segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Estudo sobre o socialismo - Parte 2.

Introdução de Ludwig von Mises

Existem muitos socialistas que jamais estudaram, de uma forma ou de outra, os problemas da ciência econômica, e que jamais fizeram qualquer tentativa de formar claramente algum conceito sobre as condições que determinam a natureza da sociedade humana.  E existem outros que examinaram profundamente a história econômica do passado e do presente, e se esforçaram — baseando-se em seus achados — para construir uma teoria sobre a economia da sociedade "burguesa".  Eles criticaram livremente a estrutura econômica da sociedade "livre", mas consistentemente se omitiram de aplicar à economia do controverso estado socialista o mesmo discernimento cáustico que já exibiram em outras análises, nem sempre com sucesso. 

A economia, em sua forma real, figura de maneira muito esparsa no cenário glamouroso pintado pelos utopistas.  Na quimera de suas fantasias, eles invariavelmente discorrem sobre como pombos assados irão de alguma forma voar diretamente para dentro das bocas dos camaradas, mas se furtam de mostrar como esse milagre virá a ocorrer.  Quando eles começam de fato a ser mais explícitos no âmbito econômico, rapidamente se descobrem completamente perdidos — basta lembrarmo-nos, por exemplo, dos devaneios fantásticos de Proudhon, que queria criar um banco para empréstimos sem juros —, de modo que não é difícil apontar suas falácias lógicas. 

Quando o marxismo proíbe solenemente que seus partidários se preocupem com problemas econômicos que vão além da expropriação, ele não está adotando nenhum princípio novo, uma vez que todos os utopistas, em todos os seus devaneios, também negligenciam quaisquer considerações econômicas mais profundas, concentrando-se exclusivamente em pintar cenários lúgubres para as atuais condições, e cenários fulgurantes para a era de ouro que virá como consequência natural dessa Nova Revelação.
Quer se considere a chegada do socialismo como sendo um resultado inevitável da evolução humana, ou que a socialização dos meios de produção é a maior das bênçãos ou o pior dos desastres que pode acometer a humanidade, ao menos se deve consentir que uma investigação acerca das condições de uma sociedade organizada sobre os princípios socialistas é algo que vai um pouco além de ser apenas "um bom exercício mental, e um meio de se promover a clareza política e a consistência do pensamento".  Em uma época em que estamos nos aproximando cada vez mais do socialismo, e que até mesmo estamos, em um certo sentido, dominados por ele, uma investigação detalhada acerca dos problemas inerentes ao estado socialista adquire uma significância suplementar para a explicação do que está acontecendo ao nosso redor. 
 
As análises anteriormente feitas para a economia de trocas voluntárias não mais são suficientes para um entendimento adequado dos fenômenos sociais ocorrendo na Alemanha e em seus países vizinhos ao leste.  Nossa tarefa nesse contexto é compreender, de modo amplo, os elementos da sociedade socialista.  As tentativas de se obter clareza nesse assunto não precisam de justificativas adicionais.
 
1. A distribuição de bens de consumo no socialismo

No socialismo, todos os meios de produção são propriedade da comunidade.  É somente a comunidade que pode manuseá-los, bem como determinar como se dará seu uso em uma determinada produção.  Desnecessário dizer que a comunidade só estará apta a empregar esses poderes através da criação de um corpo especial para esta finalidade.  A estrutura deste corpo e a maneira como ele irá articular e representar o desejo da comunidade é, para nós, de importância secundária.  Pode-se pressupor que esta última irá depender da escolha do corpo de funcionários ou — nos casos em que o poder não estiver assentado em uma ditadura — do voto majoritário dos membros da corporação.

No capitalismo, o dono dos bens de produção, que é quem manufaturou os bens de consumo e por isso se tornou o proprietário deles, tem a opção de ele próprio consumir esses bens de consumo ou deixar que terceiros o façam.  Mas no caso em que a comunidade se tornou a proprietária absoluta dos bens de consumo — os quais ela adquiriu durante a produção —, tal opção não mais existirá.  E eis que surge o cerne do problema da distribuição socialista: quem irá consumir e o que deverá ser consumido por cada um.

É característico do socialismo que a distribuição de bens de consumo deve ser independente da produção e de suas condições econômicas.  Mas ocorre que a propriedade comunal dos bens de produção é incompatível com o fato de que sua distribuição irá depender de uma atribuição econômica: o rendimento de determinados fatores de produção.  Assim, é uma contradição lógica falar que no socialismo os trabalhadores irão desfrutar de "todo o rendimento" de seu trabalho, quando, na verdade, está-se distribuindo distintamente os fatores materiais da produção.  Pois, como iremos mostrar, a própria natureza da produção socialista impossibilita que a participação de cada fator de produção no conjunto de toda a produção nacional seja determinada, além de ser impossível medir a relação entre despesa e renda.

Qual critério será escolhido para a distribuição dos bens de consumo entre os camaradas é, para nós, uma consideração de importância relativamente secundária.  Se eles serão distribuídos de acordo com as necessidades individuais — de modo que receberá mais aquele mais necessitado —, ou se o homem superior irá receber mais que o inferior, ou se uma distribuição estritamente igualitária deve ser contemplada como o ideal, tudo isso é irrelevante se considerarmos o fato de que, em qualquer caso, as porções serão administradas pelo estado.

Assim, vamos partir de uma proposição simples: a distribuição será determinada de acordo com o princípio de que o estado trata todos os seus membros de forma absolutamente igual.  Para tal, não é difícil conceber um número de peculiaridades tais como idade, sexo, saúde, ocupação etc., de acordo com as quais cada indivíduo será classificado.  Desta forma, cada camarada irá receber um punhado de cupons que podem ser redimíveis, durante um determinado período de tempo, em uma quantidade definida de bens específicos.  Assim, ele poderá comer várias vezes ao dia, encontrar alojamento permanente, desfrutar de diversões ocasionais e, de tempos em tempos, adquirir uma nova vestimenta.  Se a provisão de tais necessidades será ampla ou não, isso irá depender da produtividade do trabalho.

Ademais, não é preciso que cada homem consuma a quantidade total de sua cota.  Ele pode deixar que parte dela pereça sem ser consumida; ele pode doá-la como presente; ele pode até — caso a natureza dos bens permita — estocá-la para uso futuro.  Ele também pode, por outro lado, trocar alguns de seus bens com os de outros camaradas.  Um beberrão, por exemplo, irá alegremente abrir mão das bebidas não alcoólicas dadas a ele caso possa trocá-las por mais cerveja, ao passo que o abstêmio irá prontamente abrir mão de sua cota de bebidas caso consiga trocá-las por outros bens.  O amante das artes estará disposto a ceder suas entradas de cinema caso possa trocá-las pela oportunidade de ouvir boa música, ao passo que o filisteu certamente estará pronto para trocar suas entradas para exposições artísticas por divertimentos que sejam mais fáceis de entender.  Todas essas pessoas irão aceitar de bom grado qualquer troca.  Mas o material dessas trocas será sempre um só: bens de consumo.  Bens de produção, em uma comunidade socialista, são exclusivamente comunais; eles são propriedade inalienável da comunidade — logo, eles são res extra commercium (coisas fora do comércio).

Portanto, o princípio básico da troca poderá operar livremente em um estado socialista, dentro dos limites permitidos.  E a troca nem sempre precisará se desenvolver na sua forma direta.  As mesmas bases que sempre sustentaram as trocas indiretas continuarão existindo em um estado socialista, trazendo vantagens para aqueles que incorrerem nelas.  Donde se segue que o estado socialista também irá permitir o uso de um meio de troca universal — isto é, o dinheiro.  Sua função será fundamentalmente a mesma tanto na sociedade socialista quanto na competitiva; em ambas, ele serve como meio universal de troca. 

No entanto, a significância do dinheiro em uma sociedade em que os meios de produção são controlados pelo estado será diferente daquela em que os meios de produção são propriedade privada.  Com efeito, a significância será incomparavelmente menor, uma vez que o material disponível para troca será mais limitado, já que as trocas estarão confinadas apenas aos bens de consumo.  Ademais, exatamente pelo fato de os bens de produção jamais se tornarem objeto de troca, será impossível determinar seu valor monetário.  Sob esse aspecto, o dinheiro jamais poderá determinar, em um estado socialista, o valor dos bens de produção da mesma forma que ele o faz em uma sociedade competitiva.  No socialismo, portanto, o cálculo em termos monetários será impossível.

A relação resultante desse sistema de trocas entre os camaradas não poderá ser desconsiderada pelos responsáveis pela administração e distribuição dos produtos.  Eles terão de se basear nessas relações quando forem distribuir bens per capita de acordo com seus valores de troca.  Se, por exemplo, 1 charuto passar a valer o mesmo que 5 cigarros, será impossível para a administração fixar arbitrariamente o valor de 1 charuto como sendo igual a 3 cigarros e então utilizar essa igualdade como base para uma distribuição equânime de charutos e cigarros.  Se os cupons de tabaco não puderem ser redimidos uniformemente para cada indivíduo — ou seja, uma parte em charutos e a outra parte em cigarros —, e se alguns receberem apenas charutos e outros receberem apenas cigarros, seja porque essa é a vontade deles ou porque a repartição pública que gerencia as trocas nada pode fazer no momento, as condições do mercado de troca teriam então de ser monitoradas.  Caso contrário, as pessoas adquirindo cigarros estariam em desvantagem, pois o indivíduo que obtivesse um charuto poderia trocá-lo por cinco cigarros, embora este estivesse artificialmente precificado em apenas três cigarros.

Logo, variações nas relações de troca entre os camaradas terão de acarretar variações correspondentes nas estimativas da burocracia quanto ao valor representativo dos diferentes bens de consumo.  Sempre que houver uma variação é porque surgiu uma disparidade entre as necessidades e as satisfações dos camaradas, o que significa que uma mercadoria está sendo mais fortemente desejada do que outra.

A administração terá de se esforçar para levar esse ponto em consideração também no que diz respeito à produção.  Os bens que estiverem em maior demanda terão de ser produzidos em maiores quantidades, ao passo que aqueles menos demandados terão de ter sua produção reduzida.  Tal controle pode até ser possível, mas uma coisa terá de ser especificamente controlada: o indivíduo comum não poderá pesquisar por conta própria quanto vale seu cupom de tabaco tanto em charutos quanto em cigarros.  Pois, se ao camarada for dado o direito de escolher o que quer, então nada impedirá que a demanda por charutos e cigarros exceda a oferta, ou vice versa, isto é, que os charutos e os cigarros se acumulem nas repartições distribuidoras porque ninguém os quer.  Em ambos os casos a oferta seria descasada da demanda.

Se for adotada a perspectiva da teoria do valor-trabalho, então o problema admitirá uma solução simples.  O camarada será classificado de acordo com cada hora de trabalho, o que lhe habilitará a receber o produto equivalente às horas trabalhadas, menos a quantia deduzida para se atender os gastos obrigatórios da comunidade, como o sustento do incapaz, a educação etc.

Considerando-se — para fins de exemplo — que a quantia deduzida para se cobrir os gastos comunais seja o equivalente à metade do produto do trabalho, então cada hora trabalhada renderá efetivamente ao trabalhador uma quantia do produto equivalente a apenas meia hora de trabalho.  Consequentemente, qualquer um que esteja em condições de oferecer o dobro das horas de trabalho poderá então adquirir esse produto por completo, tirando-o do mercado e utilizando-o para consumo próprio. Para deixar nosso problema mais claro, seria melhor se assumíssemos que o estado impõe efetivamente um imposto sobre a renda dos trabalhadores.  Desta forma, cada hora gasta a mais de trabalho daria a esse trabalhador o direito de obter para si uma quantia maior do bem produzido.

Entretanto, essa maneira de regular a distribuição seria obviamente impraticável, uma vez que o trabalho não é uma quantidade uniforme e homogênea.  Há necessariamente uma diferença qualitativa entre os vários tipos de trabalho, o que leva a uma valoração distinta de acordo com a diferença nas condições de demanda e oferta de seus produtos.  Por exemplo, a oferta de obras-de-arte não pode ser aumentada, ceteris paribus, sem que haja uma queda na qualidade do produto.  Da mesma forma, não se pode permitir que o trabalhador que ofertou uma hora do mais simples tipo de trabalho tenha o direito de receber o produto originado de uma hora de trabalho bem mais qualificado.  Assim, torna-se completamente impossível, em uma comunidade socialista, postular uma conexão entre a importância de qualquer tipo de trabalho para a comunidade e a maneira como será feita a distribuição do produto originado do processo comunal de produção. 

A remuneração da mão-de-obra não pode se dar de outra forma que não seja arbitrária; ela não poderá se basear na valoração econômica do produto, como ocorre em uma sociedade competitiva, onde os meios de produção estão em mãos privadas, pois, como vimos, qualquer valoração desse tipo é impossível em uma comunidade socialista.  A realidade econômica impõe limites claros ao poder que a comunidade tem para fixar a remuneração do trabalho arbitrariamente: em nenhuma circunstância a soma gasta com os salários poderá exceder a renda, em qualquer período de tempo.

Dentro desses limites observados, a comunidade poderá proceder como quiser.  Ela poderá determinar que toda a mão-de-obra seja avaliada igualmente, de forma que cada hora de trabalho, independentemente de sua qualidade, acarrete a mesma remuneração; da mesma maneira, ela poderá levar em consideração apenas a qualidade do trabalho feito.  Entretanto, em ambas as situações ela deverá reservar a si própria o poder de controlar a distribuição específica do produto do trabalho.  Jamais será possível fazer com que aquele indivíduo que colocou uma hora de seu trabalho na produção também tenha o direito de consumir o produto de uma hora de trabalho (mesmo deixando de lado a questão da diferença na qualidade da mão-de-obra e dos produtos, e assumindo que seja possível medir a quantidade de trabalho despendida na fabricação de um determinado bem).  Pois, além da mão-de-obra empregada, a produção de todos os bens econômicos impõe também custos materiais.  Um bem que utilizou mais matéria-prima do que outro jamais poderá ser estimado como tendo o mesmo valor que este.

2. A natureza do cálculo econômico

Todo homem que, no decorrer de sua vida econômica, faz uma escolha entre satisfazer uma necessidade em detrimento de outra, está, por definição, fazendo um juízo de valor.  Tais juízos de valor, assim que formulados, incluem inicialmente apenas a satisfação da necessidade em si; e, só após isso, é que o indivíduo irá recuar e começar a refletir mais objetivamente nos meios para se atingir tal objetivo, começando com os bens de ordem mais baixa e então indo em direção aos bens de ordem mais alta.

Em geral, o homem que conhece sua própria mente está em posição de avaliar quaisquer bens de ordens mais baixas.  E sob condições simples, é também possível que ele forme algum julgamento sobre a importância para ele de alguns bens de ordem mais alta.  Mas nas situações em que o cenário é mais complexo e há mais interconexões que não são facilmente discerníveis, meios mais sutis devem ser utilizados para se obter uma avaliação corretados meios de produção.  Por exemplo, não seria difícil para um agricultor em isolamento econômico fazer uma distinção entre a expansão de seu pasto e a expansão de sua atividade de caça.  Nesse caso, os processos de produção envolvidos são relativamente pequenos, e os custos e a renda inerentes a cada processo podem ser facilmente mensurados.  Mas a situação se torna bem diferente quando a escolha passa a ser entre a utilização de um rio para a obtenção de eletricidade ou a ampliação de uma mina de carvão ou a formulação de quaisquer outros planos para o melhor emprego da energia latente no carvão bruto.  Nesse caso, o processo de produção é maior e mais indireto, sendo que cada etapa é mais longa; consequentemente, as condições necessárias para um empreendimento ter sucesso são diversas, o que significa que não se pode incorrer em avaliações vagas.  Passa a ser necessário ter estimativas mais exatas, bem como algum julgamento das questões econômicas envolvidas.

Avaliações e valorações só podem ocorrer em termos de alguma unidade.  Entretanto, é impossível haver alguma unidade que meça o valor subjetivo de cada bem.  A utilidade marginal não postula qualquer unidade de valor, uma vez que é óbvio que o valor de duas unidades de um determinado bem é necessariamente maior — mas menos que o dobro — do que o valor de apenas uma unidade.  Juízos de valor não mensuram; eles meramente estabelecem graduações e escalas. Mesmo Robinson Crusoé — que tem de tomar uma decisão em um ambiente onde não há um juízo de valor pré-definido, o que significa que ele tem de construir um baseando-se em estimativas pouco exatas — não pode operar utilizando unicamente seus valores subjetivos; antes, ele precisa levar em consideração a capacidade intersubstitutiva dos bens para então formar suas estimativas. 

Nessas circunstâncias, será impossível para ele avaliar todos os bens de acordo com uma unidade já pré-estabelecida.  Ele tem de avaliar todos os elementos que devem ser levados em consideração na formação de suas estimativas baseando-se naqueles bens econômicos que podem ser analisados por um juízo de valor mais óbvio — ou seja, os bens de ordens mais baixas, além do próprio custo do trabalho.  Que isso só seja possível em condições muito simples é algo óbvio.  Para o caso de processos de produção mais complicados e mais longos, tal procedimento não trará respostas.

Em uma economia de trocas voluntárias, a unidade comum de cálculo econômico é representada pelo valor objetivo de troca das mercadorias.  Isso gera uma vantagem tripla.  Em primeiro lugar, passa a ser possível basear o cálculo econômico de acordo com as valorações de todos os participantes da troca.  O valor subjetivo que um dado bem tem para uma pessoa é um fenômeno puramente individual e, portanto, não pode ser imediatamente comparado ao valor subjetivo que esse mesmo bem tem para as outras pessoas.  Isso só se torna possível quando se utiliza valores de troca, os quais surgem naturalmente da interação das valorações subjetivas de todos os indivíduos que participam da troca.  Nesse caso, o cálculo baseado nos valores de troca fornece um controle sobre o método mais apropriado de se empregar os bens. 

Qualquer um que deseje fazer cálculos relacionados a algum complicado processo de produção irá imediatamente perceber se ele está agindo de maneira mais econômica que os concorrentes ou não; se ele descobrir — por meio das relações de troca predominantes no mercado — que não será capaz de produzir lucrativamente, isso significa que outros estão sabendo melhor como fazer um uso mais adequado desses bens de ordem alta.  Por último, utilizar os valores de troca para se fazer cálculos econômicos é o que possibilita avaliar os bens de acordo com uma unidade de conta definida.  E para esse propósito — dado que os bens são mutuamente substituíveis de acordo com as relações de troca predominantes no mercado —, qualquer bem existente pode ser escolhido.  Em uma economia monetária, esse bem escolhido é o dinheiro.

O cálculo monetário tem seus limites.  O dinheiro não é um parâmetro de valor, tampouco de preço.  Nem o valor e nem o preço são mensurados em dinheiro.  Valores e preços são meramente representados pelo dinheiro.  O dinheiro transmite o valor, mas ele não mensura o valor.  Não há uma medida para um valor econômico.  Não há uma maneira objetiva de se medir um valor subjetivo.  O dinheiro é um bem econômico e, como tal, não possui um valor estável, como tem sido ingênua e erroneamente assumido.  A relação de troca que há entre o dinheiro e outros bens está sujeita a constantes — quando não muito violentas — flutuações, que podem se originar não só do lado dos bens econômicos, mas também do lado do dinheiro.  Entretanto, essas flutuações perturbam apenas minimamente os cálculos de valor, uma vez que, por causa das incessantes alterações que ocorrem nas outras variáveis econômicas, esses cálculos irão se referir a períodos de tempo comparativamente pequenos — períodos nos quais uma moeda "forte" irá sofrer apenas flutuações relativamente triviais em seu poder de compra. 

A causa principal da inaptidão do cálculo monetário do valor não está no fato de o valor ser calculado em termos de um meio universal de troca, o dinheiro.  Mas, sim, no fato de que, nesse sistema, o cálculo se baseia no valor de troca e não no valor subjetivo que o uso de tal bem traz para um indivíduo.  O cálculo monetário nunca poderá ser utilizado como medida para calcular o valor daqueles elementos que estão além do domínio das trocas.  Se, por exemplo, um homem tivesse de calcular a lucratividade de se construir uma usina hidráulica, ele não seria capaz de incluir em seus cálculos os danos que tal esquema iria trazer à beleza das cachoeiras; o que ele poderia fazer seria prestar atenção à diminuição que poderia haver no fluxo de turistas ou coisas similares, os quais poderiam ser avaliados em termos monetários.  E essas considerações poderiam acabar sendo um dos fatores que irão decidir se a construção deverá ser feita ou não.

Convencionou-se denominar tais elementos como "extra-econômicos".  Isso talvez seja apropriado; não estamos preocupados com disputas acerca de terminologias.  Não obstante, as considerações feitas dificilmente podem ser consideradas irracionais.  Em qualquer lugar em que o homem considere significante a beleza de uma vizinhança ou de um prédio, a saúde, a felicidade e a satisfação da humanidade, a honra de indivíduos ou de nações, estas coisas, tanto quanto os fatores econômicos, são forças que motivam a conduta racional, mesmo onde elas não são substituíveis entre si no mercado, o que significa que elas não entram, portanto, nas relações de troca.

Que o cálculo monetário não possa abranger esses fatores é algo inerente à sua própria natureza; mas, para os propósitos de nossa vida econômica diária, isso não reduz a importância do cálculo monetário.  Pois todos esses bens ideais são bens de ordens mais baixas, e podem portanto ser incluídos diretamente no âmbito de nossos julgamentos de valor.  Assim, não há qualquer dificuldade em levá-los em consideração, ainda que eles tenham de permanecer fora da esfera dos valores monetários. 

 O fato de eles não admitirem tal cômputo faz com que seja mais fácil — e não mais difícil — considerá-los nos aspectos diários de nossa vida.  Assim que percebemos claramente o tanto que valorizamos a beleza, a saúde e o orgulho, certamente nada pode nos impedir de ter a devida consideração por eles.  Aos espíritos sensíveis, pode parecer doloroso ter de equilibrar os bens espirituais com os materiais.  Mas isso não é culpa do cálculo monetário; é algo totalmente inerente às coisas em si.  Mesmo nos casos em que os juízos de valor podem ser estabelecidos diretamente sem qualquer cálculo monetário, a necessidade de escolher entre satisfação material ou espiritual não pode ser esquivada.  Robinson Crusoé e o estado socialista têm a mesma obrigação de fazer essa escolha.

Qualquer indivíduo que tenha uma noção genuína dos valores morais não padece qualquer dificuldade em se decidir entre a honra e o sustento.  Ele sabe muito bem qual a sua obrigação.  Se um homem não pode honrar seu pão, ele pode ao menos renunciar a seu pão em nome da honra.  Somente aqueles que preferem estar livres da agonia dessa decisão — porque não conseguem renunciar ao conforto material em nome da vantagem espiritual — veem na escolha uma profanação dos valores verdadeiros.

O cálculo monetário tem sentido apenas dentro da esfera da organização econômica.  Trata-se de um sistema por meio do qual as regras da economia podem ser aplicadas para o arranjo e a distribuição dos bens econômicos.  Os bens econômicos apenas participam desse sistema em proporção ao grau em que podem ser trocados por dinheiro.  Qualquer amplificação da esfera do cálculo monetário irá provocar equívocos.  O cálculo monetário não pode ser considerado um padrão de medida para a avaliação de bens, e não pode ser tratado em investigações históricas sobre o desenvolvimento das relações sociais; ele não pode ser utilizado como um critério para a riqueza e a renda nacional e tampouco como um meio de mensurar o valor dos bens que estão fora da esfera de troca. Afinal, quem seria capaz de estimar o grau de perdas humanas, em termos monetários, ocorridas por causa das emigrações ou guerras? Isso é uma mera tolice travestida de erudição, por mais que tal método seja utilizado por economistas normalmente perspicazes.

Apesar disso, dentro desses limites, os quais nunca são ultrapassados dentro da vida econômica, o cálculo monetário preenche todos os requisitos do cálculo econômico.  É ele quem nos guia através da plenitude opressiva das potencialidades econômicas.  Ele nos permite imputar a todos os bens de ordem mais alta o nosso juízo de valor, juízo esse que está estreitamente ligado aos bens que estão prontos para o consumo final, ou que são, na melhor das hipóteses, bens de produção da mais baixa ordem.  O cálculo faz com que os valores desses bens possam ser computados, o que consequentemente nos fornece as bases para todas as operações econômicas com os bens de ordens mais altas.  Sem a possibilidade do cálculo, todos os processos de produção que duram vários anos, bem como todos os processos longos e indiretos, inerentes à produção capitalista, seriam como tatear no escuro.

Há duas condições que governam a possibilidade de se calcular o valor em termos de dinheiro.  Primeiramente, não são apenas os bens de ordem mais baixa que devem estar dentro do âmbito da troca; os de ordem mais alta também têm de estar.  Se eles não fossem incluídos, as relações de troca não surgiriam.  As considerações que predominam no caso em que Robinson Crusoé, em seus domínios e por meio de sua própria produção, pretende trocar trabalho e farinha por pão, são indistinguíveis daquelas que predominam quando ele está preparado para trocar pão por roupas no mercado aberto. Portanto, é de certa forma correto dizer que cada ação econômica, incluindo a própria produção de Robinson Crusoé, pode ser denominada de troca.

Ademais, a mente de um só homem, por mais brilhante que seja, é incapaz de compreender a importância de qualquer um dos inúmeros bens de ordem mais alta.  Nenhum homem pode jamais dominar todas as possibilidades de produção — que são inúmeras — de modo a estar apto a fazer juízos de valor diretamente evidentes, sem a ajuda de algum sistema de computação.  Se distribuíssemos para alguns indivíduos os controles administrativos sobre os bens de toda uma comunidade — cujos homens que trabalham na produção desses bens estão também economicamente interessados neles — teríamos de ter algum tipo de divisão intelectual do trabalho, algo que não seria possível sem algum sistema que calculasse a produção.

A segunda condição é que existe de fato um meio de troca universalmente empregado — a saber, o dinheiro — que também executa a mesma função de meio de troca para os bens de produção.  Se esse não fosse o caso, não seria possível reduzir todas as relações de troca a um denominador comum.

Somente sob condições muito simples é que a economia pode dispensar o cálculo monetário.  Dentro dos limites estreitos de uma economia doméstica, por exemplo, na qual o pai pode supervisionar toda a conduta econômica, é possível determinar, mesmo sem fazer uso de auxílios avançados, qual a importância de algumas mudanças no processo de produção e, ainda assim, obter razoável precisão.  Nesse caso, todo o processo se desenvolve sob um uso relativamente limitado do capital.  Os processos indiretos de produção, típicos do capitalismo, que se encaixam neste modelo são muito poucos: nesse caso, o que estaria sendo manufaturando seriam bens de consumo, ou, no máximo, bens de uma ordem mais alta que estão muito próximos dos bens de consumo.  A divisão do trabalho está em seus estágios mais rudimentares: um único trabalhador controla a mão-de-obra daquilo que é, na realidade, um processo de produção completo de bens prontos para o consumo, do início ao fim.  Tudo isso é diferente, entretanto, nas produções comunais.  As experiências de um período remoto e antigo de produção simples não fornecem qualquer tipo de argumento para se estabelecer a possibilidade de um sistema econômico sem cálculo monetário.

Nos limites estreitos de uma economia doméstica fechada, é possível analisar completamente o processo de produção desde o início até o fim, e julgar durante todo o tempo qual procedimento vai produzir mais bens de consumo.  Isso, entretanto, deixa de ser possível nas circunstâncias incomparavelmente mais intrincadas de nossa economia social.  Assim, é evidente que, mesmo em uma sociedade socialista, 100.000 litros de vinho são preferíveis a 80.000; e não é difícil se decidir entre 100.000 litros de vinho ou 500 de azeite.  Não é necessário sistema algum de cálculo para se estabelecer o seguinte fato: o elemento determinante é a mera vontade dos agentes econômicos envolvidos.  Porém, uma vez que essa decisão tenha sido tomada, a verdadeira tarefa da orientação econômica racional está apenas começando — isto é, como colocar economicamente os meios a serviço dos fins.  Isso só pode ser feito com algum tipo de cálculo econômico.  A mente humana não é capaz de se orientar a si própria adequadamente ao longo de toda a atordoante massa de produtos intermediários, bem como dentre todas as potencialidades de produção, sem tal ajuda.  Ela simplesmente se quedaria perplexa ante os problemas de gerenciamento e ambientação.

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