domingo, 8 de setembro de 2013

Para que servem os filósofos.

Por Robert Spaemann (Retirado do site da Editora Quandrante)

O texto recolhe as palavras de agradecimento pronunciadas pelo pensador alemão Robert Spaemann ao receber o Prêmio Roncesvalles de Filosofia, que lhe foi concedido pela Universidade de Navarra. A cerimônia de entrega do Prêmio realizou se no Palácio do Governo de Navarra, em Pamplona (Espanha), no dia 3 de maio de 2001.

O pai do nosso grêmio filosófico, Sócrates, foi convidado a escolher o castigo que lhe parecesse mais adequado para sancionar o seu atentado contra a political correctness de Atenas. Respondeu com uma provocação ao tribunal: solicitou que, como benfeitor da pátria, lhe fosse concedido comer de graça todos os dias no palácio do governo... Foi sobretudo essa desfaçatez que fez com que fosse condenado à morte. Como bons democratas, os atenienses eram sensíveis a tudo o que considerassem arrogância.

Os tempos mudaram, como podemos ver nesta celebração no palácio do Governo de Navarra. Segundo ouvi dizer, o presidente Miguel Sanz vai oferecer-nos – mas apenas hoje, não diariamente – algo para comer e beber. Mas antes entregou-me esta preciosa medalha, outorgada pelos meus colegas da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Navarra, depois de me terem admitido como seu colega concedendo-me, anos atrás, o doutorado honoris causa.

E tudo isso no próprio palácio do Governo! Que mudou, a esse respeito, em comparação com os tempos de Sócrates? Um filósofo deve fazer aqui um exame de consciência. Por acaso tornou se politicamente correto, ao invés de ser um delinqüente? Será possível que a sociedade chegue a interessar-se pela Filosofia? Mas se se trata precisamente do interesse em levantar em público aquelas questões cujo ocultamento assegura a estabilidade da nossa vida cotidiana! Afinal, não falamos das assim chamadas “perguntas últimas”?

São justamente a reflexão e o discurso continuado sobre essas “perguntas últimas” o que define a Filosofia. Em si mesma, a Filosofia não conhece tabus, embora ponha em dúvida o sentido dos tabus vigentes na vida pública. “Quem diz que não é necessário honrar os deuses nem amar os pais não merece argumentos, mas uma reprimenda”, escreve Aristóteles. A Filosofia pode dizer por que isso é assim, e di-lo com argumentos. Mas isso só é possível quando também se pode argumentar contra essas afirmações, como ocorre nos seminários filosóficos. Ali deve ser legítimo defender a imoralidade, a lei do mais forte, a eutanásia ou o racismo. Mas esse é também o âmbito onde se compreende a fundo por que não se pode defender qualquer coisa na sociedade, que não é o âmbito da busca da verdade, mas da práxis. A filosofia é essencialmente anarquista, e só pode ser cultivada num âmbito de anarquia teórica, embora esteja muito longe de trabalhar em prol da anarquia prática.

ESTADO, SOCIEDADE E FILOSOFIA

Que interesse podem ter o Estado e a sociedade na Filosofia? Que interesse pode ter converter os fundamentos da ordem social em objetos de reflexão crítica? De fato, o Estado moderno não faz derivar a sua legitimidade da verdade de determinadas convicções, mas da correção de procedimentos dos seus mecanismos de decisão. Non veritas sed auctoritas facit legem, diz Thomas Hobbes. Mas convém deixar claro que a legalidade dos procedimentos somente proporciona legitimidade quando esses procedimentos produzem decisões compatíveis com as intuições humanas elementares a respeito da justiça. Só se pode prescindir das questões relativas à verdade e à justiça na medida em que a paz interna seja considerada o supremo valor absoluto.

Mas sempre há circunstâncias nas quais os homens consideram que não vale a pena conservar essa paz. Circunstâncias nas quais se pode afirmar, com Bertold Brecht: “Decidimos temer mais a nossa má vida do que a morte”. Não é possível desterrar do discurso público a pergunta sobre a vida boa. Mas essa é a pergunta própria da Filosofia. E uma sociedade só é livre na medida em que possibilita esse discurso.

A Filosofia não depende do reconhecimento social. A reflexão livre sobre as “perguntas últimas”, em diálogo com todos os que nelas pensaram em todas as épocas, sempre tem lugar, inclusive quando os que a praticam se vêem obrigados a ganhar o seu sustento a duras penas, como bibliotecários, limpadores de janelas ou presidiários. Mas a experiência mostra que os sistemas que tentam isolar os filósofos dessa forma são muito mais instáveis do que as sociedades livres, que pagam os professores de Filosofia sem lhes prescrever o que devem ensinar.

COMO TORNAR INOFENSIVAS AS OPINIÕES

Isso pode ser entendido como uma refinada estratégia de imunização. Os filósofos e outros intelectuais podem falar tudo o que quiserem: é a maneira mais segura de tornar as suas opiniões inofensivas... De fato, os escritores comprovaram com freqüência que a influência dos intelectuais dissidentes é muito maior em Estados com liberdade de expressão limitada do que nas sociedades livres. Daí que o valor daquilo que o filósofo sabe, ou pensa que sabe, seja apenas o de uma opinião entre outras. Os filósofos não podem pretender que a distinção entre doxa e episteme, ou entre opinar e saber, ou entre um filósofo e um sofista, obtenha um reconhecimento social geral.

Quem torna inteligível essa diferença é a Filosofia. Para o Estado não existe diferença entre filósofos e sofistas, como aliás já ocorria na Atenas dos tempos de Sócrates. Não obstante, esse Estado tem um certo interesse na existência e na atividade desses homens: é o interesse em não deixar que os processos sociais se desenvolvam de maneira puramente espontânea e violenta, mas sob a forma de um debate baseado em argumentos.

É esse mesmo interesse que fundamenta a obrigação de comparecer em juízo com um advogado. O fato de que uma das partes disponha do melhor advogado não significa que a justiça esteja do seu lado. É igualmente improvável que nenhuma das partes tenha razão. Pode perfeitamente ocorrer que uma das partes tenha toda a razão e ao mesmo tempo tenha o pior advogado. Em qualquer caso, a obrigação de contar com um advogado defensor está bem fundamentada. Não é desejável que as partes se ataquem com violência, nem que exprimam mediante gritos a urgência dos seus interesses. Em vez disso, devem argumentar. E é o juiz quem no final pondera, não os interesses, mas os fundamentos e argumentos a favor dos interesses. Os Filósofos, sofistas e intelectuais em geral são os advogados de defesa do conjunto da sociedade.

JÁ QUE ÀS VEZES SOMOS ÚTEIS...

Os filósofos são também outra coisa, mas isso só eles próprios e os outros filósofos entendem. Não há nenhum motivo para remunerá los por isso ou distingui los com prêmios. Mas por sermos às vezes úteis como cidadãos graças à nossa competência argumentativa, de modo ocasional se nos dá de comer publicamente no Pritaneu.

Agradeço por isso sinceramente e de coração. Neste caso, meu coração bateu mais forte quando ouvi o nome do prêmio que recebo: Roncesvalles. Não teria sido possível imaginar algo mais romântico. Nem algo que fosse mais importante para uma democracia. As democracias só podem ser boas e duradouras quando as almas dos seus cidadãos não são democráticas. Por sorte, os democratas dos países livres empregam no tratamento o termo “senhor” e não outros, como “cidadão” ou “camarada”.

No âmbito político, hoje não saberíamos o que fazer com uma figura como Carlos Magno. Por isso mesmo é da maior importância que ele encontre um trono no coração de cada europeu. Em política é mais importante a capacidade para o discurso do que a habilidade no manejo das armas. Mas somente aqueles que conservam viva a lembrança da espada de Rolando merecem ser escutados.

Em política não importa apenas ter razão, mas que essa razão seja reconhecida publicamente. Mas só merecem esse reconhecimento aqueles que, seguindo a inspiração socrática, pensam que é melhor sofrer a injustiça do que cometê la. Sócrates e Rolando merecem ser lembrados mais pela sua morte do que pela sua vida.

Se a Filosofia deixa de ser a doutrina da boa morte, também deixa de ser a da vida boa. Então desaparece: deixa de existir, não restando ninguém mais além dos sofistas.

Tradução: Quadrante

 

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