A 8 de julho de 1885, nascia o filósofo do "princípio esperança" e da "utopia concreta" e um dos mentores do movimento estudantil. Décadas depois, o pensamento do alemão Ernst Bloch permanece vivo.
Um punho esquerdo cerrado; abaixo do polegar, uma estrela. No ano da morte de Ernst Bloch, o diretório acadêmico da Universidade de Tübingen propôs que a instituição adotasse o nome do filósofo, acompanhado desta logomarca.
A homenagem lembra que Bloch foi um dos pais intelectuais do movimento estudantil. O punho fechado em protesto evoca um gesto muito repetido por ele em suas palestras, expressando resistência contra a injustiça existente.
"Utopia concreta"
Ernst Bloch nasceu em 8 de julho de 1885, numa família judaica de Ludwigshafen. Muitos anos mais tarde, ele ainda definiria como constitutivo para seu pensamento o contraste entre a cidade natal, industrial e operária, e a vizinha Mannheim, burgo da cultura burguesa herdada.
Em 1905, iniciou seus estudos de Filosofia, Germanística, Física e Música em Munique e Würzburg, doutorando-se em Filosofia três anos mais tarde. Já em 1918 publicou a obra Espírito da utopia, onde afirma: "O mundo existente é o mundo passado, porém o anseio humano, em ambas suas formas – como inquietude e como sonho acordado – é a vela que leva ao outro mundo".
Defendendo-se das acusações de perseguir o irrealizável, Bloch desenvolverá o conceito, aparentemente paradoxal, da "utopia concreta", distanciando-se assim tanto do puro sonho quanto do banimento de todas as esperanças para um mundo melhor, para o além.
À ideia freudiana do inconsciente como algo "não-mais-consciente", o filósofo justapõe a existência do "ainda-não-consciente". "Sobretudo nos dias de expectativa, em que predomina não o que já foi, mas sim o que está por vir, na dor indignada, na gratidão da felicidade, na visão do amor [...], transpomos claramente as fronteiras de um saber ainda-não-conhecido."
Nasce o princípio esperança
Após seu doutorado, Bloch torna-se amigo do filósofo húngaro Georg Lukács e frequenta os círculos de Max Weber em Heidelberg. Na década de 20, vivendo como autor autônomo em Berlim, aproxima-se tanto de Walter Benjamin, Theodor Adorno e Siegfried Kracauer como dos artistas Bertolt Brecht, Kurt Weill e Otto Klemperer.
Já em 1924, Bloch se manifestara contra a ameaça nazista num artigo intitulado "A violência de Hitler". A ascensão ao poder do Partido Nacional-Socialista em 1933 obriga o filósofo ao exílio. Após permanências em Paris e Praga, passa a viver, a partir de 1938, nos Estados Unidos. Lá ele inicia, entre muitos outros projetos, o manuscrito de sua obra máxima, O princípio esperança, cujo primeiro de três volumes só será lançado em 1954.
Música e esperança
Para o pensador judeu, a precondição para que se supere a servidão e as estruturas hierárquicas da sociedade é o princípio vital da esperança. Este não se deixa abalar por uma decepção qualquer, pois o ser humano precisa de coragem e de disposição à luta, um "otimismo militante".
Esperança e utopia dirigem-se, para Bloch, a alvos concretos: um humanismo real; uma sociedade cujos membros façam valer seu direito de recusar a posição de humilhados e ofendidos, onde possam ousar "andar eretos". Ao contrário de seus colegas marxistas, para ele a superação do capitalismo não passava de trabalho preparatório, a caminho desse alvo maior.
Nesse longo caminho, as artes, em especial a música, desempenham um papel ativo: "A relação com este mundo torna a música um sismógrafo social, ela reflete fraturas sob a superfície social, expressa desejos de transformação, convida à esperança. [...] O som exprime o que ainda está mudo no ser humano", afirma Bloch em O princípio esperança.
"Revisionista" na Alemanha Oriental
Em 1949, Bloch retorna à terra natal, visando "cooperar com todas as forças para a construção democrática da Alemanha", e assume a cátedra de Filosofia na Universidade de Leipzig, na então República Democrática Alemã (RDA).
O conflito com o Partido Socialista Unitário (SED), latente desde o início, explode em 1956, quando sua obra é classificada como "antimarxista e revisionista".
Durante uma viagem à Alemanha Ocidental, cinco anos mais tarde, ele e sua família são surpreendidos pela construção do Muro de Berlim, que dividirá o país fisicamente em duas metades, duas visões de mundo. Bloch decide permanecer, passando a lecionar na Universidade de Tübingen.
Revolução, movimento estudantil e terrorismo
Bloch saudou o movimento estudantil do final dos anos 60 como uma "rebelião contra a repressão primária", capaz de pôr em desordem e movimento uma sociedade estagnada. "Nossos senhores fazem, eles próprios, que o homem comum se torne seu inimigo e se indigne, e a isso eles chamam de rebelião."
Entretanto o filósofo distinguia estritamente entre protestos estudantis e o terrorismo desgovernado à maneira da Facção do Exército Vermelho (RAF). "Não se deve confundir revolução com exibição barata de força. Espernear sem cessar porque nada nos agrada, jogar tudo fora por ter visto algo melhor [...], isso não é revolução. É claro que revolução é um estado de maturidade."
O filósofo faleceu em 4 de agosto de 1977, em Tübingen. E a "Universidade Ernst Bloch" é uma utopia: ela só existiu no mundo palpável por um curto espaço de tempo e sob pressão estudantil. Porém a assembleia geral dos estudantes reivindicou para si o nome e a logomarca, e os preserva, mais de 30 anos depois. Movida a esperança, a resistência contra o jeito como as coisas são – mas não deveriam ser – continua, nem que seja apenas em algumas cabeças.
Ele foi uma espécie de exceção na filosofia dos começos do século XX, visto que o que o atraiu sua reflexão não foram os ascendentes aspectos científicos e tecnológicos, como no caso dos marxistas evolucionistas ou dos neopositivistas em geral. O que fascinou Ernst Bloch, pensador judeu-alemão falecido em 1977, foram os elementos imaginativos, os "sonhos diurnos" de todos nós, e como eles tinham o poder de modelar o comportamento e a cultura dos homens. Filósofo de tendência marxista, tratou de ressaltar o quanto à doutrina de Marx, ainda que produto histórico do iluminismo e da revolução industrial, foi também herdeira dos movimentos cristão-milenaristas da Europa Ocidental.
Marxismo e Messianismo
Todo o esforço teórico de Karl Marx e de Friedrich Engels foi apresentar a doutrina do Materialismo Dialético como que amparada nos foros da revolução positivista do século XIX. O socialismo deles - ao contrário dos socialistas "utópicos" como Saint-Simon, Owen, Fourier, ou de tantos outros delirantes pregadores de sociedades ideais - era "científico", e queriam a máxima distância das fantasias igualitárias que reformadores sociais, seus contemporâneos, faziam.
Assim sendo, "utopia" para a dupla era algo pejorativo, produto de mentes bem intencionadas mas imprecisas, que nada possuíam de valor prático. Ao tempo em que implicavam com a utopia, denunciaram ainda mais a "ideologia", cortina de idéias e sutis pretextos outros usados pelas classes dominantes para justificarem o seu domínio e a exploração a que submetiam as massas. Somente a proposta deles, extraída de rigoroso estudo da economia-política capitalista, da história e da sociedade em geral, é que realmente tinha valor, o "socialismo científico". Para Marx, a catástrofe do capitalismo com o subseqüente fim do domínio da burguesia, a ocorrer mais adiante, não era uma previsão escatológica mas resultado da essência interna do sistema por ele detalhadamente examinado com rigor de um dissecador de laboratório.
Pois nada disso Ernst Bloch levou em consideração, fazendo com que se deixasse seduzir exatamente pelo que Marx e Engels mais repeliam, isto é, aquelas fabulações de querer implantar na terra o Reino dos Céus, ainda que em sua versão secularizada. Bloch, afastando-se da pretensão científica do marxismo, procurou enfatizar o conteúdo messiânico e salvacionista que a doutrina revolucionária era portadora. Seguramente, para ele, o atrativo dela estava nos seus elementos emocionais-redentores e não nos racionais-evolucionistas.
Por isso, o Marx de Bloch é o dos Frühschriften: os escritos juvenis de Marx, os "Manuscritos econômico-filosóficos", a "Sagrada Família", a "Ideologia Alemã", as "Teses sobre Feuerbach", e tantos outros ensaios dos anos de 1844-5, tempo em que ele não era marxista, quando o gosto do pensador era ainda envolver-se com idéias, com ideologias, e não com estatísticas ou índices de produção econômica que predominam no Das Kapital.
Deste modo, a utopia, que Marx e Engels botaram aos empurrões para fora do movimento socialista do século XIX, ressurgia nos começos do século XX para ocupar o âmago da reflexão filosófica e política de Bloch. Na verdade ele realizou uma complexa e uma tanto estranha síntese que envolvia o messianismo judaico-cristão com o marxismo, tudo interpretado ao viés da filosofia hegeliana.
O retorno da utopia
Antes de se dar prosseguimento, importa esclarecer o uso do conceito utopia por Bloch, utilizado por ele de maneira bem mais ampla e genérica do que comumente é conhecida. Na terminologia das ciências sociais e políticas, a palavra utopia é sempre associada à descrição de uma sociedade inexistente, a algo ainda não concreto e que jamais houve de fato, a não ser na dialética imaginativa de Platão ("República") ou na narrativa de Thomas More ("Utopia"), e tantos outros narradores imaginativos. Para Bloch não. Este uso, apesar de ser o mais corriqueiro e célebre, parece-lhe limitado, é apenas um dos aspectos de como o fenômeno utópico aparece.
A utopia de Bloch é algo superdimensionado. É, por assim dizer, todo e qualquer pensamento maravilhoso que brota da mente humana. Pode ser a constituição de uma sociedade perfeita, arquitetura intelectual de uma infinidade de reformadores religiosos e de filósofos sociais, ou um simples desejo de que ocorram coisas melhores no futuro. Pode por igual surgir nos versos do poeta, no sonhar acordado de um Goethe, de um Klopstok, de um Hölderlin,ou ainda nos castelos no ar das histórias infantis e das aventuras de Karl May, e os tantos "sonhos diurnos" que nos acometem em diversos instantes ao longo da vida.(*)
Ela, a utopia, é uma manifestação intelectual "do pressentimento da esperança", um quadro imaginário e impreciso do porvir, e que ao contrário de manifestar-se como uma inconseqüente fabulação, é fato fundamental na construção do futuro.
(*) "O sonho acordado", diz Pierre Furter, um dos seus comentadores, "manifesta uma verdadeira fome psíquica pelo qual o homem imagina planos futuros e outras situações em que supere os problemas, as dificuldades e as obrigações de um hoje onipresente. Assim, os sonhos acordados nos dão uma primeira forma tosca, vaga, talvez ilusória, do que será, numa fase mais elaborada, a utopia" (in "Dialética da Esperança", cit. p/ Suzana Albornoz, 1985)
O reaparecer das utopias
Com a modernidade, as utopias reapareceram como forma peculiar de conhecimento e processo secularizado das experiências milenaristas ocorridas no passado. O ardor dos anabatistas e demais seitas igualitárias do comunismo medieval, que lutaram para impor na terra o Reino dos Céus, apresentava-se agora, nos tempos atuais, não mais por meios transcendentais, senão que se utilizando os recursos racionais colocados à disposição pela Revolução Iluminista do século XVIII e levadas a diante pelo Movimento Socialista. Ainda assim a utopia continua presa a sua Dimensão Escatológica, inerente ao seu conceito (ver Thomas Münzer als Theologe der Revolution, livro de Bloch, de 1923).
O utópico encontra-se espalhado por todos os lados, não há uma só cultura conhecida que ignore a sua presença visto que se converteu numa "dimensão antropológica essencial". Uma sociedade sem utopia é tão impossível como a um ser humano não sonhar.
Todavia foi inegável que a sua primeira obra relevante, redigida numa prosa marcadamente expressionista, Geist der Utopie, "Do Espírito da Utopia", publicada em 1918, nasceu sob o impacto da Revolução Russa de 1917 e pelo clima de insurreição geral que começou a predominar na Europa nos anos derradeiros da Primeira Guerra Mundial. A realidade da explosão revolucionária atiçou-lhe a busca pelo significado mais profundo e diverso da utopia.
Uma filosofia do futuro
Bloch observou que Marx provocara uma quebra e uma reviravolta no que até então era a fixação básica da filosofia ocidental. Desde a rememoração, a amnésia de Platão, até o tardio vôo da coruja de Hegel, ela tinha sua atenção voltada para o que já sucedera: o grego para a viagem que a alma realizava em direção ao arquétipo, bem antes do corpo nascer, e o alemão para a história do espírito visto pelo pássaro de Minerva, com os olhos voltados para o que ocorrera. Marx foi o primeiro pensador moderno a colocá-la, a filosofia, como um poderoso instrumento capaz de vir a escrutar o Zukunfts, o futuro, abrindo assim o caminho do novo, para a "problemática do novum", incluindo uma reflexão mais elaborada e precisa do que nos aguarda pela frente.
Coube-lhe sobrepujar os horizontes estreitos da mentalidade tradicional considerando as transformações das condições existentes numa possível realidade. É a doutrina que incluiu o futuro (a implantação da sociedade socialista) como fator essencial para a compreensão do passado e o entendimento do presente.
Neste momento da análise da contribuição do marxismo, Bloch faz uma advertência sobre os dois tipos de futuro. Recorrendo à expressão de Heidegger, define um deles como "inautêntico": o que continua velho, puramente cronológico, que não apresenta nada de novo, uma repetição monótona do mesmo, ao qual ele contrapõe o futuro "autêntico", positivo, onde "floresce a esperança, em que não há falsidade", o futuro como realização da utopia formadora de um ser distinto.(*)
(*) Bloch, que viveu os anos de guerra exilado nos Estados Unidos, deixou a América para atender ao convite da Universidade Karl Marx, em Leipzig, na Alemanha Oriental. Todavia, seu humanismo não demorou a entrar em choque com o neo-stalinismo que imperava no lado comunista. Em 1961, aproveitando uma viagem para o lado ocidental, ele e sua família não retornam, radicando-se em Tübingen, na Suábia, onde ele veio a falecer em 4 de agosto de 1977.
Muito boa sua elaboração do texto diante do tema proposto.
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