O cristianismo em poucas palavras.
"Jesus não começou anunciando a si mesmo ou à Igreja. Anunciou o Reino de Deus, que significa o sonho de uma revolução absoluta"Não são poucos, cristãos ou não, os que perguntam: o que o cristianismo pretende? Cristo, de onde vem “cristianismo”, o que pretendeu quando passou entre nós, há mais de dois mil anos?
A resposta deve, por um momento, esquecer todo o aparato doutrinário criado ao longo da história e ir diretamente ao essencial. E esse essencial deve ser expressado de forma que pessoas simples possam entendê-lo.
Jesus não começou anunciando a si mesmo ou à Igreja. Anunciou o Reino de Deus, que significa o sonho de uma revolução absoluta, que se propõe transformar todas as relações que se encontram deturpadas, no pessoal, no social, no cósmico e, especialmente, com referência a Deus. Esse reino começa quando as pessoas aderem a esse anúncio esperançador e assumem a ética do Reino: o amor incondicional, a misericórdia, a fraternidade sem fronteiras, a aceitação humilde de Deus vivido como Pai de infinita bondade.
Além de proclamar o Reino de Deus, qual é a intenção original de Jesus? Os apóstolos fizeram essa pergunta diretamente a Jesus, usando um rodeio linguístico típico daquele tempo: “Senhor, ensina-nos a rezar” (Lucas 11,1). Isso é o mesmo que pedir: “Dá-nos um resume de tua mensagem; qual é a tua proposta?” Jesus responde com o Pai Nosso. É a ipsissima vox Jesu: a palavra que, sem dúvida, saiu da boca do Jesus histórico.
Nessa oração está o mínimo do mínimo da mensagem de Jesus: Deus-Abba e seu reino, o ser humano e suas necessidades. Mais resumidamente: trata-se do Pai nosso e do pão nosso no arco do sonho do Reino de Deus. Aqui, encontram-se os dois movimentos: um rumo ao céu, e aí encontra a Deus como Abba, Pai nosso querido e seu projeto de resgate de toda a criação (o Reino); outro rumo à terra; e aí encontra o pão nosso sem o qual não podemos viver. Observe-se que não se diz “meu Pai”, mas “Pai nosso”; nem “meu pão”, mas “pão nosso de cada dia”.
Somente podemos dizer amém se unimos os dois polos: o Pai com o pão. O cristianismo se realiza nessa dialética: anunciar um Deus bom porque é Pai querido que tem um projeto de total libertação e, ao mesmo tempo, e à luz dessa experiência, construir coletivamente o pão como meio de vida para todos.
Conhecemos a tragédia que aconteceu com Jesus. O Reino foi rechaçado e seu anunciador executado na cruz. Porém, Deus tomou partido por Jesus: o ressuscitou. A ressurreição não é a reanimação de um cadáver; mas, a emergência do “novo Adão” (I Coríntios 15,45). A ressurreição é a realização do sonho do Reino na pessoa de Jesus como antecipação do que vai acontecer com todos e com o universo inteiro.
A execução de Jesus e sua ressurreição abriram um espaço para que surgissem o movimento de Jesus, as primeiras comunidades em âmbito familiar e local e, por fim, a Igreja como comunidade de fieis e comunidade de comunidades.
“Cristianismo. O mínimo do mínimo” recolhe o que significou o cristianismo na história, em seus momentos de sombras e de luzes, até chegar ao dia de hoje, com o desafio de encontrar seu lugar no processo de mundialização da humanidade. Esta descobre-se vivendo em uma única Casa Comum, o planeta Terra, agora gravemente ameaçado por uma crise ecológica generalizada, que pode pôr em risco o futuro de nossa civilização, e, inclusive, a sobrevivência da espécie humana.
O cristianismo pode contribuir com elementos salvadores porque Deus, segundo as Escrituras judaico-cristãs, é “o soberano amante da vida” (Sabedoria 11,24) e não permitirá que a vida e o mundo, assumidos pelo Verbo, desapareçam da história.
*Leonardo Boff é teólogo e filósofo
Papa Francisco e a Teologia da Libertação
26/04/2013
Muitos se tem perguntado que pelo fato de o atual Papa Francisco provir da América Latina, seja um adepto da teologia da libertação. Esta questão é irrelevante. O importante não é ser da teologia da libertação, mas da libertação dos oprimidos, dos pobres e injustiçados. E isso ele o é com indubitável claridade.
Este, na verdade, sempre foi o propósito da teologia da libertação. Primeiramente vem a libertação concreta da fome, da miséria, da degradação moral e da ruptura com Deus. Esta realidade pertence aos bens do Reino de Deus e estava nos propósitos de Jesus. Depois, em segundo lugar, vem a reflexão sobre este dado real: em que medida aí se realiza antecipatoriamente o Reino de Deus e de que forma o cristianismo, com o potencial espiritual herdado de Jesus, pode colaborar, junto com outros grupos humanitários, nesta libertação necessária.
Esta reflexão posterior, chamada de teologia, pode existir ou não pois pode não haver pessoas que tenham condições de exercer esta tarefa. O decisivo é que o fato da libertação real ocorra. Mas sempre haverá espíritos atentos que ouvirão o grito do oprimido e da Terra devastada e que se perguntarão: com aquilo que aprendemos de Jesus, dos Apóstolos e da doutrina cristã de tantos séculos, como podemos dar a nossa contribuição ao processo de libertação? Foi o que realizou toda uma geração de cristãos, de cardeais a leigos e a leigas a partir dos anos 60 do século passado. Continua até os dias de hoje, pois os pobres não cessam de crescer e seu grito já se transformou num clamor.
Ora, o Papa Francisco fez esta opção pelos pobres, viveu e vive pobremente em solidariedade a eles e o disse claramente numa de suas primeiras intervenções:”Como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Neste sentido, o Papa Francisco, está realizando a intuição primordial da Teologia da Libertação e secundando sua marca registrada: a opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e a favor da vida e da justiça.
Esta opção não é para ele apenas discurso mas opção de vida e de espiritualidade. Por causa dos pobres, tem se indisposto com a presidenta Cristina Kirchner pois cobrou de seu governo mais empenho político para a superação dos problemas sociais que, analiticamete se chamam desigualdades, eticamente, representam injustiças e teologicamente constituem um pecado social que afeta diretamente ao Deus vivo que biblicamente mostrou estar sempre do lado dos que menos vida tem e são injustiçados.
Em 1990 havia na Argentina 4% de pobres.Hoje, dada a voracidade do capital nacional e internacional, se elevam a 30%. Estes não são apenas números. Para uma pessoa sensível e espiritual como o bispo de Roma Francisco, tal fato representa uma via-sacra de sofrimentos, lágrimas de crianças famintas e desespero de paisdesempregados. Isso faz-me lembrar uma frase de Dostoiewski: ”Todo o progresso do mundo não vale o choro de uma criança faminta.” \
Esta pobreza, tem insistido com firmeza o Papa Francisco: não se supera pela filantropia mas por políticas públicas para que devolvam dignidade aos oprimidos e os tornecidadãos autônomos e participativos.
Não importa que o Papa Francisco não use a expressão “teologia da libertação”. O importante mesmo é que ele fala e age na forma de libertação.
É até bom que o Papa não se filie a nenhum tipo de teologia, como a da libertação ou de qualquer outra. Seus dois antecessores assumiram certo tipo de teologia que estava em suas cabeças e se apresentava como expressões do magistério papal. Em nome disso se fizeram condenações de não poucos teólogos e teólogas.
Está comprovado historicamente que a categoria “magistério” atribuída aos Papas é uma criação recente. Começou a ser empregada pelos Papas Gregório XVI (1765-1846) e por Pio X (1835-1914) e se fez comum com Pio XII (1876-1958). Antes “magistério” era constituído pelos doutores em teologia e não pelos bispos e pelo Papa. Estes são mestres da fé. Os teólogos são mestres da inteligência da fé. Portanto, aos bispos e Papas não cabia fazer teologia: mas testemunhar oficialmente e garantir zelosamente a fé crista. Aos teólogos e teólogas cabia e cabe aprofundar este testemunho com os instrumentos intelectuais oferecidos pela cultura em presença. Quando Papas se põem a fazer teologia, como ocorreu recentemente, não se sabe se falam como Papas ou como teólogos. Cria-se grande confusão na Igreja; perde-se a liberdade de investigação e o diálogo com os vários saberes.
Graças a Deus que o Papa Francisco explicitamente se apresenta como Pastor e não como Doutor e Teólogo mesmo que fosse da libertação. Assim é mais livre para falar a partir do evangelho, de sua inteligência emocional e espiritual, com o coração aberto e sensível, em sintonia com o mundo hoje planetizado.Que o Papa deixe aos tólogos fazer teologia e ele presida a Igreja no amor e na esperança. Papa Francisco: coloque a teologia em tom menor para que a libertação ressoe em tom maior: consolação para os oprimidos e interpelação às consciências dos poderosos. Portanto, menos teologia e mais libertação.
Leonardo Boff é autor de Teologia do cativeiro e da libertação, Vozes 2013.
O Papa Francisco e a economia política da exclusão
12/12/2013
O Papa Francisco não conheceu o capitalismo central e triunfante da Europa mas o capitalismo periférico, subalterno, agregado e sócio menor do grande capitalismo mundial. O grande perigo nunca foi o marxismo mas a selvageria do capitalismo não civilizado. Esse tipo de capitalismo gerou no nosso Continente latino-americano uma escandalosa acumulação de uns poucos à custa da pobreza e da exclusão das grandes maiorias do povo.
Seu discurso é direto, explícito, sem metáforas encobridoras, como costuma ser o discurso oficial e equilibrista do Vaticano que coloca o acento mais na segurança e na equidistância do que na verdade e na clareza da própria posição.
A posição do Papa Francisco é claríssima: a partir dos pobres e excluidos:”não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem” esta opção já “que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres”(Exortação n.48). De forma contundente denuncia:”o sistema social e econômico é injusto em sua raiz(n.59); “devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social; esta economia mata…o ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora; os excluidos não são os ‘explorados’ mas resíduos e ‘sobras”(n. 53).
Não se pode negar: esse tipo de formulação do Papa Francisco lembra o magistério dos bispos latino-ameriacanos de Medelin (1968), Puebla (1979) e Aparecida (2005) bem como o pensamento comum da teologia da libertação. Esta tem como seu eixo central a opção pelos pobres, contra a sua pobreza e em favor da vida e da justiça social.
Há uma afinidade perceptível com o economista Karl Polanyi que, por primeiro, denunciou a “Grande Transformação”(título do livro de 1944) ao fazer da economia de mercado uma sociedade de mercado. Nesta tudo vira mercadoria, as coisas mais sagradas e as mais vitais. Tudo é objeto de lucro. Tal sociedade se rege estritamente pela competição, pela regência do individualismo e pela ausência de qualquer limite. Por isso nada respeita e cria um caldo de violência, intrínseca à forma como ela se constrói e funciona, duramente criticada pelo Papa Francisco (n. 53). Ela gestou um efeito atroz. Nas palavras do Papa: “desenvolveu uma globalização da indiferença; tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios; já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos em cuidar deles”(n.54). Numa palavra, vivemos tempos de grande desumanidade, impiedade e crueldade. Podemos nos considerar ainda civilizados se por civilização entendermos a humanização do ser humano? Na verdade, regredimos à primitivas formas de barbárie.
Conclusão final que o Pontífice deriva desta inversão:”não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”(n.204). Destarte ataca o coração ideológico e falso do sistema imperante.
Onde vai buscar alternativas? Não vai beber da esperada Doutrina Social da Igreja. Respeita-a mas observa:”não podemos evitar de ser concretos para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém”(n.182). Vai buscar na prática humanitária do Jesus histórico. Não entende sua mensagem como regra, engessada no passado, mas como inspiração que se abre para a história sempre cambiante. Jesus é alguém que nos ensina a viver e a conviver a “reconhecer o outro, curar as feridas, construir pontes, estreitar laços e ajudar-nos a carregar as cargas uns dos outros”(n.67). Personalizando seu propósito diz:”a mim interessa procurar que, quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e egoista, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo que dignifique a sua passagem por esta terra”(n.208). Esta intenção se assemelha àquela da Carta da Terra que aponta valores e princípios para uma nova Humanidade que habita com amor e cuidado o planeta Terra.
O sonho do Papa Francisco atualiza o sonho do Jesus histórico, o do Reino de justiça, de amor e de paz. Não estava na intenção de Jesus criar uma nova religião, mas pessoas que amam, se solidarizam, mostram misericórdia, sentem a todos como irmãos e irmãs porque todos filhos e filhas no Filho.
Esse tipo de cristianismo não tem nada de proselitismo mas conquista pela atração de sua beleza e profunda humanidade. São tais valores que irão salvar a humanidade.
Leonardo Boff escreveu:O Cristianismo: o mínimo do mínimo,Vozes 2011.
A
Tradição de Jesus versus a Religião Cristã
13/10/2013
Para se entender corretamente o
Cristianismo se fazem necessárias algumas distinções, aceitas pela grande
maioria dos estudiosos. Assim importa distinguir entre o Jesus histórico e o
Cristo da fé. Sob o Jesus histórico se entende o pregador e profeta de Nazaré
como realmente existiu sob César Augusto e Pôncio Pilatos. O Cristo da fé é o
conteúdo da pregação dos discípulos que veem nele o Filho de Deus e o Salvador.
Outra distinção importante é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a
mensagem originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta redefinindo as
relações do ser humano com Deus (filhos e filhas), com os outros (todos irmãos
e irmãs) com a sociedade (centralidade dos pobres) e com o universo (a gestação
de um novo céu e uma nova terra). A Igreja não é o Reino de Deus mas uma
construção história para levar avante a causa do Reino. Encarnou-se na cultura
ocidental mas também em outras como na oriental e na copta.
Outra distinção importante é entre a Tradição de Jesus e a religião cristã. A
Tradição de Jesus se situa anteriormente à escritura dos evangelhos, embora
esteja contida neles. Os evangelhos foram escritos depois de 30 até 60 anos
depois da execução de Jesus. Nesse entretempo já se haviam organizado
comunidades e igrejas, com suas tensões internas naturais às instituições. Os
evangelhos refletem esta realidade. Não pretendem ser livros históricos, mas de
edificação e de difusão da vida e da mensagem de Jesus como Salvador do mundo.
Dentro deste emaranhado que signfica a Tradição de Jesus? É aquele núcleo duro,
aquele conteúdo que cabe numa casca de noz e que representa a intenção
originária e a prática de Jesus (ipsissima intentio et acta Jesu) antes das
interpretações que posteriormente se fizeram dele. Esta pode ser resumida nos
seguintes pontos entre outros:
Em primeiro lugar vem o sonho de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução
absoluta da história e do universo, proposta conflitiva pois se opunha ao Reino
de César. Depois sua experiência pessoal de Deus que a transmitiu ao
seguidores: Deus é Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. Sua
característica especial é a misericórdia, pois ama até os ingratos e maus (Lc
6, 35). Em seguida prega e vive o amor incondicional ao outro que é posto na
mesma altura que o amor a Deus. A centralidade reside aos pobres e invisíveis.
Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino, não por sua
condição moral, mas porque são privados de vida, o que leva o Deus vivo a optar
por eles. Neles se esconde o próprio Cristo (Mt 25, 40). Outro ponto importante
é a comunidade. Ele escolheu doze para viverem com ele; o número doze é
simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a comunidade de
todos os povos, feitos Povo de Deus. Por fim é o uso do poder. Só se legitima
aquele uso que é serviço e seu portador deve buscar o último lugar.
Este conjunto de valores e visões constitui a Tradição de Jesus. Como se depreende,
não se trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era
ensinar a viver e não criar uma nova religião com frequeses piedosos. A
Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual que pode ganhar muitas
formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial ou religioso.
Ocorre que essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa
religião, a religião cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas
Igrejas especialmente a Igreja romano-católica. Elas se caracterizam por serem
instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones
jurídicos. A Igreja católico-romana concretamente se organizou ao redor da
categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma
pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos
e das mulheres. Ela detém as decisões e o monópolio da palavra. É hirárquica e
criadora de grandes desigualdades. Ela caiu na tentação de se identificar com a
Tradição de Jesus que é maior que a Igreja.
Esse tipo de tradução histórica encobriu de cinzas grande parte da
originalidade e do fascínio da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas
estão em crise, pois a maioria se colocou como fim em si mesmo e não como
caminho para Jesus.
O próprio Jesus entrevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adianta
observar as leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a
misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro”(Mt 23, 23).
Atualizemos: em que reside o
fascínio da figura e dos discursos do Papa Francisco? Reside no fato de se
ligar mais à Tradição de Jesus do que à religião cristã. Afirma que “o amor vem
antes do dogma e o serviço aos pobres antes das doutrinas” (Civiltà Cattolica).
Sem essa inversão o Cristianismo perde “o frescor e a fragância do evangelho” e
se transforma numa ideologia e numa obsessão doutrinária.
Não há outro caminho para a recuperação da credibilidade perdida da Igreja senão voltar à Tradição de Jesus como o faz sabiamente o Papa Francisco.
Leonardo Boff (*1938) doutorou-se em teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e depois professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
13/10/2013
Outra distinção importante é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a mensagem originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta redefinindo as relações do ser humano com Deus (filhos e filhas), com os outros (todos irmãos e irmãs) com a sociedade (centralidade dos pobres) e com o universo (a gestação de um novo céu e uma nova terra). A Igreja não é o Reino de Deus mas uma construção história para levar avante a causa do Reino. Encarnou-se na cultura ocidental mas também em outras como na oriental e na copta.
Outra distinção importante é entre a Tradição de Jesus e a religião cristã. A Tradição de Jesus se situa anteriormente à escritura dos evangelhos, embora esteja contida neles. Os evangelhos foram escritos depois de 30 até 60 anos depois da execução de Jesus. Nesse entretempo já se haviam organizado comunidades e igrejas, com suas tensões internas naturais às instituições. Os evangelhos refletem esta realidade. Não pretendem ser livros históricos, mas de edificação e de difusão da vida e da mensagem de Jesus como Salvador do mundo.
Dentro deste emaranhado que signfica a Tradição de Jesus? É aquele núcleo duro, aquele conteúdo que cabe numa casca de noz e que representa a intenção originária e a prática de Jesus (ipsissima intentio et acta Jesu) antes das interpretações que posteriormente se fizeram dele. Esta pode ser resumida nos seguintes pontos entre outros:
Em primeiro lugar vem o sonho de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução absoluta da história e do universo, proposta conflitiva pois se opunha ao Reino de César. Depois sua experiência pessoal de Deus que a transmitiu ao seguidores: Deus é Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. Sua característica especial é a misericórdia, pois ama até os ingratos e maus (Lc 6, 35). Em seguida prega e vive o amor incondicional ao outro que é posto na mesma altura que o amor a Deus. A centralidade reside aos pobres e invisíveis. Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino, não por sua condição moral, mas porque são privados de vida, o que leva o Deus vivo a optar por eles. Neles se esconde o próprio Cristo (Mt 25, 40). Outro ponto importante é a comunidade. Ele escolheu doze para viverem com ele; o número doze é simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a comunidade de todos os povos, feitos Povo de Deus. Por fim é o uso do poder. Só se legitima aquele uso que é serviço e seu portador deve buscar o último lugar.
Este conjunto de valores e visões constitui a Tradição de Jesus. Como se depreende, não se trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era ensinar a viver e não criar uma nova religião com frequeses piedosos. A Tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial ou religioso.
Ocorre que essa Tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, a religião cristã: uma organização religiosa, sob a forma de diversas Igrejas especialmente a Igreja romano-católica. Elas se caracterizam por serem instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, ritos e cânones jurídicos. A Igreja católico-romana concretamente se organizou ao redor da categoria poder sagrado (sacra potestas) todo concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a Hierarquia com o Papa na cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres. Ela detém as decisões e o monópolio da palavra. É hirárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela caiu na tentação de se identificar com a Tradição de Jesus que é maior que a Igreja.
Esse tipo de tradução histórica encobriu de cinzas grande parte da originalidade e do fascínio da Tradição de Jesus. Por isso as Igrejas todas estão em crise, pois a maioria se colocou como fim em si mesmo e não como caminho para Jesus.
O próprio Jesus entrevendo este desenvolvimento, advertiu que pouco adianta observar as leis e “não se preocupar com o mais importante que é a justiça, a misericórdia e a fé; é isso que importa, sem omitir o outro”(Mt 23, 23).
Conta-se entre um dos iniciadores da teologia da libertação. É assessor de movimentos populares. Conhecido como professor e conferencista no pais e no estrangeiro nas áreas de teologia, filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Em 1985 foi condenado a um ano de silêncio obsequioso pelo ex-Santo Ofício, por suas teses no livro Igreja: carisma e poder (Record).
A partir dos anos 80 começou a aprofundar a questão ecológica como prolongamento da teologia da libertação, pois não somente se deve ouvir o grito do oprimido mas também o grito da Terra porque ambos devem ser libertados. Em razão deste compromisso participou da redação da Carta da Terra junto com M.Gorbachev, S.Rockfeller e outros. Escreveu vários livros e foi agraciado com vários prêmios.
Salientamos alguns títulos: Ecologia: Ecologia, Mundialização, Espiritualidade (Record), Civilização planetária (Sextante), A voz do arco-iris (Sextante), Saber cuidar (Vozes), Ética e ecoespiritualidade (Verus), Homem: satã ou anjo bom (Record), Evangelho do Cristo cósmico (Record); Do iceberg à Arca de Noé (Sextante); Opção Terra. A solução da Terra não cái do céu (Sextante); Proteger a Terra-cuidar a vida.Como evitar o fim do mundo (Record); Ecologia: grito da Terra, grito do pobre (Sextante) pelo qual recebeu o prêmio Sérgio Buarque de Holanda como o melhor ensaio social do ano de 1994 e em 1997 nos EUA foi considerado um dos três livros publicados naquele ano que mais favorecia o dialogo entre ciência e religião.
Junto com Mark Hathaway escreveu nos USA The Tao of Liberation. Exploring the Ecogoy of Transformation com Prefácio de Fritjof Capra, ganhando a medalha de ouro da instituição Nautilus para criatividade intelectual e o primeiro lugar do livro religioso do ano. Recebeu os títulos de dr.honoris causa em política pela Universidade de Turin em 1991, dr.honoris causa em teologia pela Universidade de Lund (Suécia) em 1992 e dr.honoris causa em teologia, ecumenismo, direitos humanos, ecologia e entendimento entre os povos pelas Faculdades EST de São Leopoldo em 2008 e dr.horis pela Cátedra del Água da Universidade de Rosário na Argentina em 2010. Em 2008 pela Universidade de São Carlos em Guatemala e pela Universidade de Cuenca no Equador, recebeu o titulo de Professor Honorário. Foi assesssor da Presidência da Assembléia da ONU ao tempo da administração de Miguel d’Escoto Brockmann (2008-2009) e participa atualmente do grupo de reforma da ONU, especialmente quanto à Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade.
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