O autor faz uma breve e precisa análise da maneira com que os diversos materialismos filosóficos encaram o ser humano, contrapondo essas teorias ao humanismo cristão. O artigo reúne os dois primeiros capítulos do livro Ética Social.
1. O HOMEM
O objeto da ciência do direito natural é a ordem social, em que se condensam os direitos e obrigações jurídicas nascidas nas relações que se estabelecem entre os homens. Estas relações dão-se entre indivíduos, entre indivíduos e agrupamentos sociais e entre agrupamentos sociais. Assim, enquanto se refere à ordem social, o nosso estudo parece dever partir da sociedade como tal. É a própria peculiaridade desta que parece exigi-lo. Com efeito, a sociedade possui um ser próprio, é independente dos indivíduos no seu agir; e o indivíduo, além de estar na total dependência dela para se desenvolver, tem que se subordinar ao seu querer. Afora o mais, a sociedade sobrevive aos homens: os Estados vivem muitas gerações de homens, as nações perduram por centenas de anos. E, finalmente, o bem da comunidade sobreleva de tal modo ao bem do indivíduo que, se necessário for, pode-se exigir do indivíduo que sacrifique à comunidade os seus bens e a sua vida.
É claro que a teoria da sociedade pode começar pela análise da sociedade como um todo, pois nela se trata de penetrar a natureza da mesma e de descobrir-lhe as leis do ser, da vida e da atividade. Mas, de fato, à medida que prosseguimos no estudo e nos aproximamos da razão de ser da sociedade, deparamos com o problema de saber em que consiste a realidade social e em que se baseia. A teoria da sociedade acabará por concluir então que todo ser social depende dos homens que o integram. Se indaga das forças vitais e do agir da sociedade, mais uma vez tropeça com os homens que, ao fim e ao cabo, se encerram em seu seio, operando e agindo conjuntamente. E se, enfim, pergunta pelo sentido da sociedade, já no limite último dos fins que lhe resta investigar, terá que responder a uma interrogação sobre o fim do homem; e a interrogação é esta: o que é o homem?
Esta é, portanto, a questão básica, para a qual a teoria da sociedade e a ética social têm que encontrar uma resposta decisivamente clara e insofismável, se querem atingir a natureza, fim e ordem da vida social. Por isso, é legítimo, para não dizer obrigatório, abrir a teoria da sociedade com a resposta ao problema do homem.
É certo que ambos os processos se justificam, desde que se utilizem de maneira a compreender adequadamente a realidade total. Mas, homem e comunidade são dois pólos desta realidade. Portanto, se o método empregado se revelar incapaz de abranger a totalidade da experiência no âmbito de um destes dois pólos, então é porque é deficiente do ponto de vista científico. O resultado, nesse caso, seria forçosamente um dogmatismo ideológico, em lugar de um realismo científico.
A teoria social do individualismo partiu do indivíduo como ser acabado em si mesmo e em si mesmo exclusivamente baseado quanto ao seu valor; mas nunca chegou realmente a um conceito de comunidade enquanto realidade portadora de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo. Em contrapartida, a teoria social de todas as formas de coletivismo parte do ser da sociedade, tomando-o por valor primário e incondicionado; mas sem compreender jamais a realidade total da pessoa humana, com os seus fins supra-sociais e o seu valor de ordem supra-social. Entretanto, nem o sistema de valores individualista nem o socialista, nem as ideologias sociais neles baseadas, foram, na prática, aplicados por completo; de resto, nunca o poderiam ser: a natureza humana não permite tanto. Foi por isso que, na teoria e na prática, sofreram modificações mais ou menos amplas.
Seja como for, não constitui objetivo desta exposição ocupar-se com esse problema. Já fizemos, noutro trabalho, uma investigação mais profunda nesse sentido. Demais, os programas e táticas dos grupos e partidos, que são arautos desses sistemas de valores, mudam. E não são as particularidades de tais programas o que constitui matéria de uma ética de direito natural; são-no antes as concepções sociais e sistemas de valores que lhes servem de fundamento.
Deve-se notar, porém, desde o início, que a indispensável crítica não significa de maneira alguma uma rejeição indiscriminada de todas as tendências e resultados dos movimentos sociais e formas da sociedade individualistas ou social-coletivistas, da Idade Moderna ou Contemporânea. O movimento liberal, com as suas exigências de liberdade em todos os setores do agir humano, redundou parcialmente numa insurreição sadia e justa contra ordenamentos e instituições obsoletas da vida social, econômica e política. No continente europeu, foi o instrumento da revolução contra o absolutismo, contra o Estado-polícia, contra a regulamentação mercantilista da vida econômica e social. Por outro lado, e pelo menos em parte, o movimento socialista, na medida em que removeu o centro de gravidade da ordem social para o lado oposto, deve ser entendido como reação contra os vícios da sociedade moderna, produzidos pelas forças individualistas. E, com efeito, estes movimentos podem registrar em todos os países êxitos reais e duradouros do seu esforço no sentido de uma reforma social, conforme o reconhecem os partidários de todas as concepções sociais.
Posto isto, voltemos ao que dissemos acima: o problema do ser e da ordem social sempre desemboca nesta pergunta: o que é o homem? Levanta-se, por conseguinte, o problema da natureza do homem. E, justamente por isso, ocupar-nos-emos dele nos próximos capítulos.
II. A NATUREZA DO HOMEM
Antes de mais nada, convém dar uma vista de olhos as concepções atuais acerca da pessoa humana; porque, dentro da moderna teoria da ciência (teoria do conhecimento e metodologia das ciências), há um fato inquestionável: e é que o pensamento científico está determinado por concepções, consciente ou inconscientemente defendidas. É por isso que, especialmente no âmbito das ciências sociais, o cientista tem obrigação de começar por uma autocrítica que lhe permita explicar-se devidamente sobre as suas próprias concepções fundamentais, pondo-as a salvo de quaisquer equívocos. Esta autocrítica far-se-á, no presente capítulo, a par de um confronto entre as concepções acerca da natureza do homem, hoje reinantes. Frise-se desde já, no entanto, que a nossa teoria do homem, bem como os princípios éticos nela fundamentados, não deriva das idéias que passamos a expor seguidamente, pois preferimos obtê-la mediante uma análise da realidade e da própria experiência. É esta análise que nos ocupará nos capítulos subseqüentes, fornecendo-nos, além do mais, o ensejo para abordar detalhadamente a questão do método da ética. Por outro lado, como hoje em dia os vários sistemas da teoria do homem se costumam apresentar a título de formas de humanismo, resolvemos aproveitar também esta expressão.
1. O HUMANISMO CRISTÃO
A primeira forma de humanismo a considerar é a que se vem denominando humanismo cristão. Corresponde a teoria tradicional do direito natural, iniciada por Agostinho, e baseia-se nos fatos e noções que se seguem.
1. A teoria tradicional do direito natural colhe na antropologia empírica, que elabora e ordena sistematicamente os dados de experiência da realidade humana, duas noções fundamentais: em primeiro lugar, o homem pertence ao reino animal pelo seu corpo; por outro lado, contudo, representa uma “espécie” única em sentido zoológico, pois todas as “raças” humanas são capazes de se cruzarem ilimitadamente.
A segunda noção que tomamos da antropologia empírica diz-nos que o homem é um ser provido de razão. O homem é homo faber, o único ser vivo que fabrica utensílios compreendendo a relação entre causa e efeito, graças a sua capacidade de abstração. É o único ser vivo capaz de se determinar conscientemente na sua conduta. E o seu poder de conhecer e autodeterminar-se define-o como animal rationale e homo sapiens, distinguindo-o essencialmente do mundo animal.
2. Da antropologia metafísica que, partindo da experiência, penetra a essência do homem, extrai a teoria tradicional outras duas noções. Primeiro, o homem possui uma alma. Em segundo lugar, e em conseqüência da sua natureza a um tempo corporal e espiritual, o homem é um ser social, isto é, um ser que só no seio da sociedade encontra o seu pleno desenvolvimento.
Para a teoria tradicional, a metafísica fundamenta-se na experiência, seguindo a convicção de que a metafísica só cumpre metodicamente a sua missão quando for capaz de relacionar as suas conclusões com todo o domínio da realidade experimental concernente ao seu objeto. Não há dúvida de que nenhuma metafísica poderia pretender resolver todos os seus problemas com uma certeza indiscutível. Mas também não é menos certo que qualquer metafísica que se feche parcialmente a experiência, tentando preterir o esclarecimento de fatos da realidade, cai em dogmatismos de um ou outro tipo, isto é, em conjeturas e afirmações sem cabal fundamentação filosófica ou empírica.
A antropologia metafísica da teoria do direito natural sustenta que a alma humana, ao contrário da alma animal, é de natureza espiritual, livre e imortal, sendo também a sede da razão. Daí vem a distinção essencial (dualidade) entre corpo e espírito: o corpo é de natureza material, a alma, de natureza espiritual; nenhum dos dois se pode considerar uma resultante do outro. Em conjunto, ambos formam a unidade substancial da natureza humana, em que a alma é o princípio das ações especificamente humanas, isto é, das ações próprias da essência da natureza humana. Em virtude da sua natureza simultaneamente corporal e espiritual, é o homem também essencialmente social:o desenvolvimento pleno da sua natureza, em conseqüência da falta de susceptibilidade de perfeição, está total e absolutamente condicionado, no homem individual, por uma vinculação a sociedade.
3. Na antropologia cristã, finalmente, encontra a teoria tradicional a sua inabalável certeza a respeito das noções, acima mencionadas, sobre a natureza do homem, especificada por uma alma espiritual. Referimo-nos a duas considerações relacionadas com a existência humana, que são do maior alcance para a teoria da sociedade. A primeira prende-se a realidade do pecado original, razão da possibilidade humana de errar, da perversidade da vontade e dos erros sucessivos que daí nasceram para a ordem da vida social (“questão social”). A segunda concerne ao fato de o próprio Deus ter assumido a natureza humana para entrar no mundo, corroborando na alma do homem a semelhança com a divindade, a testemunhar que o valor da pessoa, com o seu destino vinculado a alma espiritual (“dignidade da pessoa”), é superior a todo e qualquer valor terreno. Assim se explica que nem a sociedade, nem o Estado, nem a nação, nem a raça, nem o mundo inteiro, podem equiparar-se a este valor.
2. O HUMANISMO NATURALISTA
A idéia naturalista do homem, nas suas várias modalidades, opõe-se aquela que acabamos de explanar, de modos muito diversos. Em conjunto, resume-se nisto:
1. – uma crença no homem “natural”, isto é, no homem cuja finalidade da existência se limita a sua luta pela vida;
2. – a crença de que a realidade se confina aos limites da experiência;
3. – a rejeição da religião revelada.
Mas, além disso, seguindo-lhe os pressupostos e razões dadas na explicação da natureza humana – a sua antropologia –, podemos distinguir várias espécies de humanismo naturalista:
1. O humanismo racionalista
Esta corrente, bem como a sua antropologia, sobretudo em razão da sua importância no desenvolvimento histórico-cultural do pensamento naturalista, merece uma referência especial.
Em síntese, são três os princípios fundamentais em que assenta. O primeiro consiste na crença na capacidade universal da razão humana para compreender e transformar o mundo. É aquela crença que, desde os tempos de Comte (1798-1857), se foi progressivamente convertendo na convicção de que a ciência dispõe de um poder universal e absoluto. Em segundo lugar, vem a crença em que o homem, graças à sua natureza racional, é indefectivelmente bom quando encontra os pressupostos exclusivamente “naturais” do seu desenvolvimento; daí o proclamar o “regresso à natureza” (Rousseau, 1712-1778). A isto se acrescenta, em terceiro lugar, a fé na “lei do progresso” indefinido, em todos os domínios dos valores humanos e culturais: é a lei inicialmente anunciada por Saint-Simon (1760-1825) e Fourier (1772-1837). O ideal deste humanismo é o da personalidade que se realiza na harmonia do prazer e que não difere muito do que Bentham (1748-1832) expunha por essa época na Inglaterra, como “a máxima felicidade do maior número”.
As experiências feitas pela humanidade com a primeira e a segunda guerra mundiais demonstraram quanto a antropologia racionalista é contrária à realidade. Apesar de tudo, permaneceu a fé na ciência, com esperanças sempre renovadas pelo prodigioso progresso científico. Isto vale muito especialmente para as duas correntes que apontamos a seguir.
2. O humanismo científico
A teoria do homem e da sociedade formulada nesta concepção pretende ater-se exclusivamente às ciências naturais e às que, tendo o homem por objeto, se utilizam de métodos científicos, aceitando apenas o conhecimento empírico: assim, a psicologia, a sociologia e a etnologia.
É precisamente nos países anglo-saxônicos que alguns falam de um humanismo “científico-naturalista” (scientific humanism). O que move esta concepção é a esperança de que os sociólogos e os técnicos sociais venham a ser um dia capazes de realizar na organização da vida da sociedade e do Estado o mesmo que os naturalistas e os técnicos realizam no domínio externo da vida. Mas os precursores imediatos do cientismo como “concepção do mundo”, encontramo-los na Alemanha, pelos fins do século passado, entre os representantes de uma mundividência científico-naturalista. O certo é que, hoje em dia, o cientismo, que predominava apenas no mundo cultural anglo-saxônico, passou a ocupar também a primeira plana na Europa continental e, além disso, nas camadas intelectuais do mundo não-europeu. Um mundo, contudo, que em toda a parte está coberto pela sombra da angústia, pois é precisamente pelo abuso dos conhecimentos científicos que a subsistência da humanidade ou, ao menos, da cultura, se vê ameaçada de uma nova guerra mundial.
Com este humanismo científico combinam-se ainda, assumindo peculiaridades diversas, algumas teorias “científicas” sobre a natureza do homem. As principais são: a biológico-evolucionista, a psicanalítica, a utilitarista-pragmatista, a lógico-positivista e a econômico-social-determinista, a última das quais goza de favor absoluto junto do humanismo científico oriental.
Deve dizer-se, entretanto, que na base do cientismo de todas as teorias referidas está uma metafísica comum, se se entende por metafísica a adesão a certos postulados de pensamento, que não logram fundamentação alguma com os métodos das ciências naturais. De fato, o modo de conhecer próprio das ciências naturais limita-se ao mundo da experiência sensível; e, precisamente por isso, não autoriza qualquer posição cientificamente fundamentada no alcance dos seus métodos – capaz de negar uma realidade metafísica, que de longe ultrapassa aquela experiência. Mas, apesar de tudo, sucede que todo o cientismo crê poder demonstrar “cientificamente” que a aceitação de tal realidade (a autoridade sobre-humana da consciência, a liberdade da vontade, a alma espiritual, o Deus criador transcendente ao mundo) não passa de ilusão engendrada pelo homem. Cada uma das mundividências “científicas” antes mencionadas requer, por isso, uma crítica especial. É o que faremos em seguida.
3. O humanismo dialético-materialista
Na exposição da sua antropologia seguimos Lênin que com toda a razão se pretende ser o mais coerente representante do materialismo dialético. Não admira que se tenha confiado ao Instituto Marx-Engels de Moscou a tarefa de conservar e completar a tradição da interpretação leninista de Marx. Os princípios extraídos da obra de Lênin podem resumir-se nos seguintes termos: “O psiquismo, a consciência, etc., são o produto máximo da matéria altamente evoluída; uma função dessa complicada fração da matéria que se chama o cérebro humano”. “A negação materialista do dualismo espírito-corpo (monismo materialista) consiste em demonstrar que a existência do espírito depende da do corpo, considerando o espírito como algo secundário, como função do cérebro e um reflexo, enfim, do mundo externo”. Donde resulta ser a natureza do homem “matéria orgânica” altamente evoluída. “A matéria é o principal; a sensação, o pensamento, a consciência, são os produtos últimos da matéria organizada numa determinada forma”. Tal a doutrina do materialismo em geral, e, em particular, a de Marx e Engels.
A matéria orgânica é “o resultado de uma longa evolução” da “matéria em eterno movimento e transformação”: o resultado de uma evolução que consiste na “luta dos contrários”. Só “a luta dos contrários, que se excluem, tem caráter absoluto, como sucede com o movimento e a evolução”; e esta é a razão pela qual o materialismo deve ser dialético, isto é, deve “negar-se a reconhecer elementos imutáveis, qualquer essência imutável das coisas” . Toda a metafísica que se afasta do materialismo dialético, designa-a Lênin como “fídeísmo”, ou seja, como “uma doutrina que coloca o crer no lugar do saber”. Acontece, porém, que o “fídeísmo” do próprio materialismo dialético é, evidentemente, manifesto, pois, como veremos, os seus pontos essenciais apóiam-se em princípios sem fundamento, isto é, num dogmatismo.
4. O humanismo psicanalítico
Segundo a antropologia de Freud, o “mecanismo do espírito” do homem compõe-se de super-ego, ego e id: super-eu, eu e infra-eu (). O último elemento compreende o domínio do instintivo, condicionado pelo corpo, isto é, a libido, com a sexualidade por força impulsora principal. O super-ego consiste no automatismo inibitório, em consonância com as normas de conduta fundadas na educação. Como o id, também o super-ego pertence inteiramente ao “inconsciente”. Esse super-ego, com a convicção que lhe é peculiar, da autoridade sobre-humana da lei da consciência, consiste na autoridade introjetada dos pais (ou pessoas responsáveis) que, desde a tenra infância, anterior à aquisição da auto-consciência, leva a criança a reprimir a satisfação arbitrária dos instintos, sobretudo as necessidades de excreção, facilitando-lhe a submissão às normas de conduta socialmente vigentes, inclusive as morais. O ego é o elemento consciente da natureza humana. Dentro do “mecanismo do espírito”, é, assim, o que se forma no comércio consciente com o ambiente social; e, não obstante desempenhar, em comparação com os outros dois elementos, um papel relativamente pouco importante na constituição da personalidade, é ele que decide, com o seu desenvolvimento, da integração da mesma.
Este conciso resumo das idéias fundamentais da psicanálise é, para o fim que temos em vista, suficiente. A psicanálise freudiana nada sabe de uma alma espiritual e autônoma, na sua qualidade de essencialmente determinante da vida humana; por isso, como doutrina metafísica do homem, pertence à corrente da antropologia materialista. A nossa crítica não significa a rejeição da psicanálise como método de psicologia e de psicoterapia, pois, na realidade, para falarmos com R. Dalbiez, “a obra de Freud é a mais profunda análise dos poucos elementos humanos da natureza do homem, que a história conhece”.
5. O humanismo behaviorista
A antropologia desta corrente afirma, no dizer do psicólogo americano E. L. Thorndike, que, “graças às pesquisas que de há uns quarenta anos a esta parte se fizeram sobre a inteligência animal e sabendo-se o que hoje se sabe acerca do pensamento e faculdade humana de discernimento, não parece possível estabelecer uma diferença qualitativa, clara e geral, entre a capacidade intelectual do gênero humano e a dos animais inferiores”. Uma antropologia assim concebida é, como logo se intui, materialista: o homem é considerado como um animal superior sem alma espiritual.
Referindo-se à faculdade de discernimento, Thorndike chega a dizer que, “como hoje é sabido”, o homem constrói no intelecto associações, tal como o fazem os animais, se bem que em número muito maior; e que a sua capacidade de generalizar e deduzir se desenvolveu, por assim dizer, como um subproduto. Thorndike afirma ainda: “Köhler, Norman Maier, McDougal e outros foram levados finalmente à convicção” de que os chimpanzés, que usam bengalas, e os ratos, que se deixam conduzir pelo seu sentido auditivo, fazem “coisas do mesmo gênero” que “a chamada inferência silogística”. “Em geral”, se os fatos despertam o interesse dos animais e se o procedimento deles, em relação aos fatos, é vivo e multilateral, então os animais “parecem e são de certo modo” como homens...
Até aqui, Thorndike. Por nossa parte, escusado será advertir quanto semelhante processo de generalização e comparação contradiz toda e qualquer metodologia científica. Porque, comparar um “parecem” com um “são” e tomar por fundamento um vago “de certo modo”, – é tudo menos ciência. De resto, o que Thorndike, afirma, exprime a sua opinião pessoal; e nada tem a ver com a ciência uma simples opinião. Afinal, a antropologia behaviorista se funda inteiramente em dogmatismos e fideísmos preconcebidos.
6. O humanismo biológico-evolucionista
A melhor maneira de expor esta concepção é remetermo-nos a uma obra do professor Julian Huxley intitulada Evolution. Na teoria da evolução “chegou-se agora”, digamos assim, “a uma fase de síntese”. Huxley acaba por concluir que a evolução “é exatamente um produto de forças cegas como a queda de uma pedra na terra ou o fluxo e defluxo das marés. Mas somos nós mesmos quem deve dar-lhe um sentido, imitando os homens primitivos, que atribuíam vontade e sentimento aos fenômenos inorgânicos, como as tempestades e os tremores de terra. Se quisermos trabalhar para um fim no futuro do homem, então devemos formular esse fim. Os fins da vida são feitos, não achados”.
Entende este autor que todos os valores são condicionados pela evolução. Aceitar valores absolutos e a sua personificação em Deus teria sido um erro do homem: um erro que o progresso da ciência lhe permite reconhecer. Por outro lado, “o humanismo evolucionista pode tomar-se o centro de uma nova religião”, entendida esta como determinação e dever do homem no sentido de fazer frutificar as suas forças, ainda inexploradas”. Segundo a concepção desta antropologia materialista, o homem não passa de uma espécie altamente evoluída de vertebrados, “matéria vivente” e, como tal, simples resultado da evolução da “matéria cósmica”, numa determinada direção dentre muitas outras.
Um outro neo-darwinista, o professor D. M. S. Watson, confessa que é num fideísmo que se funda a antropologia materialista do neo-darwinismo: “A evolução em si mesma não é aceita pelos zoólogos por os seus pressupostos serem observados ou provados com argumentos logicamente suficientes, mas por corresponderem a fatos da classificação, da paleontologia ou da distribuição geográfica e porque nenhuma outra explicação é digna de crédito”. Mas, por que não? Watson dá esta razão: a teoria evolucionista é “aceita geralmente, não por se poderem aduzir provas logicamente contundentes da sua veracidade, mas porque a única outra explicação, a saber, a criação particular do homem, é claramente indigna de crédito”.
7. O humanismo neo-positivista
Para a antropologia do positivismo lógico, largamente dominante no pensamento filosófico da Inglaterra e da América, desde os tempos anteriores e posteriores à segunda guerra mundial, a alma do homem – segundo o professor Gilbert Ryle, um dos seus influentes representantes na Inglaterra –, embora concebida como imaterial, não é senão “o fantasma na máquina”. Para o positivismo lógico há conhecimento verdadeiro só em relação à realidade perceptível pelos sentidos, isto é, em relação a fatos verificáveis pela observação sensorial. Portanto, afirmações sobre uma realidade metafísica ou sobre valores, nada valem: nem como verdadeiras, nem como falsas; são sem sentido.
Em todo o caso, quer na vida pessoal quer na social, o homem não pode renunciar à aceitação e à afirmação de valores. Além disso, o fideísmo dos pressupostos ideológicos do positivismo lógico foi muitas vezes posto em evidência. Com efeito, temos, em primeiro lugar, que, segundo esses pressupostos, o próprio princípio de verificação não pode verificar-se empiricamente; é portanto, no sentido do positivismo lógico, uma afirmação metafísica e, por conseguinte, sem sentido. Os representantes do neo-positivismo não puderam até agora resolver essa dificuldade que lhes torna contestável todo o sistema. Em segundo lugar, eles unem estados espirituais – e ainda mais, conteúdos espirituais – àquilo que as percepções sensíveis de outros homens lhes fornecem. Ora, esses estados e conteúdos como tais, não é pela percepção sensível que são verificáveis. Por isso, só pondo-se em contradição com os seus pressupostos de pensamento é que o representante do neo-positivismo pode tentar entender-se com os outros homens no concernente a esses estados e conteúdos. Mas o positivismo lógico nunca tentou formular uma teoria social; todas as formas sociais, para ele, apenas podem ser a resultante das tendências de valor atuantes numa sociedade.
8. O humanismo existencialista
Apesar das múltiplas divisões em que se desdobra, o humanismo existencialista mantém sempre um cunho próprio que o distingue de todas as outras correntes de antropologia naturalista. Esse cunho especial consiste em afirmar que não podemos saber nada sobre a essência do homem, sendo-nos cognoscível apenas a sua existência. Por outras palavras: só o “como” do homem se pode conhecer, e não o “quê”.
Em contraste com o simples “estar-aí”, o existir “próprio” do homem seria condicionado pela realização de si mesmo no mundo histórico e, portanto, pela situação concreta de cada momento. Esta auto-realização liga-se à decisão do homem baseada na liberdade; e, por conseqüência, só é possível mediante um “projeto-de-si-mesmo”. Daí que, para esse existir, não possa haver nenhuma escala de valores universal. Quer dizer: só o seu próprio existir pode revelar ao homem a lei das suas próprias decisões. Como se vê, este existencialismo contesta a existência de uma ordem moral universal tomada na qualidade de ordem resultante da natureza (essência) mesma do homem. A oposição da antropologia existencialista à fundada no direito natural é patente: porque o princípio fundamental desta última, seja qual for a forma em que se apresente, reside na possibilidade do conhecimento da natureza e mesmo da sua essência e da ordem existencial própria do homem e da sociedade que ela implica.
Por muito importante que seja para a ética, em razão da sua nítida valorização anti-determinista da liberdade, e em razão também da exaltação do caráter consciente do existir propriamente dito, – a filosofia da existência limita-se quase exclusivamente à existência individual: atribui grande importância, sem dúvida, à existência humana, fundada na liberdade; mas, até agora, pouco contacto manteve com a esfera da natureza social do homem e com as questões da ordem social (sobre as novas tendências, ver cap. 39).
9. O humanismo idealista
Enquanto o monismo (identificação essencial entre matéria e espírito) de feição materialista faz do espírito humano uma forma da evolução da matéria, o monismo idealista concebe o homem, e em geral todo o real, como forma evolutiva do espírito, sendo este a realidade essencial do mundo (hoje, esta filosofia é muitas vezes designada como psiquismo).
A filosofia do monismo idealista, na feição que lhe deu Hegel, é da maior importância para a teoria dá sociedade, uma vez que concebe o Estado como forma “superior” da auto-realização do espírito. É neste sentido que, “enquanto (o Estado) é o espírito objetivo, o indivíduo em si mesmo só tem objetividade, verdade e moralidade, como membro do Estado”. E assim, o movimento idealista conduz em linha reta ao princípio totalitário da “identificação do Estado com o indivíduo”, na expressão com que Gentile o formulou para o fascismo italiano. Havia nisto uma influência de Hegel, embora este tivesse certamente rejeitado toda forma de Estado moderno totalitário. Com efeito, segundo a concepção de Hegel, a história do mundo, em última análise, não é mais do que a evolução da idéia de liberdade. Seja como for, bem podemos dizer que o atual idealismo de Gentile, admitindo a existência do espírito só em dependência da ação e não como ser em si, podia achar apoio no pensamento de Hegel. Basta atentar nalgumas afirmações deste último: “o espírito é a verdade existente da matéria”; “o espírito só tem realidade na medida em que se contradiz a si mesmo”; e “é apenas aquilo que faz”.
A nova fórmula alemã da filosofia hegeliana, que exerceu a maior influência no domínio da filosofia social – o universalismo de O. Spann –, utiliza uma idéia parecida: a idéia da “ramificação do espírito”; e chega a uma metafísica do homem semelhante à de Hegel, concluindo: “o fato fundamental de toda a realidade social e o conhecimento fundamental de toda a ciência autêntica da sociedade é..., que não está no indivíduo a realidade propriamente dita, mas na totalidade; e que os indivíduos só têm realidade e existência enquanto membros do todo”.
NOTAS:
Parte I:
(1) Die soziale Frage im Blickfeld der Irrwege von gestern, der Sozialkämpfe von heute, der Weltentscreidungen von morgem, 6ª ed., 1956.
Parte II:
(1) Lênin, MaterialismEmpirio-Criticism, 1908. Collected Works, ed. by A. Trachtenberg, authorized by the Lenin Institute, Moscow, trans. by D. Kvitko, 1927, págs. 26, 34, 52, 65 e segs., 191, 228, 323 e segs.
(2) Lênin, ibidem, pág. 220. Há uma outra versão dessa idéia fundamental da “dialética”: “Na doutrina do conhecimento, como em outros ramos da ciência, devemos pensar dialeticamente, isto é, não devemos considerar os nossos conhecimentos como algo de acabado e imutável; mas sim mostrar como o conhecimento se desenvolve pouco a pouco, partindo da ignorância, e como, de imperfeito e inexato, se torna a pouco e pouco perfeito e exato” (op. cit., pág. 77).Em tudo isto, Lênin segue de perto a Engels. “A natureza opera dialeticamente”, diz Engels; “o mundo, e particularmente a história, é um processo evolutivo, isto é, em perpétuo movimento, alteração, transformação, evolução; e este processo evolutivo não pode encontrar o seu término intelectual na descoberta de uma pretensa verdade absoluta” (Fr. Engels, Der Sozialismus als Utopie und Wissenschaft, 1892, pág. 27-29; é digna de nota a posição aí tomada a respeito do materialismo dialético e a sua dependência em relação a Hegel). Sobre a importância de Engels para a interpretação de Marx, diz Lênin: “É impossível compreender o marxismo e interpretá-lo com exatidão, sem levar em conta todas as obras de Engels” (Lênin, The Teaching of Karl Marx, pág. 48).
(3) Lênin, op. cit., pág. 311. Sobre o fideísmo na antropologia do materialismo dialético, cfr. Messner, Widersprüche in der menschlichen Existenz,págs. 305-315.
(4) Sigmund Freud, Gesammelte Werke (obras completas), I-XVIII, Londres, 1940. Sobre o aspecto filosófico e ético da psicanálise de Freud, cfr. Messner, Widersprüche in der menschlichen Existenz, 1952, 73-87; Kulturethik,36 e segs., 73 e segs.; e ainda K. Stern, The Third Revolution, 1951 (USA), tradução alemã, Die dritte Revolution, 1956.
(5) R. Dalbiez, Psychoanaliytical MethodDoctrine of Freud,11ª ed., 1941, pág. 327.
(6) E. L. Thorndike, Human Naturethe Social Order, 1940, 288 e segs.
(7) J. Huxley, Evolution, The Modern Synthesis, 1942, pág. 13.
(8) Op. cit., pág. 576; do mesmo, Evolutionary Ethics, 1943, pág. 41 e segs., pág. 84, e Evolution in Action, 1953, pág. 149 e segs.
(9) British Association for The Advancement of Science, Report on 97th Meeting, 1929, págs. 88 e 95, mencionado no The Nineteenth Century, já citado.
(10) G. Ryle, A. J. Ayer e outros, The Revolution in Philosophy, 1956; além disso, R. Carnap, PhilosophyLogical Syntax, 1935; A, J. Ayer, Language, TruthLogic 2ª ed., 1948; C. L. Stevenson, EthicsLanguage, 1944; G. Ryle, The Concept of Mind, 1949, 2ª ed., 1950. Para a crítica, ver C. E. M. Joad, A Critique of Logical Positivism, 1950; F. Copleston, Contemporary Philosophy: Studies in Logical PositivismExistentialism, 1956.
(11) Sobre a filosofia existencialista, vejam-se as conhecidas obras de Heidegger, Sartre e, em parte, de Jaspers, e, sobre a crítica à nova literatura, podem ver-se: F. J. Rintelen, Philosophie der Endlichkeit, 1951; Hans Meyer, Die Weltanschauung der Gegenwart, 1949, 430-476;Hans Pfeil, Existentialistische Philosophie, 1952; O.F. Bollnow, Existenzphilosophie, 4.a ed., 1955; Emmanuel Mounier, Einführung in die Existenzphilosophie (versão alemã de W. Richter), 1949,especialmente a crítica detalhada de Sartre; Joseph de Tonquédec, Une philosophie existentielle. L´existence d´après Karl Jaspers, 1945;J. M. Hollenbach, Sein und Gewissen. Eine Begegnung zwischen Martin Heidegger und Thomistischer Philosophie, 1945; Auguste Etcheverry, Le conflit actuel des Humanismes, 1955, que trata do humanismo marxista e racionalista, além do existencialista.
(12) G. Gentile, Origini e Dottrine del Fascismo, 1934.
(13) G. Gentile, The Theory of Mind as Pure Act, versão inglesa de H. W. Carr, 1922, págs. 20 e 27.
(14) Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821, págs. 187 e 343; Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, 1830, pág. 389.
(15) O.Spann, Gesellschaftslehre, 3ª ed., 1930, pág. 562; Der wahre Staat, 3ª. ed., 1931, 33 e segs.
O objeto da ciência do direito natural é a ordem social, em que se condensam os direitos e obrigações jurídicas nascidas nas relações que se estabelecem entre os homens. Estas relações dão-se entre indivíduos, entre indivíduos e agrupamentos sociais e entre agrupamentos sociais. Assim, enquanto se refere à ordem social, o nosso estudo parece dever partir da sociedade como tal. É a própria peculiaridade desta que parece exigi-lo. Com efeito, a sociedade possui um ser próprio, é independente dos indivíduos no seu agir; e o indivíduo, além de estar na total dependência dela para se desenvolver, tem que se subordinar ao seu querer. Afora o mais, a sociedade sobrevive aos homens: os Estados vivem muitas gerações de homens, as nações perduram por centenas de anos. E, finalmente, o bem da comunidade sobreleva de tal modo ao bem do indivíduo que, se necessário for, pode-se exigir do indivíduo que sacrifique à comunidade os seus bens e a sua vida.
É claro que a teoria da sociedade pode começar pela análise da sociedade como um todo, pois nela se trata de penetrar a natureza da mesma e de descobrir-lhe as leis do ser, da vida e da atividade. Mas, de fato, à medida que prosseguimos no estudo e nos aproximamos da razão de ser da sociedade, deparamos com o problema de saber em que consiste a realidade social e em que se baseia. A teoria da sociedade acabará por concluir então que todo ser social depende dos homens que o integram. Se indaga das forças vitais e do agir da sociedade, mais uma vez tropeça com os homens que, ao fim e ao cabo, se encerram em seu seio, operando e agindo conjuntamente. E se, enfim, pergunta pelo sentido da sociedade, já no limite último dos fins que lhe resta investigar, terá que responder a uma interrogação sobre o fim do homem; e a interrogação é esta: o que é o homem?
Esta é, portanto, a questão básica, para a qual a teoria da sociedade e a ética social têm que encontrar uma resposta decisivamente clara e insofismável, se querem atingir a natureza, fim e ordem da vida social. Por isso, é legítimo, para não dizer obrigatório, abrir a teoria da sociedade com a resposta ao problema do homem.
É certo que ambos os processos se justificam, desde que se utilizem de maneira a compreender adequadamente a realidade total. Mas, homem e comunidade são dois pólos desta realidade. Portanto, se o método empregado se revelar incapaz de abranger a totalidade da experiência no âmbito de um destes dois pólos, então é porque é deficiente do ponto de vista científico. O resultado, nesse caso, seria forçosamente um dogmatismo ideológico, em lugar de um realismo científico.
A teoria social do individualismo partiu do indivíduo como ser acabado em si mesmo e em si mesmo exclusivamente baseado quanto ao seu valor; mas nunca chegou realmente a um conceito de comunidade enquanto realidade portadora de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo. Em contrapartida, a teoria social de todas as formas de coletivismo parte do ser da sociedade, tomando-o por valor primário e incondicionado; mas sem compreender jamais a realidade total da pessoa humana, com os seus fins supra-sociais e o seu valor de ordem supra-social. Entretanto, nem o sistema de valores individualista nem o socialista, nem as ideologias sociais neles baseadas, foram, na prática, aplicados por completo; de resto, nunca o poderiam ser: a natureza humana não permite tanto. Foi por isso que, na teoria e na prática, sofreram modificações mais ou menos amplas.
Seja como for, não constitui objetivo desta exposição ocupar-se com esse problema. Já fizemos, noutro trabalho, uma investigação mais profunda nesse sentido. Demais, os programas e táticas dos grupos e partidos, que são arautos desses sistemas de valores, mudam. E não são as particularidades de tais programas o que constitui matéria de uma ética de direito natural; são-no antes as concepções sociais e sistemas de valores que lhes servem de fundamento.
Deve-se notar, porém, desde o início, que a indispensável crítica não significa de maneira alguma uma rejeição indiscriminada de todas as tendências e resultados dos movimentos sociais e formas da sociedade individualistas ou social-coletivistas, da Idade Moderna ou Contemporânea. O movimento liberal, com as suas exigências de liberdade em todos os setores do agir humano, redundou parcialmente numa insurreição sadia e justa contra ordenamentos e instituições obsoletas da vida social, econômica e política. No continente europeu, foi o instrumento da revolução contra o absolutismo, contra o Estado-polícia, contra a regulamentação mercantilista da vida econômica e social. Por outro lado, e pelo menos em parte, o movimento socialista, na medida em que removeu o centro de gravidade da ordem social para o lado oposto, deve ser entendido como reação contra os vícios da sociedade moderna, produzidos pelas forças individualistas. E, com efeito, estes movimentos podem registrar em todos os países êxitos reais e duradouros do seu esforço no sentido de uma reforma social, conforme o reconhecem os partidários de todas as concepções sociais.
Posto isto, voltemos ao que dissemos acima: o problema do ser e da ordem social sempre desemboca nesta pergunta: o que é o homem? Levanta-se, por conseguinte, o problema da natureza do homem. E, justamente por isso, ocupar-nos-emos dele nos próximos capítulos.
II. A NATUREZA DO HOMEM
Antes de mais nada, convém dar uma vista de olhos as concepções atuais acerca da pessoa humana; porque, dentro da moderna teoria da ciência (teoria do conhecimento e metodologia das ciências), há um fato inquestionável: e é que o pensamento científico está determinado por concepções, consciente ou inconscientemente defendidas. É por isso que, especialmente no âmbito das ciências sociais, o cientista tem obrigação de começar por uma autocrítica que lhe permita explicar-se devidamente sobre as suas próprias concepções fundamentais, pondo-as a salvo de quaisquer equívocos. Esta autocrítica far-se-á, no presente capítulo, a par de um confronto entre as concepções acerca da natureza do homem, hoje reinantes. Frise-se desde já, no entanto, que a nossa teoria do homem, bem como os princípios éticos nela fundamentados, não deriva das idéias que passamos a expor seguidamente, pois preferimos obtê-la mediante uma análise da realidade e da própria experiência. É esta análise que nos ocupará nos capítulos subseqüentes, fornecendo-nos, além do mais, o ensejo para abordar detalhadamente a questão do método da ética. Por outro lado, como hoje em dia os vários sistemas da teoria do homem se costumam apresentar a título de formas de humanismo, resolvemos aproveitar também esta expressão.
1. O HUMANISMO CRISTÃO
A primeira forma de humanismo a considerar é a que se vem denominando humanismo cristão. Corresponde a teoria tradicional do direito natural, iniciada por Agostinho, e baseia-se nos fatos e noções que se seguem.
1. A teoria tradicional do direito natural colhe na antropologia empírica, que elabora e ordena sistematicamente os dados de experiência da realidade humana, duas noções fundamentais: em primeiro lugar, o homem pertence ao reino animal pelo seu corpo; por outro lado, contudo, representa uma “espécie” única em sentido zoológico, pois todas as “raças” humanas são capazes de se cruzarem ilimitadamente.
A segunda noção que tomamos da antropologia empírica diz-nos que o homem é um ser provido de razão. O homem é homo faber, o único ser vivo que fabrica utensílios compreendendo a relação entre causa e efeito, graças a sua capacidade de abstração. É o único ser vivo capaz de se determinar conscientemente na sua conduta. E o seu poder de conhecer e autodeterminar-se define-o como animal rationale e homo sapiens, distinguindo-o essencialmente do mundo animal.
2. Da antropologia metafísica que, partindo da experiência, penetra a essência do homem, extrai a teoria tradicional outras duas noções. Primeiro, o homem possui uma alma. Em segundo lugar, e em conseqüência da sua natureza a um tempo corporal e espiritual, o homem é um ser social, isto é, um ser que só no seio da sociedade encontra o seu pleno desenvolvimento.
Para a teoria tradicional, a metafísica fundamenta-se na experiência, seguindo a convicção de que a metafísica só cumpre metodicamente a sua missão quando for capaz de relacionar as suas conclusões com todo o domínio da realidade experimental concernente ao seu objeto. Não há dúvida de que nenhuma metafísica poderia pretender resolver todos os seus problemas com uma certeza indiscutível. Mas também não é menos certo que qualquer metafísica que se feche parcialmente a experiência, tentando preterir o esclarecimento de fatos da realidade, cai em dogmatismos de um ou outro tipo, isto é, em conjeturas e afirmações sem cabal fundamentação filosófica ou empírica.
A antropologia metafísica da teoria do direito natural sustenta que a alma humana, ao contrário da alma animal, é de natureza espiritual, livre e imortal, sendo também a sede da razão. Daí vem a distinção essencial (dualidade) entre corpo e espírito: o corpo é de natureza material, a alma, de natureza espiritual; nenhum dos dois se pode considerar uma resultante do outro. Em conjunto, ambos formam a unidade substancial da natureza humana, em que a alma é o princípio das ações especificamente humanas, isto é, das ações próprias da essência da natureza humana. Em virtude da sua natureza simultaneamente corporal e espiritual, é o homem também essencialmente social:o desenvolvimento pleno da sua natureza, em conseqüência da falta de susceptibilidade de perfeição, está total e absolutamente condicionado, no homem individual, por uma vinculação a sociedade.
3. Na antropologia cristã, finalmente, encontra a teoria tradicional a sua inabalável certeza a respeito das noções, acima mencionadas, sobre a natureza do homem, especificada por uma alma espiritual. Referimo-nos a duas considerações relacionadas com a existência humana, que são do maior alcance para a teoria da sociedade. A primeira prende-se a realidade do pecado original, razão da possibilidade humana de errar, da perversidade da vontade e dos erros sucessivos que daí nasceram para a ordem da vida social (“questão social”). A segunda concerne ao fato de o próprio Deus ter assumido a natureza humana para entrar no mundo, corroborando na alma do homem a semelhança com a divindade, a testemunhar que o valor da pessoa, com o seu destino vinculado a alma espiritual (“dignidade da pessoa”), é superior a todo e qualquer valor terreno. Assim se explica que nem a sociedade, nem o Estado, nem a nação, nem a raça, nem o mundo inteiro, podem equiparar-se a este valor.
2. O HUMANISMO NATURALISTA
A idéia naturalista do homem, nas suas várias modalidades, opõe-se aquela que acabamos de explanar, de modos muito diversos. Em conjunto, resume-se nisto:
1. – uma crença no homem “natural”, isto é, no homem cuja finalidade da existência se limita a sua luta pela vida;
2. – a crença de que a realidade se confina aos limites da experiência;
3. – a rejeição da religião revelada.
Mas, além disso, seguindo-lhe os pressupostos e razões dadas na explicação da natureza humana – a sua antropologia –, podemos distinguir várias espécies de humanismo naturalista:
1. O humanismo racionalista
Esta corrente, bem como a sua antropologia, sobretudo em razão da sua importância no desenvolvimento histórico-cultural do pensamento naturalista, merece uma referência especial.
Em síntese, são três os princípios fundamentais em que assenta. O primeiro consiste na crença na capacidade universal da razão humana para compreender e transformar o mundo. É aquela crença que, desde os tempos de Comte (1798-1857), se foi progressivamente convertendo na convicção de que a ciência dispõe de um poder universal e absoluto. Em segundo lugar, vem a crença em que o homem, graças à sua natureza racional, é indefectivelmente bom quando encontra os pressupostos exclusivamente “naturais” do seu desenvolvimento; daí o proclamar o “regresso à natureza” (Rousseau, 1712-1778). A isto se acrescenta, em terceiro lugar, a fé na “lei do progresso” indefinido, em todos os domínios dos valores humanos e culturais: é a lei inicialmente anunciada por Saint-Simon (1760-1825) e Fourier (1772-1837). O ideal deste humanismo é o da personalidade que se realiza na harmonia do prazer e que não difere muito do que Bentham (1748-1832) expunha por essa época na Inglaterra, como “a máxima felicidade do maior número”.
As experiências feitas pela humanidade com a primeira e a segunda guerra mundiais demonstraram quanto a antropologia racionalista é contrária à realidade. Apesar de tudo, permaneceu a fé na ciência, com esperanças sempre renovadas pelo prodigioso progresso científico. Isto vale muito especialmente para as duas correntes que apontamos a seguir.
2. O humanismo científico
A teoria do homem e da sociedade formulada nesta concepção pretende ater-se exclusivamente às ciências naturais e às que, tendo o homem por objeto, se utilizam de métodos científicos, aceitando apenas o conhecimento empírico: assim, a psicologia, a sociologia e a etnologia.
É precisamente nos países anglo-saxônicos que alguns falam de um humanismo “científico-naturalista” (scientific humanism). O que move esta concepção é a esperança de que os sociólogos e os técnicos sociais venham a ser um dia capazes de realizar na organização da vida da sociedade e do Estado o mesmo que os naturalistas e os técnicos realizam no domínio externo da vida. Mas os precursores imediatos do cientismo como “concepção do mundo”, encontramo-los na Alemanha, pelos fins do século passado, entre os representantes de uma mundividência científico-naturalista. O certo é que, hoje em dia, o cientismo, que predominava apenas no mundo cultural anglo-saxônico, passou a ocupar também a primeira plana na Europa continental e, além disso, nas camadas intelectuais do mundo não-europeu. Um mundo, contudo, que em toda a parte está coberto pela sombra da angústia, pois é precisamente pelo abuso dos conhecimentos científicos que a subsistência da humanidade ou, ao menos, da cultura, se vê ameaçada de uma nova guerra mundial.
Com este humanismo científico combinam-se ainda, assumindo peculiaridades diversas, algumas teorias “científicas” sobre a natureza do homem. As principais são: a biológico-evolucionista, a psicanalítica, a utilitarista-pragmatista, a lógico-positivista e a econômico-social-determinista, a última das quais goza de favor absoluto junto do humanismo científico oriental.
Deve dizer-se, entretanto, que na base do cientismo de todas as teorias referidas está uma metafísica comum, se se entende por metafísica a adesão a certos postulados de pensamento, que não logram fundamentação alguma com os métodos das ciências naturais. De fato, o modo de conhecer próprio das ciências naturais limita-se ao mundo da experiência sensível; e, precisamente por isso, não autoriza qualquer posição cientificamente fundamentada no alcance dos seus métodos – capaz de negar uma realidade metafísica, que de longe ultrapassa aquela experiência. Mas, apesar de tudo, sucede que todo o cientismo crê poder demonstrar “cientificamente” que a aceitação de tal realidade (a autoridade sobre-humana da consciência, a liberdade da vontade, a alma espiritual, o Deus criador transcendente ao mundo) não passa de ilusão engendrada pelo homem. Cada uma das mundividências “científicas” antes mencionadas requer, por isso, uma crítica especial. É o que faremos em seguida.
3. O humanismo dialético-materialista
Na exposição da sua antropologia seguimos Lênin que com toda a razão se pretende ser o mais coerente representante do materialismo dialético. Não admira que se tenha confiado ao Instituto Marx-Engels de Moscou a tarefa de conservar e completar a tradição da interpretação leninista de Marx. Os princípios extraídos da obra de Lênin podem resumir-se nos seguintes termos: “O psiquismo, a consciência, etc., são o produto máximo da matéria altamente evoluída; uma função dessa complicada fração da matéria que se chama o cérebro humano”. “A negação materialista do dualismo espírito-corpo (monismo materialista) consiste em demonstrar que a existência do espírito depende da do corpo, considerando o espírito como algo secundário, como função do cérebro e um reflexo, enfim, do mundo externo”. Donde resulta ser a natureza do homem “matéria orgânica” altamente evoluída. “A matéria é o principal; a sensação, o pensamento, a consciência, são os produtos últimos da matéria organizada numa determinada forma”. Tal a doutrina do materialismo em geral, e, em particular, a de Marx e Engels.
A matéria orgânica é “o resultado de uma longa evolução” da “matéria em eterno movimento e transformação”: o resultado de uma evolução que consiste na “luta dos contrários”. Só “a luta dos contrários, que se excluem, tem caráter absoluto, como sucede com o movimento e a evolução”; e esta é a razão pela qual o materialismo deve ser dialético, isto é, deve “negar-se a reconhecer elementos imutáveis, qualquer essência imutável das coisas” . Toda a metafísica que se afasta do materialismo dialético, designa-a Lênin como “fídeísmo”, ou seja, como “uma doutrina que coloca o crer no lugar do saber”. Acontece, porém, que o “fídeísmo” do próprio materialismo dialético é, evidentemente, manifesto, pois, como veremos, os seus pontos essenciais apóiam-se em princípios sem fundamento, isto é, num dogmatismo.
4. O humanismo psicanalítico
Segundo a antropologia de Freud, o “mecanismo do espírito” do homem compõe-se de super-ego, ego e id: super-eu, eu e infra-eu (). O último elemento compreende o domínio do instintivo, condicionado pelo corpo, isto é, a libido, com a sexualidade por força impulsora principal. O super-ego consiste no automatismo inibitório, em consonância com as normas de conduta fundadas na educação. Como o id, também o super-ego pertence inteiramente ao “inconsciente”. Esse super-ego, com a convicção que lhe é peculiar, da autoridade sobre-humana da lei da consciência, consiste na autoridade introjetada dos pais (ou pessoas responsáveis) que, desde a tenra infância, anterior à aquisição da auto-consciência, leva a criança a reprimir a satisfação arbitrária dos instintos, sobretudo as necessidades de excreção, facilitando-lhe a submissão às normas de conduta socialmente vigentes, inclusive as morais. O ego é o elemento consciente da natureza humana. Dentro do “mecanismo do espírito”, é, assim, o que se forma no comércio consciente com o ambiente social; e, não obstante desempenhar, em comparação com os outros dois elementos, um papel relativamente pouco importante na constituição da personalidade, é ele que decide, com o seu desenvolvimento, da integração da mesma.
Este conciso resumo das idéias fundamentais da psicanálise é, para o fim que temos em vista, suficiente. A psicanálise freudiana nada sabe de uma alma espiritual e autônoma, na sua qualidade de essencialmente determinante da vida humana; por isso, como doutrina metafísica do homem, pertence à corrente da antropologia materialista. A nossa crítica não significa a rejeição da psicanálise como método de psicologia e de psicoterapia, pois, na realidade, para falarmos com R. Dalbiez, “a obra de Freud é a mais profunda análise dos poucos elementos humanos da natureza do homem, que a história conhece”.
5. O humanismo behaviorista
A antropologia desta corrente afirma, no dizer do psicólogo americano E. L. Thorndike, que, “graças às pesquisas que de há uns quarenta anos a esta parte se fizeram sobre a inteligência animal e sabendo-se o que hoje se sabe acerca do pensamento e faculdade humana de discernimento, não parece possível estabelecer uma diferença qualitativa, clara e geral, entre a capacidade intelectual do gênero humano e a dos animais inferiores”. Uma antropologia assim concebida é, como logo se intui, materialista: o homem é considerado como um animal superior sem alma espiritual.
Referindo-se à faculdade de discernimento, Thorndike chega a dizer que, “como hoje é sabido”, o homem constrói no intelecto associações, tal como o fazem os animais, se bem que em número muito maior; e que a sua capacidade de generalizar e deduzir se desenvolveu, por assim dizer, como um subproduto. Thorndike afirma ainda: “Köhler, Norman Maier, McDougal e outros foram levados finalmente à convicção” de que os chimpanzés, que usam bengalas, e os ratos, que se deixam conduzir pelo seu sentido auditivo, fazem “coisas do mesmo gênero” que “a chamada inferência silogística”. “Em geral”, se os fatos despertam o interesse dos animais e se o procedimento deles, em relação aos fatos, é vivo e multilateral, então os animais “parecem e são de certo modo” como homens...
Até aqui, Thorndike. Por nossa parte, escusado será advertir quanto semelhante processo de generalização e comparação contradiz toda e qualquer metodologia científica. Porque, comparar um “parecem” com um “são” e tomar por fundamento um vago “de certo modo”, – é tudo menos ciência. De resto, o que Thorndike, afirma, exprime a sua opinião pessoal; e nada tem a ver com a ciência uma simples opinião. Afinal, a antropologia behaviorista se funda inteiramente em dogmatismos e fideísmos preconcebidos.
6. O humanismo biológico-evolucionista
A melhor maneira de expor esta concepção é remetermo-nos a uma obra do professor Julian Huxley intitulada Evolution. Na teoria da evolução “chegou-se agora”, digamos assim, “a uma fase de síntese”. Huxley acaba por concluir que a evolução “é exatamente um produto de forças cegas como a queda de uma pedra na terra ou o fluxo e defluxo das marés. Mas somos nós mesmos quem deve dar-lhe um sentido, imitando os homens primitivos, que atribuíam vontade e sentimento aos fenômenos inorgânicos, como as tempestades e os tremores de terra. Se quisermos trabalhar para um fim no futuro do homem, então devemos formular esse fim. Os fins da vida são feitos, não achados”.
Entende este autor que todos os valores são condicionados pela evolução. Aceitar valores absolutos e a sua personificação em Deus teria sido um erro do homem: um erro que o progresso da ciência lhe permite reconhecer. Por outro lado, “o humanismo evolucionista pode tomar-se o centro de uma nova religião”, entendida esta como determinação e dever do homem no sentido de fazer frutificar as suas forças, ainda inexploradas”. Segundo a concepção desta antropologia materialista, o homem não passa de uma espécie altamente evoluída de vertebrados, “matéria vivente” e, como tal, simples resultado da evolução da “matéria cósmica”, numa determinada direção dentre muitas outras.
Um outro neo-darwinista, o professor D. M. S. Watson, confessa que é num fideísmo que se funda a antropologia materialista do neo-darwinismo: “A evolução em si mesma não é aceita pelos zoólogos por os seus pressupostos serem observados ou provados com argumentos logicamente suficientes, mas por corresponderem a fatos da classificação, da paleontologia ou da distribuição geográfica e porque nenhuma outra explicação é digna de crédito”. Mas, por que não? Watson dá esta razão: a teoria evolucionista é “aceita geralmente, não por se poderem aduzir provas logicamente contundentes da sua veracidade, mas porque a única outra explicação, a saber, a criação particular do homem, é claramente indigna de crédito”.
7. O humanismo neo-positivista
Para a antropologia do positivismo lógico, largamente dominante no pensamento filosófico da Inglaterra e da América, desde os tempos anteriores e posteriores à segunda guerra mundial, a alma do homem – segundo o professor Gilbert Ryle, um dos seus influentes representantes na Inglaterra –, embora concebida como imaterial, não é senão “o fantasma na máquina”. Para o positivismo lógico há conhecimento verdadeiro só em relação à realidade perceptível pelos sentidos, isto é, em relação a fatos verificáveis pela observação sensorial. Portanto, afirmações sobre uma realidade metafísica ou sobre valores, nada valem: nem como verdadeiras, nem como falsas; são sem sentido.
Em todo o caso, quer na vida pessoal quer na social, o homem não pode renunciar à aceitação e à afirmação de valores. Além disso, o fideísmo dos pressupostos ideológicos do positivismo lógico foi muitas vezes posto em evidência. Com efeito, temos, em primeiro lugar, que, segundo esses pressupostos, o próprio princípio de verificação não pode verificar-se empiricamente; é portanto, no sentido do positivismo lógico, uma afirmação metafísica e, por conseguinte, sem sentido. Os representantes do neo-positivismo não puderam até agora resolver essa dificuldade que lhes torna contestável todo o sistema. Em segundo lugar, eles unem estados espirituais – e ainda mais, conteúdos espirituais – àquilo que as percepções sensíveis de outros homens lhes fornecem. Ora, esses estados e conteúdos como tais, não é pela percepção sensível que são verificáveis. Por isso, só pondo-se em contradição com os seus pressupostos de pensamento é que o representante do neo-positivismo pode tentar entender-se com os outros homens no concernente a esses estados e conteúdos. Mas o positivismo lógico nunca tentou formular uma teoria social; todas as formas sociais, para ele, apenas podem ser a resultante das tendências de valor atuantes numa sociedade.
8. O humanismo existencialista
Apesar das múltiplas divisões em que se desdobra, o humanismo existencialista mantém sempre um cunho próprio que o distingue de todas as outras correntes de antropologia naturalista. Esse cunho especial consiste em afirmar que não podemos saber nada sobre a essência do homem, sendo-nos cognoscível apenas a sua existência. Por outras palavras: só o “como” do homem se pode conhecer, e não o “quê”.
Em contraste com o simples “estar-aí”, o existir “próprio” do homem seria condicionado pela realização de si mesmo no mundo histórico e, portanto, pela situação concreta de cada momento. Esta auto-realização liga-se à decisão do homem baseada na liberdade; e, por conseqüência, só é possível mediante um “projeto-de-si-mesmo”. Daí que, para esse existir, não possa haver nenhuma escala de valores universal. Quer dizer: só o seu próprio existir pode revelar ao homem a lei das suas próprias decisões. Como se vê, este existencialismo contesta a existência de uma ordem moral universal tomada na qualidade de ordem resultante da natureza (essência) mesma do homem. A oposição da antropologia existencialista à fundada no direito natural é patente: porque o princípio fundamental desta última, seja qual for a forma em que se apresente, reside na possibilidade do conhecimento da natureza e mesmo da sua essência e da ordem existencial própria do homem e da sociedade que ela implica.
Por muito importante que seja para a ética, em razão da sua nítida valorização anti-determinista da liberdade, e em razão também da exaltação do caráter consciente do existir propriamente dito, – a filosofia da existência limita-se quase exclusivamente à existência individual: atribui grande importância, sem dúvida, à existência humana, fundada na liberdade; mas, até agora, pouco contacto manteve com a esfera da natureza social do homem e com as questões da ordem social (sobre as novas tendências, ver cap. 39).
9. O humanismo idealista
Enquanto o monismo (identificação essencial entre matéria e espírito) de feição materialista faz do espírito humano uma forma da evolução da matéria, o monismo idealista concebe o homem, e em geral todo o real, como forma evolutiva do espírito, sendo este a realidade essencial do mundo (hoje, esta filosofia é muitas vezes designada como psiquismo).
A filosofia do monismo idealista, na feição que lhe deu Hegel, é da maior importância para a teoria dá sociedade, uma vez que concebe o Estado como forma “superior” da auto-realização do espírito. É neste sentido que, “enquanto (o Estado) é o espírito objetivo, o indivíduo em si mesmo só tem objetividade, verdade e moralidade, como membro do Estado”. E assim, o movimento idealista conduz em linha reta ao princípio totalitário da “identificação do Estado com o indivíduo”, na expressão com que Gentile o formulou para o fascismo italiano. Havia nisto uma influência de Hegel, embora este tivesse certamente rejeitado toda forma de Estado moderno totalitário. Com efeito, segundo a concepção de Hegel, a história do mundo, em última análise, não é mais do que a evolução da idéia de liberdade. Seja como for, bem podemos dizer que o atual idealismo de Gentile, admitindo a existência do espírito só em dependência da ação e não como ser em si, podia achar apoio no pensamento de Hegel. Basta atentar nalgumas afirmações deste último: “o espírito é a verdade existente da matéria”; “o espírito só tem realidade na medida em que se contradiz a si mesmo”; e “é apenas aquilo que faz”.
A nova fórmula alemã da filosofia hegeliana, que exerceu a maior influência no domínio da filosofia social – o universalismo de O. Spann –, utiliza uma idéia parecida: a idéia da “ramificação do espírito”; e chega a uma metafísica do homem semelhante à de Hegel, concluindo: “o fato fundamental de toda a realidade social e o conhecimento fundamental de toda a ciência autêntica da sociedade é..., que não está no indivíduo a realidade propriamente dita, mas na totalidade; e que os indivíduos só têm realidade e existência enquanto membros do todo”.
NOTAS:
Parte I:
(1) Die soziale Frage im Blickfeld der Irrwege von gestern, der Sozialkämpfe von heute, der Weltentscreidungen von morgem, 6ª ed., 1956.
Parte II:
(1) Lênin, MaterialismEmpirio-Criticism, 1908. Collected Works, ed. by A. Trachtenberg, authorized by the Lenin Institute, Moscow, trans. by D. Kvitko, 1927, págs. 26, 34, 52, 65 e segs., 191, 228, 323 e segs.
(2) Lênin, ibidem, pág. 220. Há uma outra versão dessa idéia fundamental da “dialética”: “Na doutrina do conhecimento, como em outros ramos da ciência, devemos pensar dialeticamente, isto é, não devemos considerar os nossos conhecimentos como algo de acabado e imutável; mas sim mostrar como o conhecimento se desenvolve pouco a pouco, partindo da ignorância, e como, de imperfeito e inexato, se torna a pouco e pouco perfeito e exato” (op. cit., pág. 77).Em tudo isto, Lênin segue de perto a Engels. “A natureza opera dialeticamente”, diz Engels; “o mundo, e particularmente a história, é um processo evolutivo, isto é, em perpétuo movimento, alteração, transformação, evolução; e este processo evolutivo não pode encontrar o seu término intelectual na descoberta de uma pretensa verdade absoluta” (Fr. Engels, Der Sozialismus als Utopie und Wissenschaft, 1892, pág. 27-29; é digna de nota a posição aí tomada a respeito do materialismo dialético e a sua dependência em relação a Hegel). Sobre a importância de Engels para a interpretação de Marx, diz Lênin: “É impossível compreender o marxismo e interpretá-lo com exatidão, sem levar em conta todas as obras de Engels” (Lênin, The Teaching of Karl Marx, pág. 48).
(3) Lênin, op. cit., pág. 311. Sobre o fideísmo na antropologia do materialismo dialético, cfr. Messner, Widersprüche in der menschlichen Existenz,págs. 305-315.
(4) Sigmund Freud, Gesammelte Werke (obras completas), I-XVIII, Londres, 1940. Sobre o aspecto filosófico e ético da psicanálise de Freud, cfr. Messner, Widersprüche in der menschlichen Existenz, 1952, 73-87; Kulturethik,36 e segs., 73 e segs.; e ainda K. Stern, The Third Revolution, 1951 (USA), tradução alemã, Die dritte Revolution, 1956.
(5) R. Dalbiez, Psychoanaliytical MethodDoctrine of Freud,11ª ed., 1941, pág. 327.
(6) E. L. Thorndike, Human Naturethe Social Order, 1940, 288 e segs.
(7) J. Huxley, Evolution, The Modern Synthesis, 1942, pág. 13.
(8) Op. cit., pág. 576; do mesmo, Evolutionary Ethics, 1943, pág. 41 e segs., pág. 84, e Evolution in Action, 1953, pág. 149 e segs.
(9) British Association for The Advancement of Science, Report on 97th Meeting, 1929, págs. 88 e 95, mencionado no The Nineteenth Century, já citado.
(10) G. Ryle, A. J. Ayer e outros, The Revolution in Philosophy, 1956; além disso, R. Carnap, PhilosophyLogical Syntax, 1935; A, J. Ayer, Language, TruthLogic 2ª ed., 1948; C. L. Stevenson, EthicsLanguage, 1944; G. Ryle, The Concept of Mind, 1949, 2ª ed., 1950. Para a crítica, ver C. E. M. Joad, A Critique of Logical Positivism, 1950; F. Copleston, Contemporary Philosophy: Studies in Logical PositivismExistentialism, 1956.
(11) Sobre a filosofia existencialista, vejam-se as conhecidas obras de Heidegger, Sartre e, em parte, de Jaspers, e, sobre a crítica à nova literatura, podem ver-se: F. J. Rintelen, Philosophie der Endlichkeit, 1951; Hans Meyer, Die Weltanschauung der Gegenwart, 1949, 430-476;Hans Pfeil, Existentialistische Philosophie, 1952; O.F. Bollnow, Existenzphilosophie, 4.a ed., 1955; Emmanuel Mounier, Einführung in die Existenzphilosophie (versão alemã de W. Richter), 1949,especialmente a crítica detalhada de Sartre; Joseph de Tonquédec, Une philosophie existentielle. L´existence d´après Karl Jaspers, 1945;J. M. Hollenbach, Sein und Gewissen. Eine Begegnung zwischen Martin Heidegger und Thomistischer Philosophie, 1945; Auguste Etcheverry, Le conflit actuel des Humanismes, 1955, que trata do humanismo marxista e racionalista, além do existencialista.
(12) G. Gentile, Origini e Dottrine del Fascismo, 1934.
(13) G. Gentile, The Theory of Mind as Pure Act, versão inglesa de H. W. Carr, 1922, págs. 20 e 27.
(14) Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821, págs. 187 e 343; Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, 1830, pág. 389.
(15) O.Spann, Gesellschaftslehre, 3ª ed., 1930, pág. 562; Der wahre Staat, 3ª. ed., 1931, 33 e segs.
Fonte: Johannes Messner, Ética Social, Quadrante, São Paulo, págs. 9-20.
Tradução: Alípio Maia de Castro
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