Nossa
inteligência está sempre ativa, sempre querendo conhecer. Que desperdício seria
que não a aplicássemos sempre para compreender cada vez mais sobre a vida, as
pessoas e o mundo! O autor dá alguns conselhos práticos para não deixarmos de
encarar todas as situações como ocasiões de aprendizado.
Instintivamente
queremos conhecer do mesmo modo que pedimos pão. Se os mais dos homens se
deixam prender por desejos errôneos, o pensador é obsidiado pelo desejo de
saber; porque o não utilizará, aproveitando-o como se aproveita um curso de
água para mover uma turbina?
Será isso possível? Sim, é; a experiência e a psicologia o ensinam. O cérebro trabalha sem remissão; as turbinas, que reclamo, existem, giram, arrastando em suas voltas um sistema de rodas donde se escapam as idéias como as centelhas dum dínamo em pleno rendimento. Os processos nervosos encadeiam-se em série contínua e não param, do mesmo modo que os movimentos do coração ou dos pulmões. Que falta para aproveitar, em favor da verdade, esta vida permanente? Só a disciplina. É preciso que os dínamos estejam ligados às turbinas, as turbinas à corrente de água; é preciso que o desejo de conhecer acione regularmente, e não por intermitências, o funcionamento cerebral, consciente ou inconsciente.
A maior parte da atividade nervosa de nada serve, pela simples razão de não ser captada. A falar a verdade, nunca o será totalmente, porque o nosso poder sobre ela é relativo, e, se tentarmos forçar o rendimento, arriscamo-nos a quebrar a máquina. Mas para obter o possível, basta relativamente pouca dessa atividade, desde que saibamos cultivar o hábito. Este, bem montado, opera como segunda natureza. Têm aqui lugar os nossos conselhos práticos.
“Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”, recomenda São Tomás ao homem de estudo. Mais abaixo voltaremos a esta comparação, que pode dar margem a equívocos; aqui trata-se do cuidado em adquirir, não da maneira. O que importa ao homem de verdade é compreender que a verdade está em toda a parte, como corrente contínua capaz de acionar a alma, mas que ele deixa passar em vão.
A sabedoria clama nas ruas, diz a Bíblia; eleva a voz nas praças públicas; prega à entrada dos lugares ruidosos, às portas da cidade: até quando, ó ignorantes, amareis a ignorância?... Convertei-vos... que sobre vós espalharei o meu espírito... estendo a mão e ninguém me dá atenção (Prov. 1, 20-24). Se esse apelo incessante em favor da verdade fosse escutado, alargaria o espírito e enriquecê-lo-ia mais do que muitas sessões laboriosas. Estas são necessárias; mas a luz que aí se concentra expandir-se-ia até iluminar quase toda a vida; estabelecer-se-ia uma corrente que atrairia para a lâmpada os resultados do pensamento difuso, e de lá reverteria para este mesmo pensamento, a fim de lhe comunicar orientação e fecundidade.
Que sucede quando quereis mobiliar um quarto? Em princípio, nem sequer pensáveis nos móveis. Circuláveis pelas ruas de Paris, onde abundam as lojas de antiquários, mas não reparáveis nelas. Desconhecíeis as tendências da moda, o valor provável de tal ou tal achado, a especialidade de tal bairro, os preços, etc. Mas, uma vez estimulado o espírito pelo desejo, tudo vos impressiona, tudo vos retém; dir-se-ia que Paris é um vasto armazém e no espaço de oito dias ficais ao par do que não lograríeis conhecer durante a vida inteira.
Ora, a verdade está mais espalhada que os móveis: clama nas ruas e não nos desampara, se a não desamparamos. As idéias estão nos fatos; estão também nas conversações, nos acasos, nos espetáculos, nas visitas e nos devaneios, nas leituras, por banais que sejam. Tudo contém tesouros, porque tudo está em tudo, e algumas leis da vida ou da natureza governa o mais.
Newton não teria descoberto a gravitação, se a atenção ao real o não tivesse advertido e disposto a reparar que as maçãs caem como os universos. As leis da gravitação dos espíritos, as leis sociológicas, filosóficas, morais, artísticas, não têm menos aplicação em toda a parte. Qualquer fato pode gerar um sublime pensamento. Em toda a contemplação, mesmo na de uma mosca ou de uma nuvem que passa, há oportunidade de reflexões sem-fim. Toda a captação de luz pode conduzir ao sol; todo o caminho aberto é corredor para Deus.
Ora, podemos captar todas essas riquezas estando presentes. Olhando tudo com espírito de inspiração, veremos em toda a parte lições, profecias da verdade ou confirmações, causas e conseqüências. Mas no mais das vezes estamos ausentes, nós ou a nossa atenção. “Toda a gente olha o que eu olho, mas ninguém vê o que eu vejo”, dizia Lamartine diante do mar encapelado. Habituai-vos, pois, a estar presentes a este jogo do universo material e moral. Aprendei a olhar; confrontai o que se vos oferece com as idéias que vos são familiares ou secretas. Numa cidade não vejais somente casas, mas vida humana e história. Que um museu vos não mostre apenas quadros, mas escolas de arte e de vida, concepções do destino e da natureza, orientações sucessivas ou diversas da técnica, do pensamento inspirador, dos sentimentos. Que uma oficina vos não fale apenas de ferro e de madeira, mas da condição humana, do trabalho, da economia antiga e moderna, das relações entre as classes. Que as viagens vos ensinem a conhecer a humanidade; que as paisagens evoquem a vossos olhos as grandes leis do mundo; que as estrelas vos falem das durações incomensuráveis; que as pedras do caminho sejam para vós o resíduo da formação da terra; que a vista duma família se associe em vós à das gerações, e que a menor conversa vos informe sobre a alta concepção do homem. Se não souberdes olhar assim, tornar-vos-eis banais, se já não sois. O pensador é filtro onde a passagem da verdade deixa o melhor da sua substância.
Aprendei a escutar, e escutai, primeiro, quem quer que seja. Se na praça se aprende a língua materna, como pretendia Malherbe, também na praça, isto é, na vida corrente se pode aprender a língua do espírito. Nas mais simples conversas circulam verdades sem conta. A mais pequena palavra escutada com atenção pode ser oráculo. Há ocasiões em que um camponês mostra maior sabedoria que um filósofo. Todos os homens se encontram no íntimo de si próprios, sempre que lá refluem, e se uma profunda impressão, se um regresso instintivo ou virtuoso à simplicidade original afastar os convencionalismos e as paixões que ordinariamente nos escondem a nossos olhos e aos dos outros, ouve-se um discurso divino todas as vezes que um homem fala.
Em cada homem está o homem todo, e daí podemos retirar uma profunda iniciação. Se fosseis romancistas, quanta riqueza aí recolheríeis! O maior romancista forma-se no limiar das portas, o menor na Universidade ou nos salões. Só que, em vez de se imiscuir, o grande observador reserva-se, vive para si, sobe, e, a mais insignificante vida afigura-se-lhe um soberbo espetáculo.
Ora, o que o romancista busca pode servir a todos, porque todos precisam desta experiência intensa. O pensador só é verdadeiramente pensador se encontrar no mais pequeno impulso de fora, a ocasião dum entusiasmo ardente. O seu caráter consiste em conservar, pela vida afora, a curiosidade da infância, a vivacidade de impressão, a tendência para ver tudo sob o ângulo do mistério, a feliz faculdade de encontrar em toda a parte surpresas fecundas.
No entanto, atenção, sobretudo se tendes a dita de tratar com alguém que sabe e que pensa. É pena que os homens de escola sejam tão pouco úteis aos que os rodeiam! Praticamente assemelham-nos aos simples de espírito; toma-se o que têm de comum e não o que têm de raro. Há neles um tesouro, mas brinca-se com a chave sem o abrir. As vezes sorrimo-nos do seu acanhamento, das pequenas excentricidades de pessoas abstratas, e nisso não há mal; o ridículo é tomar ares de superioridade, que esquecem o valor dos outros.
Os grandes valores estão assaz disseminados para que os deixemos sem uso. Empregam-se a si próprios e toda a gente se utiliza deles sem o saber; mas sabendo-o, recebe deles instrução e impulso capazes de decidirem, às vezes, duma vida inteira. Quantos que foram santos, generais, exploradores, sábios, artistas, por terem encontrado uma personalidade eminente e ouvido o som duma alma! Esse apelo mudo ecoou neles através de toda a existência; era um clamor que os impelia para a frente; levava-os uma onda invisível. A palavra de um grande homem, como a de Deus, é, por vezes, criadora.
Mas os grandes homens só são grandes após a morte. Em vida, quase ninguém repara neles. Talvez haja a vosso lado quem valha um Descartes e não lhe prestais atenção, não o interrogais, discutis com ele só por discutir, cortais-lhe a palavra para proferir bagatelas. E, se a despeito da sua potente grandeza de espírito, não revela tão potente envergadura, nem por isso consintais que ele sepulte ou gaste em silêncio a sua riqueza.
Observando e escutando – não falo da leitura, porque lá voltaremos – assimilareis e adaptareis às vossas necessidades o que houverdes adquirido. As grandes descobertas são apenas reflexões sobre fatos comuns a todos. Quantas vezes passamos sem nada ver, até que um dia o homem de gênio observa os laços existentes entre o que ignoramos e o que vemos constantemente. Que é a ciência senão a lenta e sucessiva cura da nossa cegueira? É verdade que a observação precisa ser preparada por estudos e soluções anteriores. Encontramos o que procuramos. Só é dado àquele que tem. Por isso eu falava dum vaivém entre as luzes interiores e as exteriores. O espírito deve manter-se em perpétua disposição de refletir, como em perpétua disposição de ver, de ouvir, de apontar a presa que passa, como bom caçador.
Precisando mais, dizemos que esta atenção de espírito pode aproveitar não só a nossa cultura geral, mas a nossa especialidade, ao nosso estudo atual, ao trabalho em gestação. Levai convosco os vossos problemas. O cavalo de aluguel entra na cocheira após a corrida; mas o corcel em liberdade sempre respira à vontade.
Encontrando-se a verdade em toda a parte e estando todas as coisas ligadas entre si, por que não havemos de estudar cada questão, relacionando-a com as demais? Tudo deve alimentar a nossa especialidade. Tudo deve testemunhar pró ou contra as nossas teses. O universo é, em grande parte, obra nossa. O pintor só vê a sua volta formas, cores, movimentos, expressões; o arquiteto equilibra massas; o músico percebe ritmos e sons; o poeta, motivos de metáforas; o pensador, idéias em ato.
Nessas atitudes não há particularismos estreitos; é questão de método. Não podemos abarcar tudo. Reserva-se o interesse para a livre observação, consagramos, a uma pesquisa particular, a atenção de sobresselente, e, “pensando sempre nisso”, como Newton, recolhemos elementos para uma obra.
O segredo está em ter sempre pensamento em expectativa. O espírito do homem é um ruminante. O animal olha ao longe, mastiga lentamente, colhe aqui um tufo, ali uma vergôntea, toma o prado a sua conta, e também o horizonte, compondo com aquele o leite, e com este a sua alma obscura.
Ensinam-nos a viver na presença de Deus; por que não viver também na presença da verdade? A verdade é como que a divindade especial do pensador. Tal verdade particular ou tal objeto de estudo podem estar de contínuo presentes ao espírito. Será sensato, será normal deixar o investigador no gabinete de trabalho, ter assim duas almas: a do trabalhador e a do homem folgado que circula? Tal dualismo é inatural, pois leva a crer que buscamos o bem por ofício e não por nobre paixão.
“Há tempo para tudo” (cfr. Ecle 3, 17), diz a Bíblia, e concordo que não se pode evitar a divisão; mas se de fato pensamos todo o tempo, por que não utilizaremos o pensamento em benefício do que nos inquieta?
Dir-se-á que semelhante tensão é incompatível com a saúde cerebral e com as condições da vida? De acordo; mas também não se trata de tensão, nem mesmo, ordinariamente, de vontade atual. Falei de hábito; falemos, se quiserdes, de subconsciência. O espírito tem o poder de funcionar sem nós, por pouco que preparemos a faina e tracemos de leve o esforço dos canais por onde correrão os seus veios obscuros.
Radicado em nós o desejo de saber e ateada a paixão da verdade, concentrada a atenção consciente sobre os fatos da vida próprios para entreter o fogo e satisfazer o desejo, o espírito assemelha-se a um galgo pronto para a caça. A tarefa já lhe não custa; obedece a uma nova natureza. Pensais tão facilmente numa direção, como outrora ao acaso.
Esta direção é, sem dúvida, só aproximada e seria absurda uma tensão excessiva; mas convirá recusar o que se pode, argüindo com o que se não pode? Tendes aí um imenso recurso; empregai-o, introduzindo um pouco de disciplina num trabalho cerebral que se efetua, mas sem vós e de maneira anárquica. Regulai esse trabalho, de sorte que o cérebro seja, também ele, um intelectual.
Mostrar-vos-á a experiência que isto não cansa, que, pelo contrário, poupa muitas canseiras; porque as descobertas feitas assim ao acaso, sem as buscarmos, simplesmente porque nos resolvemos e decidimos a não ser cegos, estas invenções, muitas vezes mais felizes porque mais espontâneas, incutem ânimo ao investigador, conservam-no alerta e bem disposto; ele espera com delícia a hora de retiro para fixar e desenvolver o resultado das pesquisas.
Alcança-se muitas vezes, desse modo, a ligação difícil, a saída que embalde se procurara à mesa de trabalho. O que não tinha relação com o trabalho conduz a alguma coisa que constitui o fundo do mesmo trabalho. A ciência laboriosa recebe daí nova luz; o homem sabe para onde vai e brevemente um lucro inesperado virá coroar os esforços envidados.
Este processo de acaso responde as contingências cerebrais e ao trabalho obscuro da associação das idéias. Muitas leis se verificam aí, sem que haja lei para a sua aplicação a uma ou a outra, a tal ou a qual hora, e tudo isto se combina sem nossa intervenção – quer dizer, sem que a vontade intervenha, só debaixo da impressão do desejo que é a alma do pensador e que o qualifica; como o jogo qualifica a infância, como o amor qualifica a mulher – isto não é o excesso de carga que se supõe.
Cansa-se porventura a mulher que, durante o passeio, detém-se a espiar as homenagens dos transeuntes, ou a moça à cata de ocasião de rir, ou o rapaz a espreita da oportunidade de brincar? O espírito que espreita a verdade por amor, não por constrangimento, por tendência a princípio instintiva, depois cultivada, mas amorosa e apaixonadamente, também não sofrerá mais por isso. Diverte-se, caça, entrega-se a um desporto útil e inebriante, longe do esforço concreto e voluntário das horas de concentração.
Deste modo o sábio passeia, por todos os tempos e em todas as estradas, um espírito maduro para aquisições que o vulgo descura. A seus olhos, a mais humilde ocupação é o prolongamento da mais sublime; as visitas de cerimônia são inquéritos felizes, os passeios explorações, as suas audições e respostas mudas um diálogo que mantém, nele, a verdade de acordo consigo própria. Por toda a parte o seu universo interior se confronta com o outro, a sua vida com a Vida, o seu trabalho com o incessante trabalho dos seres, e ao sair do estreito espaço em que o seu estudo se concentra, sente a impressão, não de abandonar a verdade, mas de lhe abrir a porta de par em par, a fim de o mundo drenar para ele toda a verdade que se gasta nos seus potentes folguedos.
Será isso possível? Sim, é; a experiência e a psicologia o ensinam. O cérebro trabalha sem remissão; as turbinas, que reclamo, existem, giram, arrastando em suas voltas um sistema de rodas donde se escapam as idéias como as centelhas dum dínamo em pleno rendimento. Os processos nervosos encadeiam-se em série contínua e não param, do mesmo modo que os movimentos do coração ou dos pulmões. Que falta para aproveitar, em favor da verdade, esta vida permanente? Só a disciplina. É preciso que os dínamos estejam ligados às turbinas, as turbinas à corrente de água; é preciso que o desejo de conhecer acione regularmente, e não por intermitências, o funcionamento cerebral, consciente ou inconsciente.
A maior parte da atividade nervosa de nada serve, pela simples razão de não ser captada. A falar a verdade, nunca o será totalmente, porque o nosso poder sobre ela é relativo, e, se tentarmos forçar o rendimento, arriscamo-nos a quebrar a máquina. Mas para obter o possível, basta relativamente pouca dessa atividade, desde que saibamos cultivar o hábito. Este, bem montado, opera como segunda natureza. Têm aqui lugar os nossos conselhos práticos.
“Empenha-te em encerrar no cofre do espírito tudo quanto puderes, como quem pretende encher um vaso”, recomenda São Tomás ao homem de estudo. Mais abaixo voltaremos a esta comparação, que pode dar margem a equívocos; aqui trata-se do cuidado em adquirir, não da maneira. O que importa ao homem de verdade é compreender que a verdade está em toda a parte, como corrente contínua capaz de acionar a alma, mas que ele deixa passar em vão.
A sabedoria clama nas ruas, diz a Bíblia; eleva a voz nas praças públicas; prega à entrada dos lugares ruidosos, às portas da cidade: até quando, ó ignorantes, amareis a ignorância?... Convertei-vos... que sobre vós espalharei o meu espírito... estendo a mão e ninguém me dá atenção (Prov. 1, 20-24). Se esse apelo incessante em favor da verdade fosse escutado, alargaria o espírito e enriquecê-lo-ia mais do que muitas sessões laboriosas. Estas são necessárias; mas a luz que aí se concentra expandir-se-ia até iluminar quase toda a vida; estabelecer-se-ia uma corrente que atrairia para a lâmpada os resultados do pensamento difuso, e de lá reverteria para este mesmo pensamento, a fim de lhe comunicar orientação e fecundidade.
Que sucede quando quereis mobiliar um quarto? Em princípio, nem sequer pensáveis nos móveis. Circuláveis pelas ruas de Paris, onde abundam as lojas de antiquários, mas não reparáveis nelas. Desconhecíeis as tendências da moda, o valor provável de tal ou tal achado, a especialidade de tal bairro, os preços, etc. Mas, uma vez estimulado o espírito pelo desejo, tudo vos impressiona, tudo vos retém; dir-se-ia que Paris é um vasto armazém e no espaço de oito dias ficais ao par do que não lograríeis conhecer durante a vida inteira.
Ora, a verdade está mais espalhada que os móveis: clama nas ruas e não nos desampara, se a não desamparamos. As idéias estão nos fatos; estão também nas conversações, nos acasos, nos espetáculos, nas visitas e nos devaneios, nas leituras, por banais que sejam. Tudo contém tesouros, porque tudo está em tudo, e algumas leis da vida ou da natureza governa o mais.
Newton não teria descoberto a gravitação, se a atenção ao real o não tivesse advertido e disposto a reparar que as maçãs caem como os universos. As leis da gravitação dos espíritos, as leis sociológicas, filosóficas, morais, artísticas, não têm menos aplicação em toda a parte. Qualquer fato pode gerar um sublime pensamento. Em toda a contemplação, mesmo na de uma mosca ou de uma nuvem que passa, há oportunidade de reflexões sem-fim. Toda a captação de luz pode conduzir ao sol; todo o caminho aberto é corredor para Deus.
Ora, podemos captar todas essas riquezas estando presentes. Olhando tudo com espírito de inspiração, veremos em toda a parte lições, profecias da verdade ou confirmações, causas e conseqüências. Mas no mais das vezes estamos ausentes, nós ou a nossa atenção. “Toda a gente olha o que eu olho, mas ninguém vê o que eu vejo”, dizia Lamartine diante do mar encapelado. Habituai-vos, pois, a estar presentes a este jogo do universo material e moral. Aprendei a olhar; confrontai o que se vos oferece com as idéias que vos são familiares ou secretas. Numa cidade não vejais somente casas, mas vida humana e história. Que um museu vos não mostre apenas quadros, mas escolas de arte e de vida, concepções do destino e da natureza, orientações sucessivas ou diversas da técnica, do pensamento inspirador, dos sentimentos. Que uma oficina vos não fale apenas de ferro e de madeira, mas da condição humana, do trabalho, da economia antiga e moderna, das relações entre as classes. Que as viagens vos ensinem a conhecer a humanidade; que as paisagens evoquem a vossos olhos as grandes leis do mundo; que as estrelas vos falem das durações incomensuráveis; que as pedras do caminho sejam para vós o resíduo da formação da terra; que a vista duma família se associe em vós à das gerações, e que a menor conversa vos informe sobre a alta concepção do homem. Se não souberdes olhar assim, tornar-vos-eis banais, se já não sois. O pensador é filtro onde a passagem da verdade deixa o melhor da sua substância.
Aprendei a escutar, e escutai, primeiro, quem quer que seja. Se na praça se aprende a língua materna, como pretendia Malherbe, também na praça, isto é, na vida corrente se pode aprender a língua do espírito. Nas mais simples conversas circulam verdades sem conta. A mais pequena palavra escutada com atenção pode ser oráculo. Há ocasiões em que um camponês mostra maior sabedoria que um filósofo. Todos os homens se encontram no íntimo de si próprios, sempre que lá refluem, e se uma profunda impressão, se um regresso instintivo ou virtuoso à simplicidade original afastar os convencionalismos e as paixões que ordinariamente nos escondem a nossos olhos e aos dos outros, ouve-se um discurso divino todas as vezes que um homem fala.
Em cada homem está o homem todo, e daí podemos retirar uma profunda iniciação. Se fosseis romancistas, quanta riqueza aí recolheríeis! O maior romancista forma-se no limiar das portas, o menor na Universidade ou nos salões. Só que, em vez de se imiscuir, o grande observador reserva-se, vive para si, sobe, e, a mais insignificante vida afigura-se-lhe um soberbo espetáculo.
Ora, o que o romancista busca pode servir a todos, porque todos precisam desta experiência intensa. O pensador só é verdadeiramente pensador se encontrar no mais pequeno impulso de fora, a ocasião dum entusiasmo ardente. O seu caráter consiste em conservar, pela vida afora, a curiosidade da infância, a vivacidade de impressão, a tendência para ver tudo sob o ângulo do mistério, a feliz faculdade de encontrar em toda a parte surpresas fecundas.
No entanto, atenção, sobretudo se tendes a dita de tratar com alguém que sabe e que pensa. É pena que os homens de escola sejam tão pouco úteis aos que os rodeiam! Praticamente assemelham-nos aos simples de espírito; toma-se o que têm de comum e não o que têm de raro. Há neles um tesouro, mas brinca-se com a chave sem o abrir. As vezes sorrimo-nos do seu acanhamento, das pequenas excentricidades de pessoas abstratas, e nisso não há mal; o ridículo é tomar ares de superioridade, que esquecem o valor dos outros.
Os grandes valores estão assaz disseminados para que os deixemos sem uso. Empregam-se a si próprios e toda a gente se utiliza deles sem o saber; mas sabendo-o, recebe deles instrução e impulso capazes de decidirem, às vezes, duma vida inteira. Quantos que foram santos, generais, exploradores, sábios, artistas, por terem encontrado uma personalidade eminente e ouvido o som duma alma! Esse apelo mudo ecoou neles através de toda a existência; era um clamor que os impelia para a frente; levava-os uma onda invisível. A palavra de um grande homem, como a de Deus, é, por vezes, criadora.
Mas os grandes homens só são grandes após a morte. Em vida, quase ninguém repara neles. Talvez haja a vosso lado quem valha um Descartes e não lhe prestais atenção, não o interrogais, discutis com ele só por discutir, cortais-lhe a palavra para proferir bagatelas. E, se a despeito da sua potente grandeza de espírito, não revela tão potente envergadura, nem por isso consintais que ele sepulte ou gaste em silêncio a sua riqueza.
Observando e escutando – não falo da leitura, porque lá voltaremos – assimilareis e adaptareis às vossas necessidades o que houverdes adquirido. As grandes descobertas são apenas reflexões sobre fatos comuns a todos. Quantas vezes passamos sem nada ver, até que um dia o homem de gênio observa os laços existentes entre o que ignoramos e o que vemos constantemente. Que é a ciência senão a lenta e sucessiva cura da nossa cegueira? É verdade que a observação precisa ser preparada por estudos e soluções anteriores. Encontramos o que procuramos. Só é dado àquele que tem. Por isso eu falava dum vaivém entre as luzes interiores e as exteriores. O espírito deve manter-se em perpétua disposição de refletir, como em perpétua disposição de ver, de ouvir, de apontar a presa que passa, como bom caçador.
Precisando mais, dizemos que esta atenção de espírito pode aproveitar não só a nossa cultura geral, mas a nossa especialidade, ao nosso estudo atual, ao trabalho em gestação. Levai convosco os vossos problemas. O cavalo de aluguel entra na cocheira após a corrida; mas o corcel em liberdade sempre respira à vontade.
Encontrando-se a verdade em toda a parte e estando todas as coisas ligadas entre si, por que não havemos de estudar cada questão, relacionando-a com as demais? Tudo deve alimentar a nossa especialidade. Tudo deve testemunhar pró ou contra as nossas teses. O universo é, em grande parte, obra nossa. O pintor só vê a sua volta formas, cores, movimentos, expressões; o arquiteto equilibra massas; o músico percebe ritmos e sons; o poeta, motivos de metáforas; o pensador, idéias em ato.
Nessas atitudes não há particularismos estreitos; é questão de método. Não podemos abarcar tudo. Reserva-se o interesse para a livre observação, consagramos, a uma pesquisa particular, a atenção de sobresselente, e, “pensando sempre nisso”, como Newton, recolhemos elementos para uma obra.
O segredo está em ter sempre pensamento em expectativa. O espírito do homem é um ruminante. O animal olha ao longe, mastiga lentamente, colhe aqui um tufo, ali uma vergôntea, toma o prado a sua conta, e também o horizonte, compondo com aquele o leite, e com este a sua alma obscura.
Ensinam-nos a viver na presença de Deus; por que não viver também na presença da verdade? A verdade é como que a divindade especial do pensador. Tal verdade particular ou tal objeto de estudo podem estar de contínuo presentes ao espírito. Será sensato, será normal deixar o investigador no gabinete de trabalho, ter assim duas almas: a do trabalhador e a do homem folgado que circula? Tal dualismo é inatural, pois leva a crer que buscamos o bem por ofício e não por nobre paixão.
“Há tempo para tudo” (cfr. Ecle 3, 17), diz a Bíblia, e concordo que não se pode evitar a divisão; mas se de fato pensamos todo o tempo, por que não utilizaremos o pensamento em benefício do que nos inquieta?
Dir-se-á que semelhante tensão é incompatível com a saúde cerebral e com as condições da vida? De acordo; mas também não se trata de tensão, nem mesmo, ordinariamente, de vontade atual. Falei de hábito; falemos, se quiserdes, de subconsciência. O espírito tem o poder de funcionar sem nós, por pouco que preparemos a faina e tracemos de leve o esforço dos canais por onde correrão os seus veios obscuros.
Radicado em nós o desejo de saber e ateada a paixão da verdade, concentrada a atenção consciente sobre os fatos da vida próprios para entreter o fogo e satisfazer o desejo, o espírito assemelha-se a um galgo pronto para a caça. A tarefa já lhe não custa; obedece a uma nova natureza. Pensais tão facilmente numa direção, como outrora ao acaso.
Esta direção é, sem dúvida, só aproximada e seria absurda uma tensão excessiva; mas convirá recusar o que se pode, argüindo com o que se não pode? Tendes aí um imenso recurso; empregai-o, introduzindo um pouco de disciplina num trabalho cerebral que se efetua, mas sem vós e de maneira anárquica. Regulai esse trabalho, de sorte que o cérebro seja, também ele, um intelectual.
Mostrar-vos-á a experiência que isto não cansa, que, pelo contrário, poupa muitas canseiras; porque as descobertas feitas assim ao acaso, sem as buscarmos, simplesmente porque nos resolvemos e decidimos a não ser cegos, estas invenções, muitas vezes mais felizes porque mais espontâneas, incutem ânimo ao investigador, conservam-no alerta e bem disposto; ele espera com delícia a hora de retiro para fixar e desenvolver o resultado das pesquisas.
Alcança-se muitas vezes, desse modo, a ligação difícil, a saída que embalde se procurara à mesa de trabalho. O que não tinha relação com o trabalho conduz a alguma coisa que constitui o fundo do mesmo trabalho. A ciência laboriosa recebe daí nova luz; o homem sabe para onde vai e brevemente um lucro inesperado virá coroar os esforços envidados.
Este processo de acaso responde as contingências cerebrais e ao trabalho obscuro da associação das idéias. Muitas leis se verificam aí, sem que haja lei para a sua aplicação a uma ou a outra, a tal ou a qual hora, e tudo isto se combina sem nossa intervenção – quer dizer, sem que a vontade intervenha, só debaixo da impressão do desejo que é a alma do pensador e que o qualifica; como o jogo qualifica a infância, como o amor qualifica a mulher – isto não é o excesso de carga que se supõe.
Cansa-se porventura a mulher que, durante o passeio, detém-se a espiar as homenagens dos transeuntes, ou a moça à cata de ocasião de rir, ou o rapaz a espreita da oportunidade de brincar? O espírito que espreita a verdade por amor, não por constrangimento, por tendência a princípio instintiva, depois cultivada, mas amorosa e apaixonadamente, também não sofrerá mais por isso. Diverte-se, caça, entrega-se a um desporto útil e inebriante, longe do esforço concreto e voluntário das horas de concentração.
Deste modo o sábio passeia, por todos os tempos e em todas as estradas, um espírito maduro para aquisições que o vulgo descura. A seus olhos, a mais humilde ocupação é o prolongamento da mais sublime; as visitas de cerimônia são inquéritos felizes, os passeios explorações, as suas audições e respostas mudas um diálogo que mantém, nele, a verdade de acordo consigo própria. Por toda a parte o seu universo interior se confronta com o outro, a sua vida com a Vida, o seu trabalho com o incessante trabalho dos seres, e ao sair do estreito espaço em que o seu estudo se concentra, sente a impressão, não de abandonar a verdade, mas de lhe abrir a porta de par em par, a fim de o mundo drenar para ele toda a verdade que se gasta nos seus potentes folguedos.
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