quarta-feira, 26 de março de 2014

Gnose - Orlando Fedeli.

Com a queda do marxismo, o que já se manifestava aqui e acolá se irradiou por todo o nosso cético século XX: houve uma grande explosão de misticismo. Só se fala em horóscopos, tarot, hinduísmo, homeopatia, alquimia, ocultismo, esoterismo e todos os tipos de superstição se alastram. E até ateus marxistas passaram a exibir em seus carros o dísticos "eu creio em duendes".

O fenômeno foi tão invasivo que a famosa revista internacional 30 Giorni começou a publicar repetidos artigos sobre o misticismo herético e sobre a Gnose. E o que era assunto de eruditos passou a ser tema amplamente divulgado e universalmente admitido
.

Assim, torna-se hoje bem claro que razão cabia bem a Simone de Pètrement que, ao analisar a literatura a partir do Romantismo, isto é, a partir da Revolução Francesa, concluiu: "a julgar por nossa literatura, nós entramos numa idade gnóstica"
.

Erich Voegelin, examinando os sistemas totalitários de nosso tempo - nazismo, fascismo, e comunismo - chega a conclusão de que eram sistemas gnósticos e os partidos que adotaram esses sistemas eram, na verdade, "ersatzs" da religião. Ele não hesita em colocar também a psicanálise e o progressismo no mesmo balaio da gnose:

"Dizendo movimentos gnósticos entendemos referir-nos a movimentos como o progressismo, o positivismo, o marxismo, a psicanálise, o comunismo, o fascismo e o nacional-socialismo (nazismo)"
.

Não falta mesmo quem veja na própria ciência moderna reflexos da gnose antiga. Por exemplo, Jacques Lacarrière chama Einstein, Planck e Heisemberg "ces gnostiques de notre temps"
.

Sem significar que endossemos as conclusões da obra, é interessante, entretanto, lembrar o best-seller de Fritjoff Capra - "O Tao da Física"-, que pretende ligar toda física moderna ao gnosticismo.

Poderíamos citar muitos outros autores. Para os limites de um artigo bastam-nos entretanto os fatos, esses eruditos e as revistas de divulgação cultural.

Quando se estuda a gnose entra-se num labirinto cheio de brumas, tentando descobrir segredos que permitirão chegar a um mistério. Não é de estranhar que o tema se preste a confusões.

É pois necessário estabelecer distinções. E uma primeira é entre panteísmo e gnose. O próprio Dictionnaire de Théologie Catholique de A. Vacant e E. Mangenot
cita, de cambulhada, doutrinas panteístas e gnósticas, sem distingui-las. Em seu elenco estão desde as religiões hinduístas, do Egito, China e Caldéia, passando por Heráclito e Parmênides juntos, pelo sufita Ibn Arabi, Campanela até Diderot, Kant, Novalis e os românticos.

Ora, o panteísmo é a doutrina que considera que tudo - inclusive a matéria - é Deus. A gnose, ao contrário, em quase todos os seus sistemas condena a matéria como obra maligna.

Simplificando um tanto o problema, cujos meandros não podem ser examinados nos limites deste artigo, pode-se dizer que o panteísmo representa uma corrente plutôt otimista, enquanto a gnose é pessimista
.

O panteísmo é naturalista, monista e tende ao racionalismo.

A gnose é dualista, anti- cósmica e anti-racionalista. Mas essa é uma distinção que deveria em alguns casos ser matizada, porque alguns sistemas gnósticos são ambivalentes, com relação ao mundo material, que é dialeticamente amado e odiado ao mesmo tempo
. Por outro lado, há sistemas panteístas que admitem a transformação da matéria em espírito, ao fim da evolução .

Por exemplo, nota-se no sistema panteísta de Plotino uma clara tendência para gnose, embora esse autor neoplatônico tenha até escrito uma obra contra os gnósticos de seu tempo.

Conviria ainda dizer que o panteísmo é uma anti-câmara para a gnose, sistema reservado para espíritos mais tendentes ao misticismo orgulhoso do que ao sensualismo.

Para conceituar a gnose, poderíamos dizer que ela pretende ser "o conhecimento do incognoscível".

Evidentemente, essa conceituação revela uma contradição que é típica da gnose. Conhecer o incognoscível é uma contradição conceitual e lógica. Mas ocorre que a gnose repele a inteligência e a lógica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e não discursivo e lógico.

Conhecer o incognoscível, de fato, significa dar ao homem o conhecimento de Deus e do mal, coisas impossíveis de compreender. De fato não podemos compreender ou conhecer a própria essência de Deus que é ser infinito e transcendente, impossível de ser captado por nosso intelecto. Também não podemos entender o mal e o pecado: o mal enquanto ser não existe, e o mal moral não tem razão que o justifique.

Assim, a gnose pretende oferecer ao homem um conhecimento natural que o colocaria em posição de compreender - e portanto superar - a Deus, de compreender a mal, e, ademais, de conhecer sua natureza mais íntima, que seria divina.

A gnose é então a religião que oferece ao homem o conhecimento do bem e do mal.

Ora, sabe-se que a árvore do fruto proibido do Éden era exatamente a árvore do conhecimento ou ciência do bem e do mal (Gen. II,10). Assim, teria sido a gnose a tentação de Adão. Com efeito, a serpente prometeu a nossos primeiros pais que, se comessem o fruto proibido, "seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal" (Gen., III,5). A tentação de Adão e Eva foi a de se tornarem deuses. Essa é a grande tentação do homem, que, levado pelo orgulho, como Lúcifer, não admite sua finitude, não aceita sua contingência.

Essa tentação é, de fato, uma revolta anti-metafísica. Ora, é esse um outro modo de conceituar a gnose: uma revolta anti-metafísica.

Se admitirmos essa interpretação da tentação adâmica, teremos que concluir existência uma continuidade da gnose na História. E é o que constatam os estudiosos: a gnose apresenta-se realmente como uma religião ora oculta, ora pública, mantendo porém unidade e continuidade no transcorrer da História.

Ladislao Mittner, ao estudar o pietismo protestante, seita mística e gnóstica oriunda dos tratados de Jacob Boehme e fundada por Spenner liga essa seita a uma única grande corrente gnóstica existente na História.

Para representar a unidade do fenômeno religioso gnóstico, Mittner usa a imagem muito própria e muito cogente do rio cársico.

No Carso, região calcárea da ex-Iugoslávia, há risos que de repente desaparecem na solo extremamente permeável de calcáreo e passam a correr subterraneamente, voltando a aparecer na superfície muitos quilômetros além. Rio cársico é aquele que aparece e desaparece, tornando-se ora visível ora oculto em seu percurso.

Mittner diz que "é quase impossível distinguir o pietismo das muitas outras seitas religiosas da época. Filões singulares do movimento apresentam fenômenos cársicos: aparecem, desaparecem, e, de repente, reaparecem mais além, sem que a identidade do filão possa ser propriamente demostrada"
.

Assim é a gnose: na história, ela é um fenômeno religioso do tipo cársico.

Essa unidade histórica da gnose através dos tempos e civilizações é constatada por muitos autores. Dennis de Rougemont, por exemplo, escreve:

"Mais perto de nós que Platão e os drúidas, uma espécie de unidade mística do mundo indo-europeu se desenha como em filigrama no plano de fundo das heresias da Idade Média. Se nós abraçamos o domínio geográfico e histórico que vai da Índia à Bretanha, constatamos que uma religião aí se espalhou, para falar a verdade, de um modo subterrâneo, desde o século III de nossa era, sincretizando o conjunto dos mitos do Dia e da Noite tal como eles tinham sido elaborados inicialmente na Pérsia, depois nos segredos gnósticos e órficos e é a fé maniquéia"
.

Por sua vez, H. I. Marrou atesta:

"(...) da fato, a gnose e seu dualismo pessimista exprimem umas das tendências mais profundas do espírito humano, uma das duas ou três opções fundamentais entre as quais o homem deve finalmente escolher. Claude Tresmontant mostrou bem a permanência da tentação gnóstica, sem cessar reaparecida, sob formas diversas no pensamento ocidental no curso de sua história nos Bogomilas e Cátaros da Idade Média, em Spinoza, Leibnitz, Fichte, Schelling, Hegel. Poder-se-ia continuar esta história além do romantismo alemão e até nossos dias: o destino de Simone Weil é particularmente muito significativo; foi bem o seu neo-gnosticismo que a deteve finalmente na soleira da Igreja e sua herança se reencontrava na obra histórica de sua amiga e discípula Simone de Pétrement"
.

Como pensam alguns nos textos de Santo Agostinho, não se fala de modo algum de Gnose. Clemente de Alexandria, sim, falava de Gnose, e defendeu a possibilidade de existir uma Gnose cristã, texto esse que favoreceu muitos gnósticos, até hoje, a se apresentarem como cristãos.


Não há Gnose cristã. 


Clemente de Alexandria empregou bem mal esse termo. A Gnose pretende ser um conhecimento experimental absoluto e salvador. Um conhecimento que pretende não ser intelectual, mas vivencial e experimental. Esse tipo de conhecimento não existe.
Plotino e os neo platônicos em geral eram gnósticos, tanto quanto certas passagens de Platão.


Orígenes é tido como o pai de todas as heresias e não é, então, de modo algum confiável.

É falso que nas Sagradas Escrituras haja um sentido oculto. Pode haver um sentido mais profundo, porém ele é sempre discernível pelo intelecto. Também é errado afirmar que individualmente podemos alcançar esse sentido oculto inexistente nas Escrituras.
A frase que você me escreve sobre a noção do Logos na raiz do intelecto humano é tipicamente herética e gnóstica:

"De fato, o Logos que existe "in divinis" é a raiz da inteligência do homem e é o intermediário através do quel o homem recebe o conhecimento sagrado".

O Logos não é a raiz de nosso intelecto e não existe esse intermediário do conhecimento sagrado em nós. 


O único intermediário deixado por Cristo para alcançarmos o conhecimento sagrado é o Papa. Essa tese de Orígenes conduz à destruição da Igreja, pois que teríamos em nós mesmos a fonte do conhecimento sagrado, tornando-nos salvadores de nós mesmos. E isso é Gnose. E isso destrói a Igreja e a Fé.

A Gnose é uma doutrina herética que afirma que a Divindade é evolutiva, e que, evoluindo, caiu no mundo material. O espírito divino teria ficado aprisionado na matéria como num cárcere ou num sepulcro. Em todas as coisas haveria então uma partícula divina, que aspiraria ser libertada e retornaria à Divindade original.


Para esta libertação seria necessário tomar conhecimento de que, no fundo da alma humana, há essa partícula. A evolução, pouco a pouco, permitiria uma peregrinação dessas partículas da matéria bruta para o vegetal, deste para o animal, e daí para o homem. Neste, conforme ele tivesse o conhecimento do íntimo de sua natureza divina, ela se libertaria, livrando-se do corpo material. As reencernações seriam etapas dessa libertação progerssiva.


A Gnose considera que o Criador do mundo seria o deus do mal, por ter criado a matéria e nela aprisionado as particulas divinas. Outras prisôes das partículas divinas seriam a inteligência e a lei moral os dez mandamentos, que, como dizia o gnóstico Lutero, seriam a lei de Satã.

Com muito prazer atendo a seu pedido de explicação sobre um ponto concreto relativo à Gnose.

Conforme diz São Paulo, "a Fé vem pelo ouvido" (Rom X, 17). Isso significa que Deus ordenou que a revelação nos fosse transmitida através dos Apostolos, sendo apreendida através dos sentidos.

Para a Gnose, a revelação não chega a nós vinda por meio de outros homens e pela Igreja, mas a revelação proviria de um sentimento interior, do qual teríamos uma experiência pessoal. Cada homem e cada coisa teria dentro de si uma partícula ou germe da Divindade. Esse germe -- Deus em nós -- se revelaria no coração de cada homem, e, portanto, todas as religiões seriam verdadeiras. As diferenças dogmáticas seriam causadas pelo fato de que, ao tentar traduzir em palavras a experiência divina interior, o homem a deformaria. Todos os credos seriam falhos. Só a experiência pessoal da Divindade seria válida.

Era por essa razão que o romântico Novalis dizia que o caminho do homem está em seu interior. É por isso também que a Gnose é essencialmente esotérica, não só no sentido de que ela tem uma doutrina oculta, como também no sentido de que ela afirma haver, oculto no ser humano, algo de divino.

Pela mesma razão as heresias insistem em alcançar uma "experiência com Jesus".


Pois a gnose prega que o ser humano tem uma natureza tripartida: além de corpo (hylé) e alma (psiché), o homem teria também uma partícula divina presa no âmago de seu ser: o "espírito" (pneuma). Por isso, a humanidade se dividiria em três classes de seres: os "hílicos", nos quais predomina o corpo, os prazeres sensuais, e que estão todos condenados; os "psíquicos", nos quais predomina a razão, que no máximo chegam ao "exoterismo" das religiões, e que têm por isso alguma chance de "salvação"; e finalmente os "pneumáticos", os "libertados pelo conhecimento", os que se livraram de todo apego à matéria (para eles a alma também é material, feita de uma suposta "matéria sutil"); estes últimos são os próprios gnósticos.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário