ao passo que, para os agostinianos, é essencialmente prática.Tomás, portanto, não confunde — como faz o agostinianismo — nem opõe — como faz o averroísmo — razão e fé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e a fé; tal unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana; esta determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana tornou possível a averiguação das reais, efetivas vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente, racionalmente, inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação e, precisamente, os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz.
 
7. O TOMISMO

O tomismo afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a orientação do pensamento platônico-agostiniano em nome do racionalismo aristotélico, que pareceu um escândalo, no campo católico, ao misticismo agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o início da filosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o início do pensamento moderno, enquanto a filosofia é concebida como construção autônoma e crítica da razão humana.

Sabemos que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano depende de uma particular iluminação divina; segundo esta doutrina, portanto, o espírito humano está em relação imediata com o inteligível, e tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia inatista, Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica atristotélica, em virtude da qual o campo do conhecimento humano verdadeiro e próprio é limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, no homem, um intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um intelecto concebido como uma faculdade vazia, sem idéias inatas — é uma tabula rasa, segundo a famosa expressão; e o inteligível nada mais é que a forma imanente às coisas materiais.

Essa forma é enucleada, abstraída pelo intelecto das coisas materiais sensíveis. Essa gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a uma antropologia, assim como a gnosiologia platônico-agostiniana era conexa a uma correspondente metafísica e antropologia. Por isso a alma era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza angélica, unida extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo era-lhe mais de obstáculo do que instrumento. Por conseguinte, o conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e acima dos sentidos, mediante contacto direto com o mundo inteligível; precisamente como as inteligências angélicas, que conhecem mediante as espécies impressas, idéias inatas. Vice-versa, segundo a antropologia aristotélica-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina da forma, a alma é concebida como a forma substancial do corpo. A alma é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda que destinada a sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um instrumento indispensável ao conhecimento humano, que, por conseqüência, tem o seu ponto de partida nos sentidos.

Terceira característica do agostiniano é o assim chamado voluntarismo, com todas as conseqüências decorrentes da primazia da vontade sobre o intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é o intelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas as relativas conseqüências. O conhecimento, pois, é mais perfeito do que a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, ao passo que a vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na ordem natural como na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança não consiste no gozo afetivo de Deus, mas na visão beatífica da Essência divina.
 
CONCLUSÃO

Tomás de Aquino seguiu a diretriz traçada por Alberto, mas definiu sua posição com maior clareza. Segundo Tomás há verdades que estão ao alcance da razão, e outras que estão acima dela. Assim, a filosofia se ocupa somente das primeiras. Mas a teologia não se ocupa somente das últimas. Isto porque há verdades que a razão pode demonstrar, mas que são necessárias para a salvação, mesmo quando a razão pode demonstrá-las, têm sido reveladas. Portanto estas verdades podem ser estudadas tanto pela filosofia como pela teologia.

Sem crer que Deus existe não é possível se salvar. Por isto Deus revelou sua própria existência. A autoridade da igreja é suficiente para fazer crer na existência. Ninguém pode se desculpar e dizer que esta verdade requer grande capacidade intelectual para sua demonstração. A existência de Deus é um artigo de fé, e a pessoa mais ignorante pode aceitá-la simplesmente baseado nisto. Mas isto não quer dizer que esta existência está acima da razão. A razão pode demonstrar o que a fé aceita. A existência de Deus é um tema tanto da teologia como da filosofia, mesmo que cada uma delas chegue a ela por seu próprio caminho. A investigação racional nos ajuda a compreender mais completamente o que aceitamos pela fé. Esta é a função das famosas cinco vias que Tomás seguiu para provar a existência de Deus. Todas estas vias são paralelas, e não é necessário seguir a todas. Elas começam com o mundo que conhecemos através dos sentidos, e dali levam à existência de Deus. A primeira via, é a do movimento, e diz simplesmente que o movimento do mundo deve ter uma causa inicial, que é Deus.

Tomás de Aquino contribuiu sobremaneira para o curso posterior da teologia, em parte devido à estrutura do seu pensamento, mas sobretudo à maneira com que soube unir a doutrina tradicional da igreja com a nova filosofia. Tomás soube fazer uso de uma filosofia que os outros encaravam como uma ameaça séria à fé, e que ele converteu em instrumento nas mãos da mesma fé.
 
CRÍTICAS

Baseado na bibliografia e na crítica dos autores como Gonzalez e Padovani, estou convicto de que Tomás de Aquino conseguiu diminuir o espaço que existia entre a filosofia e a teologia. Logo, contribuiu positivamente para que a filosofia não fosse encarada como uma ciência que colocava em cheque o conhecimento acerca da existência de Deus defendida pelos teístas. Creio que a filosofia e a teologia “tomista” foram de grande valor para o conhecimento de Deus nos séculos que se seguiram e até mesmo em nossos dias.

Não tenho nenhuma dúvida acerca das idéias de Tomás quanto a soberania do estado com relação as questões de ordem econômico-social que envolvem o homem, quanto deve estar submisso as questões de ordem espiritual e moral à igreja. Ao estudarmos Sociologia, verificamos que as idéias de Tomás quanto a posição do estado são defendidas ainda em nossos dias.

Com relação as questões do conhecimento de Deus, Tomás se baseou na doutrina da analogia, cujos argumentos afirmam que o conhecimento certo de Deus se devia realizar partindo da criação porque o efeito devia ter alguma semelhança com a causa. Em outras palavras significa dizer que a Teologia Natural é suficiente para que todos cheguem ao conhecimento de Deus. Daí Davi inspiradamente haver escrito: “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra da suas mãos, um dia faz declaração a outro dia e uma noite mostra sabedoria a outra noite, sem linguagem sem fala, ouvem-se as suas vozes (Sal. 19:1-3).”   
 
Por: Augusto Bello de Souza Filho
Bacharel em Teologia 

BIBLIOGRAFIA

 - Castagnola, Umberto Padovani Luis, HISTÓRIA DA FILOSOFIA, Editora Melhoramentos, São Paulo (SP), 1990, 15ª Edição.
- Gonzalez, Justo L, A ERA DOS ALTOS IDEAIS, Sociedade Religiosa Edições Vida    
Nova, São Paulo (SP), 1989, 3a. Edição.  
         

Vida e obra de Martinho Lutero.

Uma das figuras mais polêmicas do cristianismo e responsável maior pela reforma protestante, Martinho Lutero nasceu em 10 de Novembro de 1483, na cidade de Eisleben, filho de Hans e Margareth Luther. Na manhã seguinte, festa de Martim de Tours, foi batizado com o nome do santo do dia, na igreja de São Pedro e Paulo.

Hans Luther, seu pai, foi fazendeiro, mineiro, dono de mina, e posteriormente fez parte do conselho da cidade de Mansfeld, para onde eles se mudaram quando Lutero tinha um ano de vida. O luterano Martin Martydescreve a mãe de Lutero como sendo uma grande trabalhadora da classe comerciante, enquanto nota que os inimigos de Lutero a descreviam como prostituta ou atendente de banheiros. Seus pais assinavam alternativamente os sobrenomes de Lüder, Luder, Loder, Ludher, Lotter, Lutter ou Lauther. A forma conhecida hoje como Luther foi escolhida pelo próprio Lutero por volta de 1512. Ele derivou seu nome ou do duque Leuthari ou da palavra grega ελεύθερος (livre), de onde ele tira a palavra flexionada Eleutherios (o livre).

Lutero frequentou a escola da cidade de Mansfeld de 1488 até 1497. Depois disto ele frequentou a Magdeburger Domschule. Ali ele estudou com os Irmãos da Vida Comum, comunidade religiosa católica que enfatizava uma vida de simples devoção a Jesus. Estes haviam estabelecido na Alemanha e Holanda escolas onde o ensino era oferecido “para o amor de Deus apenas”. Depois disto, em 1498, Lutero é enviado para os franciscanos em Eisenach, onde ele recebeu educação em música e poesia, se destacando como cantor. Desde cedo então, o jovem Lutero recebia influência religiosa.

De 1501 até 1505, Lutero vai estudar na faculdade de Erfurt, recebendo o título de “Magister Artium” da faculdade de Filosofia. Ali ele recebe educação básica em latim nas matérias de Gramática, Retórica, Dialética, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia.
Seguindo o desejo de seu pai, Lutero então inicia seus estudos de direito, na mesma faculdade, no ano de 1505. No entanto, abandona os estudos não muito tempo depois. Em 2 de julho daquele ano, depois de uma visita aos seus pais em Mansfeld, retornando para Erfurt durante uma tempestade, Lutero teve medo de morrer quando um raio cai perto dele, e chama Santa Ana, dizendo “Me ajude, santa Ana, e eu me tornarei um monge!”. Sua promessa pode ser explicada tanto pelo medo da morte e do julgamento divino, que posteriormente ele confessa a seu pai, como também pela educação religiosa que recebeu até então. Assim, em 17 de julho, contra a vontade de seu pai (que via aquilo como um desperdício de toda a educação que Lutero recebeu), ele entra em um monastério agostiniano em Erfurt.

Ali ele se dedica com tando afinco à vida monástica, se devotando a jejuar, passar horas orando, em peregrinação e em frequente confissão. Posteriormente ele diria que “Se alguém pudesse ganhar o céu como monge, eu certamente estaria entre eles”. Foram anos de desespero espiritual que ele posteriormente descreveria: “Eu perdi contato com Cristo o Salvador e Confortador e fiz dele o carcereiro e carrasco da minha pobre alma”. Tanta dedicação o faz diácono já em 27 de fevereiro de 1507, e padre em 4 de abril do mesmo ano.

O motivo de tanto desespero espiritual se encontrava no sacramento da penitência. Os pré-requisitos deste sacramento eram arrependimento sincero, falta de medo diante da punição divina e a confissão de todos os pecados, inclusive os pecados secretos, mesmo os desconhecidos pela pessoa. Estes pré-requisitos Lutero levava bastante a sério, chegando posteriormente a duvidar da sua capacidade de cumpri-los, o que o levou a duvidar ainda do perdão de Deus.

Assim Johann von Staupitz, seu confessor e vicário geral da congregação, concluiu que Lutero precisava de mais trabalho para distraí-lo de excessiva introspecção, ordenando ele a buscar uma carreira acadêmica em Wittemberg, em 1508, onde entra em contato com a teologia de Guilherme de Ockham. Em março de 1509 recebe o grau de bacharelado em Estudos Bíblicos, que o permitiu ler alguns trechos bíblicos com os acadêmicos. Poucos meses depois recebe outro grau de bacharelado nas Sentenças de Pedro Lombardo, que o permitiu expô-las. Pouco depois disto retorna para Erfurt.

Em 1510, Lutero viaja para Roma, em uma missão em nome de seu convento. A casa de Erfurt e seu prior, Johann Nathin, pertenciam a um movimento de reforma dentro da ordem Agostiniana que buscava expandir uma observância mais estrita da Regra. Em setembro de 1510, uma união entre as ordens foi anunciada, o que para estes monastérios reformados como o de Erfurt, significava uma perda do que já havia sido obtido. Por este motivo, estas congregações decidiram apelar para o vicário geral, Giles (Egidio) de Viterbo, em Roma. Assim, Lutero foi escolhido para levar a apelação ao vicário geral. Viagens assim não poderiam ser feitas sozinho, pois isto era proibido pela ordem. Provavelmente foi acompanhado por Anton Kresz da casa de Nuremberg, que estava encarregado da missão.
Foi em Roma que Lutero teve grande decepção. Segundo relatos de seu filho Paulo, que ouviu isto de seu pai em 1541, Lutero ali subiu a famosa Scala Santa de joelhos, pedindo penitência por ele e seus parentes. Arrependido de seus atos, volta a Alemanha.

Em setembro de 1511, retorna a Wittenberg. Em 19 outubro de 1512 ele recebe o título de Doutorado em Teologia, e em 21 de outubro de 1512 recebeu o convite para ocupar a posição de Doutor na Bíblia na mesma faculdade, título que manteve até o fim de sua vida.

Contra a venda de Indulgências

Um ano antes da elaboração das
95 teses, Lutero já pregava abertamente contra as indulgências. No verão de 1517, ele recebe uma carta do cardeal Albrecht, intitulada Instructio Summarium, permitindo a venda de indulgências no país. Parte das rendas serviria para pagar as dívidas dele com a família Fugger, que financiaram seu príncipe eleitor. Para esta tarefa, ele envia Johann Tetzel.

No dia 4 de setembro de 1517, Lutero distribui 97 teses entre seus discípulos e colegas sobre uma disputa com a teologia escolástica. Depois disto Lutero elabora suas 95 teses a respeito das indulgências, que, segundo Filipe Melanchthon, teriam sido fixadas na porta principal da Igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517, evento que ficou mais tarde conhecido como o estopim para a reforma protestante. Tal fato é hoje muito questionado. Alega-se por um lado que Filipe Melanchthon não poderia ser testemunha ocular do evento, pois chegou à universidade como professor apenas em 1518. Além disto se alega também que tal ato seria interpretado como uma provocação aos seus superiores. Havia sim o costume de se fixar teses nas portas da Igreja, mas isto acontecia apenas depois de se verificar as reações de bispos ao trabalho fixado. Lutero não desejava confrontar seus superiores, mas sim, esclarecer alguns pontos sobre as indulgências.

Por outro lado, Filipe Melanchthon era amigo muito próximo de Lutero. Mesmo não sendo testemunha ocular, ele poderia muito bem ter ouvido o relato do próprio Lutero. Além disto, ele nunca fez disto um fato extraordinário, ficando difícil entender por que Melanchthon poderia mentir ou até mesmo se enganar sobre este ponto.

Sabe-se no entanto que Lutero escreveu uma carta ao arcebispo Albrecht de Mainz e Magdeburg em 31 de outubro de 1517, onde ele denunciava a venda de indulgências e exigia o esclarecimento de mal-entendidos. Com a carta ele enviou 95 teses, as quais serviram de base para uma discussão sobre o assunto. Mas Albrecht não respondeu esta carta, enviando-a para Roma. Johann Tetzel reagiu escrevendo contra-teses, com a ajuda do teólogo Johannes Eck, professor da cidade de Ingolstadt.

A resposta do papa foi colocar a questão debaixo da jurisdição dos agostinianos, cuja próxima reunião capitular seria em 26 de abril de 1518, conhecida hoje como a Disputa de Heidelberg, cidade onde aconteceu. Para lá foi Lutero, temendo por sua vida, mas encontrando amplo apoio por parte dos monges ali. Nesta disputa, Lutero pôde elucidar sua teologia, onde pregava a graça de Deus. A questão é que Lutero via seu entendimento sobre esta graça como o alicerce para seu ataque às indulgências. Foi em Heidelberg que Lutero convenceu muitos futuros reformadores, entre eles Martin Bucer, sobre a veracidade de sua teologia.

Assim, o papa Leão X teve que tomar outro caminho. Se reuniria em Augsburgo, em outubro de 1518, a dieta do império, ou seja, a assembléia de todos os potentados alemães, sob presidência do imperador Maximiliano. O legado papal para esta dieta era o cardeal Cajetano, cuja grande missão era convencer os príncipes alemães da necessidade de empreender uma cruzada contra os turcos, que ameaçavam a Europa, e de promulgar um novo imposto para este fim. O papa então comissionou Cajetano a se entrevistar com Lutero e o obrigar a se retratar. Se o monge negasse, deveria ser levado prisioneiro a Roma.

No entanto, o príncipe eleitor Frederico, o Sábio da Saxônia, em cuja jurisdição vivia Lutero, obteve um salvo conduto do imperador Maximiliano para Lutero, a quem se dispôs a ajudar em Augsburgo, mesmo sabendo que pouco mais de cem anos antes, e em circunstâncias muito parecidas, Jan Huss tinha sido queimado em violação a um salvo-conduto imperial. A entrevista, que ocorreu entre 12 e 14 de outubro, não rendeu o resultado desejado. O cardeal se recusava a discutir com o monge e exigia sua renúncia. Por outro lado, Lutero não estava disposto a se retratar antes de ser convencido de seu erro. Quando descobriu que Cajetano poderia levá-lo a Roma como prisioneiro, abandonou a cidade às escondidas na noite do dia 20 para o dia 21.

Frederico ajudava Lutero não por que estava convencido por suas doutrinas, mas sim por que ele desejava que fosse dado um tratamento justo a Lutero. Ele desejava evitar o que havia acontecido com Jan Huss anos antes. Assim estavam as coisas, quando em janeiro de 1519, morre o imperador Maximiliano. A escolha de sucessores ao trono alemão não era feita por sucessão, e sim por eleição. Logo começou-se a discutir quem seria o sucessor de Maximiliano. Os dois candidatos mais poderosos eram Carlos I da Espanha e Francisco I, da França. Para o papa, nenhum dos dois candidatos convinha ser eleito, já que o império alemão fortaleceria qualquer um dos dois de forma desproporcional. Roma precisava de um candidato cujos atrativos residiam não no poder, mas sim, na sabedoria e justiça. E por isto não havia candidato melhor que Frederico.

Desta forma, como Frederico defendia Lutero até que este tivesse um julgamento justo pelo menos, Leão X prorrogou a condenação de Lutero, enquanto se aproximava do eleitor que o protegia. Por fim, Karl von Miltitz, parente de Frederico, foi enviado pelo papa à Alemanha, para obter uma solução amigável. Em entrevista com Lutero, conseguiu deste a promessa de não continuar a controvérsia desde que seus inimigos fizessem o mesmo. Isto trouxe uma breve trégua.

Isto durou até que Johannes Eck desafiasse, não Lutero, mas sim Karlstadt, colega de Lutero na universidade de Wittenberg, a um debate em Leipzig a cerca das doutrinas do livre-arbítrio e da graça, que ocorreu em Junho de 1519. Karlstadt havia se convencido das doutrinas de Lutero, porém era muito mais impetuoso e exagerado que Lutero. Como suas doutrinas seriam discutidas em Leipzig, Lutero declarou que participaria também do debate.
Quando chegou o momento de Eck e Lutero debaterem, ficou claro que Lutero conhecia mais sobre as Escrituras, enquanto Eck estava mais à vontade nas matérias de Direito Canônico e Teologia Medieval. O assunto do debate foi expandido, e Eck foi mais hábil em levar a discussão para as áreas que dominava. Assim, Eck obrigou Lutero a declarar que o Concílio de Constança havia se enganado ao condenar Huss, e que um cristão com a Bíblia, no seu entender, tem mais autoridade que todos os papas e os concílios contra ela. Isto foi o suficiente para Eck acusar Lutero de herege, por apoiar um herege condenado (Huss) por um concílio ecumênico.

Neste tempo, Carlos I da Espanha já havia sido eleito imperador alemão, por isto o papa não precisaria mais adiar nenhuma condenação de Lutero. Por outro lado, os defensores da causa de Lutero souberam aproveitar bem as condições políticas em seu favor. Além do número sempre crescente de seus seguidores, Lutero tinha as simpatias dos humanistas, que viam nele um defensor da reforma que eles mesmos propunham, e dos nacionalistas, para quem o monge era o porta-voz do protesto alemão diante dos abusos de Roma.

Excomunhão

Assim, o papa tardiamente agiu, enviando a bula Exsurge domine, em 15 de junho de 1520, onde ordenava que os livros de Lutero fossem queimados, dando ainda sessenta dias para se submeter à autoridade romana, sob pena de excomunhão e anátema. As obras do Reformador foram queimadas em muitos lugares onde foi recebida. No entanto, quando Lutero a recebeu, a queimou juntamente com outros livros com as doutrinas dos papistas. Este era o rompimento definitivo.

Dieta de Worms

Embora o imperador Carlos V fosse católico fervoroso, não hesitou em usar o caso de Lutero para obter o apoio papal. Em todo caso, decidiu-se que Lutero deveria comparecer à dieta de Worms, que ocorreu
de 28 de janeiro até 25 de maio de 1521. Esta dieta reunia vários súditos do império, e o príncipe eleitor Frederico obteve salvo-conduto para que Lutero pudesse comparecer à dieta, o que ocorreu no dia 18 de abril.

No interrogatório, Lutero foi apresentado a vários livros de sua autoria, para ser questionado se eles eram realmente seus livros, o que ele confirmou. Sendo confirmada a autoria dos livros, o interlocutor perguntou a ele se ele continuava sustentando as doutrinas ensinadas naqueles livros.

Este era um momento muito difícil para Lutero, que temia não o imperador ou o papa, mas sim a Deus, que os ordenara. Assim, pediu um dia para refletir sobre sua resposta.
No dia seguinte, a pergunta foi refeita. Em sua resposta, Lutero dividiu seus escritos em três categorias: a primeira não era mais que a doutrina cristã que tanto ele como seus inimigos sustentavam, e portanto ninguém deveria pedir-lhe que se retratasse daquilo. A segunda parte tratava sobre a tirania e as injustiças a que estavam submetidos os alemães, e também disto não se retrataria, pois tal não era o propósito da dieta, e tal negação somente contribuiria para aumentar a injustiça que se cometia. A terceira parte, que consistia em ataques a certos indivíduos e em pontos de doutrina que seus oponentes refutavam, certamente não havia sido escrita com demasiada aspereza.
 
E assim tão pouco dela se retrataria, a não ser que lhe convencessem de que estava enganado. Seu interlocutor insistiu: “Retratas-te, ou não”? E Lutero lhe respondeu em alemão mesmo “Não posso nem quero retratar-me de coisa alguma, pois ir contra a consciência não é justo nem seguro. Deus me ajude. Amém”. Alguns ainda dizem que ele acrescentou as palavras: “Aqui estou e não posso fazer diferente”. Mas atualmente se acredita que tais palavras foram adicionadas posteriormente.

Nos próximos 5 dias conferências foram mantidas para se decidir o destino de Lutero. Temendo pela própria vida, Lutero fugiu de Worms, antes que sua condenação fosse declarada. Durante a fuga, Lutero foi sequestrado por um grupo de homens armados, a
mando de Frederico, o sábio, e foi levado ao castelo de Wartburg, em segredo. Ali Lutero passaria um bom tempo escondido.

Tradução da Bíblia

Lutero ficaria no castelo de Wartburg até 1 de março de 1522, sob o pseudônimo de Junker Jörg. Dedicaria seu tempo
a escrever, e entre as obras mais importantes de Lutero, está o início da tradução do Novo Testamento para o alemão, obra que ele terminaria 2 anos depois (o Velho Testamento levaria mais de 10 anos). Esta importante obra deu forma ao idioma alemão, além de permitir o povo a ler as Escrituras.

Enquanto Lutero estava no exílio, vários de seus colaboradores continuaram seu trabalho em Wittenberg, entre eles Karlstadt e Phillip Melanchthon. Lutero era tão temente a Deus que tinha vacilado em dar os passos concretos que seguiam sua doutrina. Em sua ausência, estes passos foram dados de forma mais rápida. Muitos monges e freiras deixaram seus conventos e se casaram, o culto foi simplificado, usava-se o alemão no culto, abandonou-se as missas pelos mortos, cancelaram-se os dias de abstinência e jejum. Melanchthon começou a oferecer a comunhão de ambos os modos, dando o cálice para os leigos também.

Isto era bem visto para Lutero no começo, mas quando Karlstadt começou a se dedicar a derrubar imagens, Lutero lhes aconselhou moderação. O clima instável em Wittenberg facilitou a entrada de três leigos conhecidos por Profetas de Zwickau, que diziam que Deus lhes falava diretamente, e não tinham necessidade das Escrituras. Melanchthon não sabia responder a estas pretensões, então pediu conselhos a Lutero em Wartburg. Este percebeu que o que estava em jogo era nada mais nada menos que o Evangelho, e retornou a Wittemberg, em 6 de março de 1522.

O retorno a Wittenberg pôde ser feito em segurança, por causa das condições políticas. Pouco tempo depois da dieta de Worms, o papa Leão X morria. Carlos V, embora quisesse acabar com o protestantismo luterano, tinha problemas com Francisco I, da França, e não podia molestar seus súditos alemães.

Por oito dias ele pregou 8 sermões conhecidos por Sermões Invocavit, onde ele se concentrou nos valores cristãos do amor, paciência, caridade e liberdade, lembrando os
cidadãos para que confiem em Deus e não na violência para que eles consigam as mudanças necessárias. O efeito da intervenção de Lutero foi imediato.

Casamento e família

Em abril de 1523, Katharina von Bora e outras 8 freiras fogem do convento cisterciense de Nimbschen, na Saxônia. Desde então, elas vivem em Wittenberg. Posteriormente, em 13 de junho de 1525, Katharina e Lutero se casam, adiando as festividades para o dia 27.

Nesta época, alguns
pastores já haviam se casado, como Andreas Karlstadt e Justus Jonas, mas o casamento de Lutero deu o selo de aprovação ao casamento clerical. Lutero já havia condenado o celibato usando bases bíblicas, mas mesmo assim a decisão de se casar pegou todos de surpresa.

Katharina passa então a ser de grande ajuda aos problemas pessoais de Lutero. Através do abrigo de estudantes e da anotação de vários discursos de Lutero, ela preveniu várias dificuldades econômicas. Juntos tiveram 6 filhos:
  • Johannes, nascido em 7 de junho de 1526 em Wittenberg, falecido em 27 de Outubro de 1575 em Königsberg (Preußen),
  • Elisabeth, nascida em 10 de dezembro de 1527 em Wittenberg, falecida em 3 de agosto de 1528 em Wittenberg,
  • Magdalena, nascida em 4 de maio de 1529 em Wittenberg, falecida em 20 de setembro de 1542 em Wittenberg,
  • Martin, nascido em 7 de novembro de 1531 em Wittenberg, falecido em 4 de Março de 1565 em Wittenberg,
  • Paul, nascido em 28 de janeiro de 1533 em Wittenberg, falecido em 8 de Março de 1593 em Leipzig,
  • Margarethe, nascida em 17 de dezembro de 1534 em Wittenberg, falecida em 1570
    em Mühlhausen/Ostpreußen.
Rebelião dos camponeses

Em 1525, estoura a rebelião dos camponeses. Estes tinham sofrido por várias décadas uma opressão sempre crescente
e já haviam ocorrido rebeliões em 1476, 1491, 1498, 1503 e 1514. Porém nenhuma delas teve a magnitude da de 1525. Além disto, a baixa nobreza acabara de perder suas poucas terras para a alta nobreza.

A esta nova rebelião, um novo fator se somou: a pregação dos reformadores. Embora Lutero não cria que sua pregação devesse ser aplicada em termos políticos, houve muitos que não estiveram de acordo com ele nesse ponto. Entre eles estava Tomás Muntzer, natural de Zwickau, tendo doutrinas que se pareciam muito com as dos profetas de Zwickau.

À parte de Muntzer, a revolta também possuía um caráter religioso. Quando elaboraram seus “doze artigos”, os camponeses apresentaram várias demandas econômicas, mas outras eram religiosas. Porém tratavam de baseá-las todas nas Escrituras, e seu último artigo declarava que, caso fosse provado que algum de seus pedidos era contrário às Escrituras, ele seria retirado.

Em todo caso, Lutero não sabia como responder a essa nova situação. Possivelmente sua doutrina dos dois reinos era mais difícil de entender do que praticar. Quando primeiramente leu os “doze artigos”, ele se dirigiu aos príncipes, dizendo-lhes que o que se pedia era justo. Mas quando a rebelião tomou forma, e os camponeses se armaram, Lutero tratou de dissuadi-los e posteriormente instou aos príncipes que tomassem medidas repressivas. No entanto, quando a rebelião foi sufocada com violência, o Reformador exigiu misericórdia para com os vencidos.

As consequências de tudo isto foram funestas para a causa da Reforma. Os príncipes católicos culparam o luteranismo pela rebeldia e, a partir de então, proibiram todo intento de pregar-se a reforma em seus territórios. E quanto aos camponeses, muitos deles abandonaram o luteranismo, e regressaram à velha fé ou se tornaram anabatistas.

Organização eclesiástica

Os problemas políticos continuavam impedir que Carlos V aplicasse as resoluções da dieta de Worms. Isto deu a Lutero tempo suficiente para organizar o culto.Assim, de 1525 a 1529, Lutero estabeleceu um corpo eclesiástico supervisório, estabeleceu uma nova forma de adoração, e elaborou dois catecismos.


Para não confundir muito o povo, Lutero não fez mudanças muito drásticas no culto. Isto não foi bem visto por outros reformadores, que viam no culto de Lutero um culto muito papista. Por outro lado, Lutero escreveu vários hinos, se destacando como escritor de hinos.

Colóquio de Marburgo

Em outubro de 1529, Filipe I de Hesse, adepto do protestantismo, convoca uma reunião de teólogos alemães e suíços no Colóquio de Marburgo, a fim de estabelecer a unidade dos Estados protestantes emergentes. Após discussões, 14 dos 15 pontos discutidos tiveram concordância por parte de todos. A única exceção seria sobre a natureza da Eucaristia, onde Lutero e Zuínglio discordavam, e se relacionava estritamente com o restante de suas teologias.


Além de Lutero e Zuínglio, o Colóquio contou com a participação de Johannes Agricola, Johannes Brenz, Martin Bucer, Caspar Hedio, Justus Jonas, Filipe Melanchthon, Johannes Oecolampadius, e Andreas Osiander.

Sobre a questão Eucarística, os teólogos alemães e suíços nunca chegaram a um consenso. No entanto, o colóquio de Marburgo foi importante para a formulação da confissão de Augsburgo.

Confissão de Augsburgo

A dieta de Spira, em 1529, tomou um rumo muito diferente das dietas anteriores, que não tomaram nenhuma medida em relação às decisões da dieta de Worms. Naquele momento o imperador Carlos V era mais poderoso e vários príncipes que antes tinham sido moderados passaram para o lado católico. Ali se reafirmou o edito de Worms. Foi então que os príncipes luteranos protestaram formalmente e, por isso, a partir desse momento, começaram a chamá-los “protestantes”.


Finalmente, Carlos V regressou à Alemanha em 1530, para a celebração da dieta de Augsburgo. Na dieta de Worms, o Imperador não tinha desejado ouvir sobre o que se tratava o debate. Porém agora, tendo em vista o curso dos acontecimentos, pediu que lhe apresentassem uma exposição ordenada dos pontos em discussão. Esse documento, preparado primeiramente por Melanchthon, é o que se conhece como a “Confissão de Augsburgo”. No princípio representava somente os protestantes da Saxônia. Porém, pouco a pouco outros foram firmando-o e logo chegou a servir para apresentar ao Imperador uma frente quase que totalmente unida (havia outras duas confissões minoritárias que não concordavam com esta da maioria dos protestantes).

Novamente o Imperador encolerizou-se e deu aos protestantes um prazo até abril do ano seguinte para se retratar.Diante da ameaça imperial, Lutero chegou à conclusão que era lícito pegar as armas em defesa própria contra o Imperador. Os territórios protestantes formaram então a União de Esmalcalda, cujo propósito era fornecer resistência ao edito imperial, se Carlos V decidisse impô-lo pelas armas.

No entanto, questões políticas impediram novamente de Carlos V fazer o que prometia. Sendo ameaçado pelos turcos e por Francisco I, teve que recorrer aos súditos alemães, iniciando as negociações entre protestantes e católicos, chegando-se então à paz de Nuremberg, em 1532.

Segundo o acordo, era permitido aos protestantes continuar com sua fé, sem estendê-la a outros territórios. O edito imperial de Augsburgo seria suspenso e os protestantes ofereceriam ao Imperador seu apoio contra os turcos.

O problema da bigamia de Filipe de Hesse

Filipe de Hesse, que havia de ser um forte aliado dos protestantes, tinha porém uma vida muito licenciosa
. Assim que casou com a doente Christina da Saxônia, Filipe passou a cometer adultério. Já em 1526, Filipe considerava a permissividade da bigamia. Desta forma ele escreve a Lutero, alegando precedência dos patriarcas. Lutero escreve em 28 de novembro de 1526, que não era suficiente considerar os atos dos patriarcas, mas que ele deveria ter sanção divina para tal ato. Como não havia tal sanção, Lutero desencorajou tal ato, principalmente para cristãos, a menos que houvesse necessidade extrema, como por exemplo se a esposa fosse leprosa ou tivesse qualquer outra anormalidade.

Mesmo com o desencorajamento, Filipe continuou sua determinação em obter aprovação para a bigamia. Para isto, contribuiu muito os discursos de Lutero sobre o Gênesis, assim como precedentes históricos onde algo não cristão não fosse punido por Deus no caso dos patriarcas, que são chamados no Novo Testamento de modelo de fé. Assim ele propõe casamento a Margarethe von der Saale, que só concorda com isto caso seja aprovado pelos teólogos e o príncipe eleitor da Saxônia.

Filipe então ameaça o príncipe Butzer de se aliar ao Imperador, caso este não consiga convencer os teólogos a lhe ajudar. Lutero e Melanchthon são convencidos então pelos pedidos de necessidades éticas de Butzer. Assim, o “conselho secreto de um confessor” foi obtido de Lutero e Melanchthon em 10 de dezembro de 1539, sem que os dois soubessem que a esposa já tinha sido escolhida.

Butzer e Melanchthon foram chamados, sem nenhuma razão apontada, para irem a Rotenburg no Fulda, onde em 4 de março de 1540, Filipe e Margarethe se uniram. Posteriormente este caso foi revelado pela irmã de Filipe, e se tornou um escândalo, onde a reputação de Lutero sairia manchada.

Últimos anos

Lutero já vinha sofrendo de várias doenças perto do fim de sua vida. Lutero teria pregado seu último sermão
em Eisleben, em 15 de fevereiro de 1546. A viagem final de Lutero foi para Mansfeld, a fim de resolver problemas de parentes seus na mina que era de seu pai. Tudo foi resolvido de forma bem sucedida em 17 de fevereiro de 1546. Depois das 8 da noite do mesmo dia, Lutero começou a sentir fortes dores no peito. Ele morreria então no dia 18 de fevereiro de 1546. Seu funeral foi feito pelos seus amigos Johannes Bugenhagen e Filipe Melanchthon, sendo enterrado na igreja do castelo de Wittenberg, embaixo do púlpito.

 Referências bibliográficas

GONZALEZ, Justo L., A Era dos Reformadores, Uma história ilustrada do Cristianismo, Editora Mundo
Cristão.

Vida e obra de Tertuliano de Cartago.

Figura contraditória e polêmica - mas de capital importância no contexto da Igreja primitiva - pouco se sabe dos dados biográficos de Tertuliano, em especial as datas de nascimento e morte. Sabe-se apenas que, como boa parte dos Pais da Igreja, Tertuliano era africano, nascido em Cartago (estima-se que por volta do ano 155 d.C.), e segundo Jerônimo relata, era filho de um centurião, o mais alto grau que um não romano podia atingir na hierarquia político-militar romana. Os cartagineses, desde os tempos de Aníbal e das Guerras Púnicas, 3 séculos antes de Cristo, nutriam uma especial aversão a Roma, e o cristianismo, nos seus primórdios, foi um fator aglutinador também do sentimento anti-romano. É nesse contexto que nasceu e viveu Tertuliano. Outra certeza que se tem a respeito dele é que suas obras foram escritas entre os últimos anos do século II e as duas primeiras décadas do século III.

O evangelho chegou à África provavelmente logo após o Pentecostes, já que, entre os ouvintes de Pedro naquele dia havia alguns judeus que habitavam “no Egito e em partes da Líbia” (Atos 2:10), e escavações na cidade de Hadrumeto (hoje na Tunísia) descobriram um cemitério judaico em que havia túmulos cristãos datados dos anos 50 e 60 d.C. O historiador Paul Johnson descreve a Igreja de Cartago como “entusiasmada, imensamente corajosa, completamente desafiadora perante as autoridades seculares, muito perseguida, intransigente, intolerante, virulenta e, de fato, violenta em suas controvérsias.

Há evidências de que Cartago e outras áreas do litoral africano tenham sido evangelizadas por essênios e zelotes cristãos, demonstrando, desde o princípio, uma tradição de militância e resistência à autoridade e à perseguição. Tertuliano corporificava essa tradição.” (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 63). A igreja africana, apesar das grandes contribuições que trouxe à Igreja primitiva, era conhecida pela sua combatividade prática e por seu silêncio literário, já que pouco se escrevia a seu respeito, talvez em função da forte perseguição das autoridades romanas.

O primeiro documento que se conhece da Igreja africana são as Atas dos mártires de Scilli – sete homens e cinco mulheres – que foram condenados pelo procônsul de Cartago a “morrer pela espada” em 17 de julho de 180. Os mártires de Scilli (um povoado pequeno e nunca mais identificado) conheciam e usavam uma tradução latina das cartas de Paulo, que levavam consigo numa “capsa” (caixa), e as Atas de seu martírio são referidas por Tertuliano em sua obra “Ad Scapulam 3” (vide trecho em destaque abaixo), o que comprova a forte influência que recebeu da primitiva Igreja africana. O fato dos mártires se valerem da versão latina das cartas paulinas revela outra faceta da Igreja africana: embora, muito provavelmente, tenha sido formada a partir das Igrejas orientais, foi nos laços com Roma que ela se solidificou, abandonando, pouco a pouco, suas referências helênicas.

UM TRECHO DE “OS MÁRTIRES DE SCILLI”

Saturnino leu a sentença na tabula: “Speratus, Nartzalus, Cittinus, Donata, Vestia, Secunda e todos os outros confessaram que vivem segundo o rito cristão. Visto que lhes foi oferecido o retorno à religião romana, e eles o recusaram com obstinação, nós os condenamos a morrer pela espada”.
Speratus: “Nós damos graças a Deus”.
"Os mártires de scilli, Tertuliano"

Sabe-se que Tertuliano recebeu sólida formação intelectual, sobretudo em direito e retórica, e, muito provavelmente, foi em Roma que viveu boa parte de seus estudos e primeiros passos na vida profissional, ainda jovem. Tertuliano teve uma juventude tempestuosa, pelo que se depreende de seus escritos. Chegou a se casar e supõe-se, com boa dose de certeza, que foi o exemplo dos mártires, não só os de Scilli, mas os de outras tantas perseguições perpetradas pelos romanos, que foi decisivo na conversão de Tertuliano, aos 40 anos de idade, que imediatamente integrou-se à já sólida Igreja africana, levando a ela o seu fervor de neófito, a sua genialidade e a instabilidade do seu temperamento, que não raro o fazia cometer excessos.

O historiador Paul Johnson chama Tertuliano de “um mestre da prosa, a prosa do retórico e do polemista. Estava em casa tanto no latim quanto no grego, mas costumava fazer uso do primeiro – o primeiro teólogo cristão a fazê-lo. Sua influência, de fato, foi imensa, precisamente por ter criado uma latinidade eclesiástica, dotou-os de sentenças inesquecíveis e influentes: ‘o sangue dos mártires é a semente da igreja’; ‘a unidade dos hereges é o cisma’, ‘creio porque é absurdo’ (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 63). Fortemente anti-gnóstico, foi Marcião o seu primeiro adversário nesta seara, a quem deplorava suas tentativas de conciliar a doutrina cristã com a filosofia grega: “o que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que relação há entre a Academia e a Igreja? O que os hereges têm com os cristãos? Nossas instruções vêm do pórtico de Salomão, que ensinou, ele mesmo, que o Senhor deve ser procurado na simplicidade de coração.

Fora com todas as tentativas de criar um cristianismo estóico, platônico e dialético!” (citado por Paul Johnson, ob. cit.). Contra Marcião, Tertuliano revela também o seu estilo irônico, ou, porque não dizer, sarcástico: “Quem sois vós? Desde quando existis? Quem vos deu o direito, ó Marcião, de serdes lenhador no meu bosque? Essa terra é minha, tenho os títulos autênticos, recebidos dos proprietários, a quem essa terra pertenceu: sou herdeiro dos apóstolos” (citado por Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 72).

O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Ed. Paulus e Ed. Vozes, 2002, págs. 1348/9) traz uma lista de suas principais obras, dividindo-as em três categorias - os escritos apologéticos, os doutrinais e os polêmicos - mas estabelecendo uma ordem cronológica:

“A 197 remontam as duas obras apologéticas mais conhecidas, o “Ad nationes” em 2 livros e o “Apologeticum”, dirigidas contra as acusações dos pagãos à nova religião; nelas a defesa e a ilustração dos costumes e das doutrinas cristãs se alternam com o ataque à conduta e às crenças dos gentios. Incerta é a colocação do “Ad martyras”, breve, mas intensa exortação aos co-irmãos para que afrontem corajosamente a perseguição. Esta está posta no início de 197 ou no curso deste mesmo ano ou em 200-203: nesse caso, os destinatários seriam os mártires conhecidos através de um outro documento antigo, a “Passio Perpetuae et Felicitatis”, um texto atribuído às vezes, pelo redator, ao próprio Tertuliano... não menos problemática a data atribuída ao “Adversus Iudaeos”, que se apresenta como o complemento de uma disputa não terminada entre um cristão e um prosélito judaico e que expõe os pontos principais da controvérsia judaico-cristã. A obra, cuja autenticidade foi longamente discutida, remontaria a 200 dC ou, segundo outros, a antes de 197. Pouco antes de 200 parece ter sido composto o “De testimonio animae, escrito apologético em que se recorre ao testemunho da alma para demonstrar a existência de Deus e outras verdades afirmadas pela doutrina cristã. Entre 200 apr. E 206, coloca-se uma importante série de tratados morais, exatamente: o “De spetaculis” (condenação dos jogos do circo, do estádio e do anfiteatro e proibição para os cristãos de neles participar), o “De oratione (sobre a oração e, especialmente, sobre o Pai-nosso), o “De patientia” (sobre a importância da “patientia” cristã, da qual Jesus deu o exemplo), o “De paenitentia” (sobre a primeira “penitência” necessária para se receber o batismo, e sobre a segunda, depois do sacramento da iniciação, que precede a reconciliação eclesiástica), o “De cultu feminarum” (sobre as vestes e os ornamentos das mulheres e a necessidade da modéstia), em 2 livros, o “Ad uxorem” (espécie de testamento espiritual em que se recomenda à esposa não passar para segundas núpcias), em 2 livros. Ao mesmo período pertencem três outras obras importantes: o “De baptismo”, contra a seita dos cainitas (sobre o batismo, sua necessidade, seus efeitos, invalidade do batismo administrado pelos hereges), o “De praescriptione haereticorum” (sobre o direito de possuir e, por conseguinte, de interpretar as Sagradas Escrituras, reservado não aos hereges, mas somente à Igreja, que é sua herdeira por via de transmissão legítima, tendo ela recebido as Escrituras de Cristo através dos apóstolos; sobre os motivos pelos quais as heresias estão no erro. O termo “praescriptio” de nosso autor foi entendido em pelo menos dois sentidos: com valor propriamente jurídico e com valor retórico e dialético), e, enfim, o “Adversus Hermogenem” (uma defesa da doutrina cristã da criação contra aqueles, entre os gnósticos, que consideravam a matéria como eterna).
Nos tratados compostos a começar de 207, nota-se uma influência sempre mais nítida do montanismo, o movimento religioso frígio, nascido na segunda metade do séc. II, ao qual Tertuliano está para aderir. De 207 a 212 sucedem-se vários escritos de cunho doutrinal e antignóstico: os quatro primeiros livros do “Adversus Marcionem”; trata-se da terceira edição de uma obra já elaborada anteriormente (contra Marcião e contra sua tentativa de separar o Deus do AT daquele do NT), o “Adversus Valentinianos” (exposição e refutação da doutrina dos gnósticos valentinianos), o “De anima” (em torno da natureza, da origem, do desenvolvimento e do destino da alma, que é ao mesmo tempo refutação de doutrinas heréticas), o “De carne Christi” (sobre a Encarnação do Senhor), o “De resurrectione mortuorum” (sobre a segunda vinda de Cristo, a salvação do elemento corporal, destinado a reconjugar-se com a alma, a exigência do Juízo e a necessidade da ressurreição), o V livro do “Adversus Marcionem”. Nesta grande empresa doutrinal, Tertuliano parece querer expor os pontos essenciais da ‘regula fidei’ numa moldura que, de propósito, tem presente as dificuldades e as objeções dos heréticos, e, mais em geral, a mentalidade e a cultura de seu tempo. Outras obras, compostas neste período de sua atividade literária, a mais intensa e fecunda, têm caráter moral e prático, e de modo claro revelam a tendência montanista do escritor: como acontece com o “De exhortatione castitatis” (ainda sobre as segundas núpcias, e com atitude mais rígida), com o “De virginibus velandis” (sobre a necessidade de que as virgens tragam o véu não apenas na igreja, mas em todo lugar público), com o “De corona” (diz respeito à incompatibilidade entre cristianismo e serviço militar), com o “Scorpiace” ou remédio contra a mordida do escorpião, quer dizer, contra a heresia gnóstica, em que se exalta o valor do martírio, negado pelos hereges. O “Ad Scapulam” é como uma carta aberta, de natureza apologética, endereçada ao procônsul da África Scapula que, por volta de 211, havia começado a perseguir os cristãos. Sobre o “De idolatria” (contra toda prática idolátrica e contra toda atividade e profissão que esteja em contato com ela), os pareceres sobre sua data estão divididos: se muitos historiadores consideram ter sido composto pouco antes de 212, outros propõe 197 ou os anos imediatamente posteriores (é o caso também de “De pallio”, uma resposta polêmica e amarga do escritor, dirigida a todos aqueles seus concidadãos que dele zombavam por haver deixado a toga romana para vestir a capa dos filósofos: em sua brevidade e obscuridade, foi classificado ora como o primeiro, ora como o último dos tratados de Tertuliano, ou foi colocado em período intermédio).
No terceiro e último período vemos o escritor africano já militando, contra a Grande Igreja, no partido dos montanistas. Interrogou-se acerca do caráter do montanismo africano comparado com aquele da Frigia; e se alguns críticos supuseram diferenças, outros as negaram, identificando o primeiro com o chamado movimento tertulianista (cf. D. Powell, ‘Tertullianists and Cataphrygians’, p. 33s). A partir de 212-213, enumeram-se o “De fuga in persecutione” (sobre a inadmissibilidade de fuga durante a perseguição), o “Adversus Praxeam” (contra o patripassiano Práxeas expõe-se a doutrina sobre a Trindade), o “De monogamia” (ainda contra as segundas núpcias, com textos mais radicais e tons mais duros), o “De ieiunio adversus Psychicos” (defesa da prática montanista sobre o jejum e ataque aos ‘psychici’, isto é, aos católicos, acusados de serem laxistas) e o “De pudicitia”, onde se nega à Igreja o direito de perdoar os pecados, reservando-o aos “homens espirituais”, quer dizer, aos apóstolos e aos profetas; afirma-se que alguns pecados gravíssimos (idolatria, fornicação, homicídio) não têm perdão de ninguém e se tem em mira um bispo que, a respeito do último ponto, expressou opinião oposta. A parábola religiosa de Tertuliano chegou assim a seu termo: a polêmica posta em ato por ele está em seu cume, tanto que várias idéias que se lêem nas últimas obras estão em contradição com outras, de obras precedentes.
Jerônimo (cf. De vir. Ill. 53) assinala um motivo de difícil verificação que teria levado o escritor africano para a órbita do montanismo: a invidia e as contumeliae que o clero de Roma teria manifestado contra ele num conflito de que ignoramos todas as minúcias e que, se realmente existiu, se pode supor ter-se relacionado justamente com questões disciplinares; nem se pode, a este respeito, esquecer do rancor que Jerônimo tinha para com o clero de Roma. Com probabilidade, circunstâncias exteriores e afinidades interiores o induzem a aderir ao movimento montanista, permitindo-lhe levar às extremas consequências um ideal de vida rígido e sem meias medidas, para o qual sempre havia sentido uma propensão; solução esta favorecida certamente pela concepção que Tertuliano tem da moral: seu espírito ascético e rigorista era fustigado pelas noções de justiça, retribuição, temor, também esperança, mas não parece inspirado suficientemente pelo amor. Neste sentido, o montanismo havia apenas acelerado um processo iniciado bem antes, brotado da profunda esperança pessoal do homem.”

Apesar de suas contradições, as obras de Tertuliano são decisivas para a formação e consolidação da Igreja primitiva. Primeiramente, ele valeu-se de seus estudos jurídicos para enriquecer o vocabulário teológico com termos, por assim dizer, importados do Direito, como “sacramentum”, que originalmente significava a entrega de uma soma para um processo e, depois, o juramento militar do recruta. Tertuliano cria um neologismo para essa palavra, aplicando-a ao engajamento batismal a serviço de Cristo. Por “persona” ele traduz o grego “hypostasis” (substância) ou “prosopon” (máscara, pessoa), em que a pessoa representa um papel sem perder sua individualidade, para usar a palavra para as pessoas da Trindade.

Seu livro “A Oração” (“De oratione”) foi o encanto de gerações, onde ele comentava o Pai-Nosso, desenvolvendo as condições e as características da oração cristã. Eis o preâmbulo (Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 73):

De Deus o espírito,
E de Deus a palavra,
E de Deus a sabedoria,
E o Espírito dos dois. Jesus Cristo, nosso Senhor,
Aos discípulos novos do Novo Testamento
Ordenou uma forma nova de oração.
"A Oração - Tertuliano"

Em sua obra “Apologeticum”, Tertuliano faz as vezes de um advogado ao defender o Cristianismo. Assim, por exemplo, referindo-se à carta na qual Trajano ordenou a Plínio que condenasse aqueles cristãos acusados diante dele, mas que não perseguisse aqueles que não eram acusados, Tertuliano escreve:

“Ó miserável pronunciamento – de acordo com as necessidades do caso, uma incoerência! Proíbe de irem à procura deles como se fossem inocentes, e ordena que sejam punidos como se fossem culpados. É ao mesmo tempo misericordioso e cruel; ao mesmo tempo, ignora e pune. Por que fazes um jogo de palavras contigo mesmo, Ó Julgamento? Se condenas, porque também não inquires. Se não inquires, por que também não absolves?”
"Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 168"

Prova de sua inteligência argumentativa é também a sua “Praescriptione haereticorum” (“Prescrição contra os hereges”), em que usa a palavra “prescrição” principalmente no seu sentido jurídico, valendo-se de um argumento definitivo: “se os hereges não têm direito de usar as Escrituras, torna-se impossível para eles discutir com aqueles que possuem e defendem a ortodoxia, a fim de desviá-los da verdadeira fé. A “praescriptio” é total: os hereges estão excluídos de qualquer discussão; somente as igrejas ortodoxas e apostólicas têm o direito de determinar o que é e o que não é doutrina cristã” (Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 173).

Entretanto, é na sua obra “Adversus Praxean” (“Contra Práxeas”), que Tertuliano atingiu o cume de suas formulações teológicas, ao defender a doutrina da Trindade. Pouco se sabe sobre Práxeas, a não ser que ele parece ter vindo da Ásia Menor, onde conhecera tanto o monarquianismo como o montanismo, acabando por aceitar o primeiro e rejeitar o último. Chegando em Roma, Práxeas foi bem recebido, combatendo o montanismo e expandindo o monarquianismo, com ênfase no patripassianismo (o sofrimento e morte do Deus Pai), a ponto de Tertuliano atribuir-lhe essa infame dupla função: “fez um duplo serviço para o diabo em Roma: ele afugentou a profecia, e introduziu a heresia; ela afastou o Espírito e crucificou o Pai”.

Ainda valendo-se da terminologia jurídica que lhe era própria e familiar, Tertuliano desenvolveu a doutrina da Trindade, como Justo L. González expõe:

“De acordo com ele, Práxeas afirma que a distinção entre o Pai e o filho destrói a “monarquia” de Deus, mas não compreende que a unidade da monarquia não requer que ela seja sustentada por uma só pessoa. “Monarquia”, este termo tão acalentado por Práxeas e seus seguidores, significa simplesmente que um governo é único, e nada impede o monarca de ter um filho ou de administrar sua monarquia como lhe aprouver – o que Tertuliano chama de “economia” divina. Além do mais, se o pai assim quiser, o filho pode participar na monarquia sem com isso destruí-la. Portanto, a monarquia divina não é razão para se negar a distinção entre o Pai e o Filho, como alegado pelos “simples, na verdade, eu não quero chamá-los de insensatos e ignorantes”, que negam tal distinção.
Mas isto não é suficiente para refutar Práxeas, pois é necessário explicar como é possível que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam um só Deus e que eles, contudo, sejam diferentes. Aqui Tertuliano apela novamente para sua formação legal e introduz dois termos que a igreja continuaria usando por muitos séculos: “substância” e “pessoa”. O termo “substância” deve ser entendido aqui, não num sentido metafísico, e sim num sentido legal. Dentro deste contexto, “substância” é a propriedade e o direito que uma pessoa tem de fazer uso dessa propriedade. No caso da monarquia, a substância do Imperador é o Império, e é isto que torna possível para o Imperador partilhar sua substância com seu filho – como de fato era comum no Império Romano. “Pessoa”, por outro lado, deve ser entendida como “pessoa jurídica” e não no sentido comum. “Pessoa” é alguém que tem uma certa “substância”. É possível que várias pessoas participem de uma substância, ou que uma pessoa tenha mais de uma substância – e essa é a essência da doutrina de Tertuliano a respeito não apenas da Trindade, mas também a respeito da pessoa de Cristo.
Com base nesses conceitos de substância e pessoa, Tertuliano afirma a unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sem negar sua distinção: os três compartilham uma única e indivisível substância, mas isto não os impedem de serem três pessoas diferentes:
Três, no entanto, não em condição, mas em grau; não em substância, mas em forma; não em poder, mas em aspecto; todavia de uma substância, e de uma condição, e de um poder, porque ele é um Deus, de quem três graus e formas e aspectos são contados, sob o nome de Pai, de Filho e de Espírito Santo.”
"Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 174/5"

Como lembra Paul Tillich (“História do Pensamento Cristão”, Ed. Aste, 2000, pág. 61), “a palavra ‘trinitas’ aparece pela primeira vez nos escritos de Tertuliano. Embora Deus seja um só, ele nunca está só. Diz Irineu: “Estão sempre com ele a palavra e a sabedoria, o Filho e o Espírito, por meio dos quais tudo fez livre e espontaneamente”. Deus é sempre Deus vivo. Não está só. Não é uma identidade morta. Mantém em si para sempre a palavra e a sabedoria. Palavra e sabedoria são símbolos de sua vida espiritual, da sua auto-manifestação e da sua auto-realiação.

O motivo da doutrina da trindade é esse falar de Deus em termos de Deus vivo, para tornar compreensível a presença do divino como fundamento vivo e criativo do mundo. Segundo Irineu, esses três são um só Deus porque possuem uma só ‘dynamis’, um só poder de ser, uma só essência, a mesma potencialidade. “Potencialidade” e “dinâmica” são termos latinos e gregos para significar o que expressamos em nossa língua pelo termo “poder de ser”. Tertuliano falava da substância divina uma desenvolvida na economia triádica. “Economia” significa “construção”.

A divindade se constrói eternamente em unidade. Rejeita-se definitivamente qualquer interpretação politeísta da trindade. Por outro lado, Deus se estabelece como ser vivo, em contraposição à identidade morta. Assim Tertuliano empregou a fórmula “una substantia, três personae”, para falar de Deus”.

Entretanto, não foi só quanto à doutrina da Trindade que “Adversus Praxean” foi de suma importância para a formulação teológica da Igreja primitiva. Também no campo da Cristologia, uma frase “solta” do capítulo 27:11, “videmus duplicem statum, non confusum sed coinunctum in uma persona, deum et hominem Iesum” (“vemos o duplo estado, não confuso mas unido em uma só pessoa, o Deus e homem Jesus”) foi de vital importância para a definição da natureza de Jesus no Concílio de Calcedônia, em 451 d.C. Ainda que essa fórmula tenha passada quase desapercebida por mais de 200 anos, e tenha encontrado em Agostinho o seu, por assim dizer, recuperador, defensor e aperfeiçoador, chama a atenção o fato de Tertuliano tê-la colocado mais de dois séculos à frente do símbolo calcedônio, o que revela o quanto era avançado para o seu tempo.

Ainda são nebulosas as razões que teriam levado Tertuliano a aderir ao partido dos montanistas. Supõe-se que tenham sido decisivos para esta adesão o crescente poder da hierarquia eclesiástica e a sua tolerância em lidar com os pecadores arrependidos (principalmente aqueles que negavam a Cristo para fugir à perseguição e depois queriam retornar à Igreja). Jerônimo cita um motivo difícil de se comprovar, que teria levado Tertuliano às trincheiras montanistas: um suposto conflito dele com o clero de Roma. Considerando-se que o próprio Jerônimo vivia às voltas com crises com o clero romano, suas palavras devem ser recebidas com o cuidado da dúvida.

Entretanto, Paul Johnson afirma em seu livro “História do Cristianismo” (ob. cit., págs. 99/100), que:

“A gota d’água para Tertuliano ocorreu, segundo ele, quando um “grande bispo” (provavelmente Calixto de Roma) decidiu que a Igreja tinha o poder de conceder a remissão de pecados após o batismo, mesmo de pecados sérios como o adultério ou mesmo a apostasia. Foi essa reivindicação em benefício do clero – para ele, inconcebível – que fez do antigo flagelo dos hereges, por assim dizer, o primeiro protestante. E, uma vez tendo renegado os direitos clericais a esse respeito, Tertuliano foi levado, paulatinamente, a questionar os clamores clericais em favor da discriminação de status na Igreja. Em seus tempos de ortodoxia, atacara os hereges montanistas por ‘conferirem até à laicidade as funções do sacerdócio’. Agora, tendo repudiado o poder penitencial, tornou-se ele próprio montanista, pedindo, em “De Exhortatione Castitatis”:
‘não somos também sacerdotes leigos? (...) a diferença entre a ordem e as pessoas deve-se à autoridade da Igreja e à consagração de sua categoria pela reserva de um ramo especial para a ordem. Porém, onde não há assento de clero, você oferece e batiza e é seu único sacerdote. Pois, onde houver três, existirá uma igreja, ainda que sejam leigos (...) você tem os direitos de um sacerdote em sua própria pessoa, quando surgir necessidade.’
Desse modo, Tertuliano atacava bispos que apresentavam o que ele denominava ‘brandura’ no perdão dos pecadores e decaídos. Apelava para o ‘sacerdócio de todos os crentes’ contra os direitos ‘usurpados’ de determinados oficiantes, o ‘senhorio’ não-espiritual, a ‘tirania’ dos clérigos. Mesmo uma mulher, se falasse com o espírito, tinha mais autoridade, nesse sentido, que o maior dos bispos. Este representava um ofício vazio; ela, o espírito vivo. A divisão era bem delineada – entre uma Igreja de devotos, que administravam a si próprios, e uma imensa ralé de devotos e pecadores, que tinha de ser administrada por um clero profissional. Como poderia tal Igreja ser equacionada com a doutrina clara de S. Paulo? Tertuliano leu Romanos, como faria Lutero. O Espírito, a seu ver, não relaxa seu rigor; julga sem parcialidade nem leniência e jamais perdoará alguém em pecado mortal.”

“De pudicitia”, uma das últimas obras de Tertuliano (aprox. 217-222) marca o fim do, por assim dizer, ‘rastreamento’ da sua passagem pelo planeta. Depois disso, nada mais se sabe do seu paradeiro ou de seu fim. Provavelmente morreu em Cartago, já que os registros dão conta de que fez uma única viagem a Roma na juventude, não saindo mais da cidade natal. O bispo de Cartago, Cipriano, morto em 258, conhece as obras de Tertuliano, mas não o menciona. Jerônimo esconde-se atrás de um prudente “diz-se que...” para dizer que Tertuliano viveu até idade avançada. No seu “Manual de Patrologia” (Ed. Vozes, 2003, pág. 161), Hubertus R. Drobner afirma que “apesar de tudo Tertuliano foi lido até a Idade Média, sendo considerado tão importante que, segundo o relato de Jerônimo (“De viris illustribus 53”), Cipriano lia diariamente suas obras, e, quando queria tê-las à mão, bastava que dissesse a seu notarius: ‘Traze-me o mestre’”. Agostinho, por fim, afirma que Tertuliano se colocou bem depressa em desacordo com os montanistas e formou pequenos grupos próprios, existentes em Cartago no tempo em que Agostinho vivia (“De haeres. 86”). Desta forma, contribuiu para que Tertuliano fosse reabilitado e reconciliado postumamente com a ortodoxia da Igreja.

Para ler a “Apologia” (“Apologeticum”) de Tertuliano, acesse:

http://www.tertullian.org/brazilian/apologia.html