“Não há democracia efetiva sem um verdadeiro poder crítico”
“Nada é mais adequado que o exame para inspirar o reconhecimento dos veredictos escolares e das hierarquias sociais que eles legitimam”
Pierre Bourdieu nasceu em 1930 no vilarejo de Denguin, no sudoeste da França. Fez os estudos básicos num internato em Pau, experiência que deixou nele profundas marcas negativas. Em 1951 ingressou na Faculdade de Letras, em Paris, e na Escola Normal Superior. Três anos depois, graduou-se em filosofia. Prestou serviço militar na Argélia (então colônia francesa), onde retomou a carreira acadêmica e escreveu o primeiro livro, sobre a sociedade cabila. De volta à França, assumiu a função de assistente do filósofo Raymond Aron (1905-1983) na Faculdade de Letras de Paris e, simultaneamente, filiou-se ao Centro Europeu de Sociologia, do qual veio a ser secretário-geral. Bourdieu publicou mais de 300 títulos, entre livros e artigos. Fundou as publicações Actes de la Recherche en Sciences Sociales e Liber. Em 1982, propôs a criação de uma “sociologia da sociologia” em sua aula inaugural no Collège de France, levando esse objetivo em frente nos anos seguintes.
Quando morreu de câncer, em 2002, foi tema de longos perfis na imprensa européia. Um ano antes, um documentário sobre ele, Sociologia É um Esporte de Combate, havia sido um sucesso inesperado nos cinemas da França. Entre seus livros mais conhecidos estão A Distinção (1979), que trata dos julgamentos estéticos como distinção de classe, Sobre a Televisão (1996) e Contrafogos (1998), a respeito do discurso do chamado neoliberalismo.
Embora a maioria dos grandes pensadores da educação tenha desenvolvido suas teorias com base numa visão crítica da escola, somente na segunda metade do século 20 surgiram questionamentos bem fundamentados sobre a neutralidade da instituição. Até ali a instrução era vista como um meio de elevação cultural mais ou menos à parte das tensões sociais. O francês Pierre Bourdieu empreendeu uma investigação sociológica do conhecimento que detectou um jogo de dominação e reprodução de valores.
Suas pesquisas exerceram forte influência nos ambientes pedagógicos nas décadas de 1970 e 1980. “Desde então, as teorias de reprodução foram criticadas por exagerar a visão pessimista sobre a escola”, diz Cláudio Martins Nogueira, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. “Vários autores passaram a mostrar que nem sempre as desigualdades sociais se reproduzem completamente na sala de aula.” Na essência, contudo, as conclusões de Bourdieu não foram contestadas.
Na mesma época em que as restrições a sua obra acadêmica se tornaram mais freqüentes, a figura pública do sociólogo ganhou notoriedade pelas críticas à mídia, aos governos de esquerda da Europa e à globalização. Ele costuma ser incluído na tradição francesa do intelectual público e combativo, a exemplo do escritor Émile Zola (1840-1902) e do filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980).
Valores incorporados
O livro A Reprodução (1970), escrito em parceria com Jean-Claude Passeron, analisou o funcionamento do sistema escolar francês e concluiu que, em vez de ter uma função transformadora, ele reproduz e reforça as desigualdades sociais. Quando a criança começa sua aprendizagem formal, segundo os autores, é recebida num ambiente marcado pelo caráter de classe, desde a organização pedagógica até o modo como prepara o futuro dos alunos.Para construir sua teoria, Bourdieu criou uma série de conceitos, como habitus e capital cultural. Todos partem de uma tentativa de superação da dicotomia entre subjetivismo e objetivismo. “Ele acreditava que qualquer uma dessas tendências, tomada isoladamente, conduz a uma interpretação restrita ou mesmo equivocada da realidade social”, explica Nogueira. A noção de habitus procura evitar esse risco. Ela se refere à incorporação de uma determinada estrutura social pelos indivíduos, influindo em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma que se inclinam a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que nem sempre de modo consciente.
Assim, estruturas sociais e agentes individuais se alimentam continuamente numa engrenagem de caráter conservador. É o caso da maneira como cada um lida com a linguagem. Tudo que a envolve – correção gramatical, sotaque, habilidade no uso de palavras e construções etc. – está fortemente relacionado à posição social de quem fala e à função de ratificar a ordem estabelecida. Para Bourdieu, todas essas ferramentas de poder são essencialmente arbitrárias, mas isso não costuma ser percebido. “É necessário que os dominados as percebam como legítimas, justas e dignas de serem utilizadas”, afirma Nogueira.
Capital cultural
Outro conceito utilizado por Bourdieu é o de campo, para designar nichos da atividade humana nos quais se desenrolam lutas pela detenção do poder simbólico, que produz e confirma significados. Esses conflitos consagram valores que se tornam aceitáveis pelo senso comum. No campo da arte, a luta simbólica decide o que é erudito ou popular, de bom ou de mau gosto. Dos elementos vitoriosos, formam-se o habitus e o código de aceitação social.Os indivíduos, por sua vez, se posicionam nos campos de acordo com o capital acumulado – que pode ser social, cultural, econômico e simbólico. O capital social, por exemplo, corresponde à rede de relações interpessoais que cada um constrói, com os benefícios ou malefícios que ela pode gerar na competição entre os grupos humanos. Já na educação se acumula sobretudo capital cultural, na forma de conhecimentos apreendidos, livros, diplomas etc.
Com os instrumentos teóricos que criou, Bourdieu afastou de suas análises a ênfase central nos fatores econômicos – que caracteriza o marxismo – e introduziu, para se referir ao controle de um estrato social sobre outro, o conceito de violência simbólica, legitimadora da dominação e posta em prática por meio de estilos de vida. Isso explicaria por que é tão difícil alterar certos padrões sociais: o poder exercido em campos como a linguagem é mais eficiente e sutil do que o uso da força propriamente dita.