[...] Eros e a Civilização é um livro de filosofia que tem o objetivo de revisitar as ideias da psicanálise lançadas inicialmente por Freud, criticá-las, relacioná-las ao âmbito da sociedade de classes e destacar os aspectos ainda atuais das teses de Freud, confrontando-os com o revisionismo dos “neofreudianos”. Por Paulo Marçaioli
Considerações Preliminares
Eros e Civilização foi escrito em 1955, correspondendo ao 4º dos 10 grandes livros publicados em vida por Hebert Marcuse. O filósofo alemão está relacionado à Escola de Frankfurt e, no imaginário comum, remete ao conjunto de pensadores que influenciou as lutas do Maio de 1968 na França.
De fato, Marcuse influenciou aqueles jovens ativistas. E muito do que aparece em Eros e Civilização remete às inquietações daquele movimento. A discussão sobre o problema da sexualidade e sua vinculação às relações de poder e/ou arranjos sociais e históricos de dominação e controle; a crítica radical do trabalho alienado, explorando analiticamente os significados simbólicos e psicológicos da exploração e da condição humana em sociedades capitalistas; a sinalização de novas formas de resistência, envolvendo particularmente a crítica igualmente radical dos valores burgueses; enfim, tudo isso sinaliza preocupações semelhantes entre o movimento do Maio de 1968 e o filósofo.
No posfácio político da obra, escrito em 1966, Marcuse já saúda os protestos estudantis norte-americanos contra as guerras imperialistas como uma nova etapa da luta. Citando-o:
Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra e a carnificina neocoloniais, a queima de cartão de recrutamento, a luta pelos direitos civis, mas também a recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se à educação para a afluência. A nova boemia, os beatniks e hipsters, os andarilhos da paz – todos esses “decadentes” passaram agora a ser aquilo que a decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refúgio da humanidade difamada.
O livro, segundo nossa interpretação do posfácio político, associa-se ao movimento de luta política, de “luta pela vida”. Eros, a propósito, designa um deus relacionado à beleza e ao amor sexual – ao longo do ensaio é tratado como sinônimo do “instinto de vida”. A luta pela vida, por sua vez, assume um significado de luta antissistêmica – luta contra o que Marcuse chama de “princípio da realidade” das sociedades repressivas. O instinto pela vida, hoje, passa a ser parte de uma estratégia geral de luta contra o capitalismo – a civilização em sua fase desenvolvida do ponto de vista da luta contra a escassez cria condições objetivas para a construção de uma sociedade igualitária baseada na socialização do trabalho e da política.
Finalmente, Eros e a Civilização é um livro de filosofia que tem o objetivo de revisitar as ideias da psicanálise lançadas inicialmente por Freud, criticá-las, relacioná-las ao âmbito da sociedade de classes e destacar os aspectos ainda atuais das teses de Freud, confrontando-os com o revisionismo dos “neofreudianos”.
Marcuse parte de algumas categorias que são estranhas a um leitor que não conhece Freud. Logo no capítulo 2, Marcuse, provavelmente atento a tal fato, resgata e descreve didática e rapidamente conceitos da psicanálise – id, ego, superego, repressão, princípio de realidade. A esses termos, acresce outros, destinados a contemplar uma perspectiva mais ampla (que leva em consideração a história e os conflitos de classe), propondo alguns termos novos. “Mais Repressão”, a “restrição requerida pela dominação social” e “princípio de desempenho”, a “forma histórica do princípio de realidade”.
Seja como for, vale ponderar que a leitura deste ensaio de Marcuse nos pareceu bastante difícil. Com certeza, algumas discussões da obra escaparam-nos. Ainda assim, Eros e Civilização é um livro que vale ser lido: desafiar-se enfrentar o complexo tema da subjetividade humana, dos desejos libidinais e do impulso pela morte, da repressão moral e do problema da sexualidade no capitalismo, cria melhores condições para, hoje, avaliarmos novas formas de lutar frente a uma compreensão mais elaborada da realidade e de suas contradições.
Marcuse interpreta Freud
O objetivo do ensaio é resgatar as ideias de Freud acerca do problema dos instintos humanos na civilização. O “mal estar da civilização” de Freud diz respeito às contradições supostamente insolúveis entre as exigências do instinto em oposição às exigências da vida em sociedade. Marcuse propõe-se, como indica o título, fazer uma interpretação filosófica de Freud. Isto significa que sua interpretação de Freud não remete a certa abordagem “terapêutica”, que irá circunscrever as possibilidades de reflexão lançadas pelo pai da psicanálise a um conjunto meramente instrumental de práticas cujo objeto exclusivo é atenuar o sofrimento e a dor do indivíduo egoísta, solitário e alienado. Esta interpretação filosófica cumpre, igualmente, a função de demarcar os limites e as possibilidades das ideias de Freud para a luta antissistêmica.
Os limites dizem respeito ao já conhecido ceticismo do pai da psicanálise com relação ao socialismo, ou, no que se refere à crítica marcusiana, à suposta inevitabilidade do “mal estar da civilização”. A naturalização do “mal estar da civilização” é oposta à adequação dos conflitos entre desejos individuais e exigências da civilização, à história e aos conflitos de classe.
Vamos citar, nesse sentido, a crítica da teoria dos instintos.
Contudo, na teoria de instintos, Freud não extrai quaisquer conclusões fundamentais, a partir da distinção histórica, atribuindo a ambos os níveis uma validade geral e igual. Para a sua metapsicologia não constitui fatos decisivo se as inibições são impostas pela escassez ou pela distribuição hierárquica da escassez, pela luta pela existência ou pelo interesse na dominação. E, com efeito, os dois fatores – o filogenético-biológico e o sociológico – cresceram juntos na história documentada da civilização.
Mas a sua união desde há muito se tornou “inatural” – e o mesmo aconteceu à “modificação” opressiva do princípio do prazer pelo princípio da realidade. A sistemática negação, por Freud, da possibilidade de uma libertação essencial do primeiro implica o pressuposto de que a escassez é tão permanente quanto a dominação – uma hipótese que nos parece discutível.
A noção de civilização em Freud passa a ser extrapolada por Marcuse. O viés marxista de sua reflexão filosófica sobre a psicanálise diz respeito, portanto, ao debate sobre as formas como se dão a repressão instintiva partindo do pressuposto de que a realidade pode/deve ser superada e em como uma sociedade pós-repressiva deveria se diferenciar da sociedade do capital.
As críticas ao revisionismo neofreudiano são, finalmente, objeto de um capítulo exclusivo do ensaio. E neste ponto, Marcuse busca retirar as possibilidades do pensamento de Freud, confrontando-o com a orientação de neofreudianos. De maneira geral, a psicanálise criticada por Marcuse corresponde àquela que tem compromissos exclusivos com a “cura” de pacientes. A abordagem terapêutica dos neofreudianos deve operar de forma a desconsiderar o problema dos controles repressivos forjados pelo Estado, família, trabalho alienado, etc. “O analista e seu paciente compartilham dessa alienação, e como esta não se manifesta, usualmente, em qualquer sintoma neurótico, mas, pelo contrário, como timbre de ‘saúde mental’, não aparece na consciência revisionista [das ideias de Freud]”. É interessante notar como, diante dos distintos pressupostos, a psicanálise freudiana pode tanto atuar num sentido emancipatório quanto num viés bastante reacionário.
Exemplificando este último viés, Marcuse cita Sullivan que, em estudo sobre neuroses, identifica a conduta de um indivíduo “depreendido voluntariamente” das amarras do senso comum e que, por livre escolha, adota uma ideologia (ou consciência) radical como sinal de “grande insegurança” ou loucura. Marcuse, por suposto, ridiculariza Sullivan. Levada ao pé da letra, a tese de Sullivan faria de Jesus a Lênin, Sócrates a Giodarno Bruno, perigosos psicopatas.
Finalmente, Eros e a Civilização municia especialistas em psicologia e psicanálise preocupados em entender os fenômenos da neurose individual, da depressão ou do “mal estar da civilização” como sintomas de um mundo igualmente doente e que deve ser revolucionado.
O papel da libido na luta antissistêmica
Na nossa opinião, o capítulo mais interessante de Eros e a Civilização é o décimo, “A transformação da Sexualidade em Eros”. Desde que Marcuse não compartilha da tese de Freud e dos neofreudianos da “naturalização” da sociedade repressiva, o filósofo alemão se aventura corajosamente a pincelar o que seria e quais seriam os requisitos de uma sociedade não repressiva. (Interpretamos ser a sociedade não repressiva a sociedade comunista).
A nova cultura não repressiva tem como eixo central nova relação entre a razão e os instintos. O trabalho não-gratificante passa a ser objeto de prazer, inclusive libidinal. Todo o padrão de prazer libidinal deverá sofrer alterações tão radicais que subverterão e desintegrarão instituições organizadas a partir de relações privadas interpessoais. A família monogâmica e patriarcal, por suposto, desaparece e a transformação da libido (de uma sexualidade refreada a uma espécie de “prazer total”) exigirá mudanças profundas nos marcos políticos e societários. Por isso, a luta de Eros, deus da beleza física e do amor sexual, é uma luta política.
Como conclusão, vamos transcrever dois parágrafos do capítulo 10. Optamos por finalizar esta resenha com esta passagem, já que aqui surgem boas provocações para reflexão e para a atuação.
A complexidade e densidade discursiva do ensaio de Marcuse devem permanecer inquietando os espíritos críticos e servindo como fonte teórica para a luta contra o capital.
Freud realçou repetidamente que as duradouras relações interpessoais de que a civilização depende pressupõem que o instinto sexual é inibido em seus fins. O amor, e as relações duradouras e responsáveis que ele exige, baseiam-se numa união de sexualidade com o “afeto”, e essa união é o resultado histórico de um longo e cruel processo de domesticação, em que a manifestação legítima do instinto se torna suprema e suas partes componentes são sustadas em seu desenvolvimento. Esse refinamento cultural da sexualidade, essa sublimação do amor, tem lugar numa civilização que estabeleceu relações possessivas particulares separadas e, num aspecto decisivo, conflitantes com as relações sociais de posse.
Enquanto, fora do privatismo da família, a existência do homem foi principalmente determinada pelo valor de troca dos seus produtos e desempenhos, sua vida no lar e na cama foi impregnado do espírito da lei divina e moral. Supôs-se que a humanidade era um fim em si e nunca um simples meio; mas essa ideologia era efetiva mais nas funções privadas do que nas sociais dos indivíduos; mais na esfera da satisfação libidinal do que na do trabalho. A força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o uso do corpo como mero objeto, meio, instrumento de prazer; tal coisificação era tabu e manteve-se como infeliz privilégio de prostitutas, degenerados e pervertidos. Precisamente em sua gratificação e, em especial, em sua gratificação sexual, o homem tinha de comportar-se como um ser superior, vinculado a valores superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor.
Com o aparecimento de um princípio de realidade não-repressivo, com a abolição da repressão requerida pelo princípio do desempenho, esse processo seria invertido. Nas relações sociais, a coisificação reduzir-se-ia à medida que a divisão do trabalho se reorientasse para a gratificação de necessidades individuais desenvolvendo-se livremente; ao passo que, na esfera das relações libidinais, o tabu sobre coisificação do corpo seria atenuado. Tendo deixado de ser usado como instrumento de trabalho em tempo integral, o corpo seria ressexualizado. Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a família monogâmica e patriarcal.
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