quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A beleza.

Por Pierre de Craon Lejeune
 
INTRODUÇÃO
 
O conceito de belo é sem dúvida, de todos os conceitos que interessam o homem, o mais interessante e o mais fecundo. Um grande número de pessoas é incapaz de se dedicar ao estudo e ao conhecimento de grandes verdades especulativas, por meio de observações longas e que exigem tempo, paciência e, muitas vezes, grande capacidade de abstração. Mas até as inteligências mais simples são capazes de ver que algo é belo e de se alegrarem com isso.
 
Admiravelmente, e de modo quase paradoxal, o conceito de belo possui uma ligação estreita com conceitos bem altos, a saber: de verdade, de bem, de ordem, de harmonia, de perfeição.
 
Todas as épocas sempre se interessaram pela beleza e nossa época não foge deste interesse.
 
De fato, o mundo moderno é obcecado pela beleza. Todos nós somos quotidianamente atacados por uma avalanche de apelos que buscam nos convencer de que a maior preocupação dos homens deve ser a saúde e a estética.
 
Contraditoriamente, nunca se defendeu tanto a ruptura das regras estéticas como na arte moderna. Octavio Paz, analisando a modernidade e a arte moderna, afirma “que a modernidade é uma espécie de autodestruição criadora” (Octávio Paz, Los hijos del limo, Tajamar Editores, Santiago, 2008, pág. 13). “Apaixonada por si mesma e sempre em guerra consigo mesma, não afirma nada permanente nem se fundamenta em qualquer princípio: a negação de todos os princípios, a mudança perpétua, é o seu princípio. (…) Nossa época exaltou a juventude e seus valores com tal frenesi que fez deste culto, se não uma religião, uma superstição; entretanto, nunca se envelheceu tanto e tão rápido como agora. Nossas coleções de arte, nossas antologias de poesia e nossas bibliotecas estão cheias de estilos, movimentos, quadros, esculturas, novelas e poemas prematuramente envelhecidos” (Ibidem, págs. 15-16).
 
Bem diferentes eram os princípios que regiam o pensamento medieval sobre o mundo e a ordem que existe nele, sobre a beleza e sobre o modo de agir das criaturas.
 
A Idade Média recebeu da Antiguidade sua problemática em matéria de estética. Entretanto, ela lhe deu uma amplitude nova, integrando aos bons princípios que a filosofia antiga possuía uma visão do homem, do mundo e de Deus, própria da religião Católica. Assim, a Igreja levou a especulação estética a um nível de originalidade incontestável.
 
A questão do belo, assim como da verdade e do bem, encontra nos princípios de São Tomás uma resposta muito sólida e de grande rigor científico.
 
A finalidade deste nosso trabalho – que de modo algum se pretende exaustivo e será publicado pouco a pouco, por partes – é de estudar aqueles princípios ensinados pela Igreja e pela filosofia tomista, que permitem compreender melhor o que é a beleza e de vê-la melhor, não somente no conjunto dos seres irracionais, mas também no homem, na sua vida moral e na sua alma e, finalmente, em Deus.
 
“É preciso que confessemos que Deus é a própria vida em plenitude, que tudo percebe e entende; que não pode morrer, corromper-se ou mudar-se; que não é dotado de corpo, mas é espírito, sumamente poderoso, justo, belo, ótimo e o mais feliz entre todos os espíritos” (Santo Agostinho, De Trinitate, X, 4, 6).
 
“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!” (Santo Agostinho, Confissões, X, 7, 38).
 
Expondo os princípios que se relacionam com a beleza e com a arte, bem como as relações que existem entre a arte e a moral e de que modo nós podemos atribuir beleza aos atos humanos, esperamos tornar mais clara para os leitores a sabedoria com que Deus criou todas as coisas.
 
Só amamos aquilo que conhecemos e, quanto mais conhecemos a criação, mais podemos conhecer e amar Aquele que a criou.
 
 “A ciência deve ser empregada como se fosse certo andaime pelo qual se vai subindo a estrutura da caridade, que permanece para sempre, mesmo depois da destruição da ciência. Se ela é usada com um fim de caridade, é altamente útil; utilizada por si mesma sem esta finalidade, não somente é supérflua, mas também certamente perniciosa” (Santo Agostinho, Epist. LV, c. 21, 39).
 
A ORDEM DO MUNDO E A BELEZA QUE DELA DECORRE
 
Existem duas perfeições que, nos seres, provêm das relações que existem entre eles: são a ordem e a beleza.
 
1. A ordem
 
A ordem é definida como a disposição adequada, conveniente, de vários seres unidos em direção a um fim comum.
 
Assim, para haver ordem é necessário haver três coisas:
 
1º. Uma pluralidade de seres, que é a matéria da ordem.
 
Não é possível existir ordem quando existe somente um ser. Para haver ordem é preciso haver vários seres que possam ser organizados entre si.
 
2º. Uma disposição adequada, conveniente, o que é a forma da ordem.
 
Essa organização não pode ser qualquer uma, mas deve estar de acordo com as características de cada ser, com as condições de cada um. Em uma escola, por exemplo, as coisas estão bem dispostas quando os professores têm o conhecimento necessário para ensinar os alunos, possuem uma distribuição de aulas a serem dadas conforme a possibilidade que têm, os alunos comportam-se adequadamente, respeitam os professores e funcionários, não há sujeira no chão, a biblioteca possui os livros necessários ao estudo dos alunos, os alunos são punidos quando agem mal e recompensados quando agem bem, etc. No corpo há boa disposição das partes quando o coração envia sangue suficiente para os membros e órgãos, o cérebro comanda os movimentos sem impedimento, o sistema digestivo recebe a quantidade de alimento necessária ao organismo e o digere bem para ser distribuído no corpo, os rins filtram e o fígado metaboliza as substâncias tóxicas, etc. Quando existe uma boa disposição das partes, então todos reconhecem que existe ordem. Quando essa boa disposição está ausente, então dizemos que existe confusão.
 
3º. Um fim comum, que é o porquê das coisas serem dispostas de certo modo, e a norma segundo a qual a ordem existente é julgada e avaliada.
 
 No corpo humano, os órgãos e membros têm uma disposição particular com a finalidade de preservar a vida do indivíduo. A ordem de um escritório visa à boa execução dos trabalhos da empresa, a sua eficiência nos negócios. No exército, os soldados são organizados de um modo próprio para vencer a guerra. Se essa finalidade é alcançada, então é porque a ordem foi bem determinada. O fim é, então, usado também como norma, como regra para avaliar se as partes de um todo foram bem ordenadas.
 
A ordem exige, então, uma boa disposição das partes para alcançar um fim comum a elas. Por isso somos obrigados a concluir que somente um ser inteligente pode ordenar algo. Quem não atribuísse uma causa inteligente a uma obra ordenada seria considerado um insano. Ninguém pode dizer que uma casa fora construída pelo acaso e não por um arquiteto. Um ser que coloca ordem nas coisas obrigatoriamente deve conhecer as relações que existem entre elas e dispô-las umas em relação às outras de um modo adequado para conseguir o fim desejado. Conhecer as relações entre as partes exige compreender a natureza delas, ver as influências que umas podem ter sobre as outras, saber distinguir nelas o que é causa e o que é ocasião, etc. O conhecimento da natureza das partes de um todo, o que elas são em si, das influências que podem existir de umas sobre as outras e da conveniência delas para alcançar um fim, só pode ser feito por um ser inteligente.
 
Na natureza encontramos muitos seres que, sem terem inteligência, realizam obras de grande ordem, que nos causam enorme admiração. Vemos aranhas que tecem teias bem eficazes para caçar insetos, peixes que lançam água pela boca para derrubar besouros que estão sobre as folhagens das árvores e comê-los quando caem no rio, lobos que fazem armadilhas em conjunto para caçar, mesmo árvores que lançam mão de métodos admiráveis para economizar água nos períodos de seca e cristais magníficos que se formam após fenômenos geológicos.
 
Mas esta ordem que brilha nas obras realizadas pelos seres sem inteligência deve ser referida àquele que criou todos eles, Deus, e que lhes deu um ser capaz de agir com ordem. Os seres inteligentes, Deus inclusive e com mais forte razão, podem realizar obras ordenadas não somente por si mesmos, mas também por meio de outros seres, na medida em que os dirige e os dispõe à realização de tais obras. Sem qualquer estudo prévio, os animais fazem coisas extraordinariamente inteligentes, mas sem o saber.
 
As abelhas, por exemplo, fazem suas colmeias com alvéolos hexagonais onde a parede de um alvéolo serve para outro alvéolo. Não há entre os alvéolos espaço perdido e a forma hexagonal é mais econômica do que se elas usassem alvéolos em forma de prisma triangular ou quadrangular. Para fechar os alvéolos elas fazem fechamentos em forma de losango. Quando o físico René-Antoine Feichant de Reaumur (1683-1757) notou que a angulação de fechamento dos alvéolos era constante, não variava, ficou intrigado. Mandou buscar alvéolos na Alemanha, na Suíça, na Inglaterra, no Canadá, e até na Guiana. Todos apresentavam o losango de fechamento dos alvéolos com o mesmo ângulo. O astrônomo francês Jean-Dominique Maraldi (1709-1788) mediu com maior precisão os ângulos de fechamento dos alvéolos e viu que o ângulo menor tinha 70º 32’ e o maior tinha 109º 28’, o que tornava o alvéolo mais econômico: máximo de volume para um mínimo de material usado na sua construção.
 
É óbvio que não foram as abelhas que descobriram, por conta própria, esta alta geometria. Elas não conhecem até hoje, que se saiba, como usar os recursos do Cálculo Diferencial…
 
Intrigantes, estas geômetras irracionais! O curso de Matemática, da escola primária até o fim do ensino médio, feito durante 11 anos, não fornece a um jovem, aplicado e inteligente, recursos suficientes para que ele possa resolver o problema dos alvéolos das abelhas, que elas resolvem tão “espontaneamente” (Cf. Malba Tahan, As Maravilhas da Matemática, Edições Bloch, Rio de Janeiro, 1972, págs. 105-112).
 
Isso nos leva a fazer uma segunda observação. A ordem, enquanto tal, só pode ser conhecida pela inteligência. Somente a inteligência percebe as relações que existem entre as partes ordenadas de um todo e o fim ao qual elas estão dirigidas. Assim, para reconhecer se algo é ordenado, devemos identificar o fim desejado pelo autor e a relação que determina a disposição das partes. O físico René-Antoine Feichant de Reaumur notou as relações matemáticas, geométricas, que existiam entre os alvéolos das colmeias com um fim preciso: obter o máximo de volume para um mínimo de material usado na sua construção. E ele reconheceu esta ordenação porque tinha inteligência. As abelhas constroem seus alvéolos com esta ordem admirável, mas são incapazes de saber que o fazem, porque não têm inteligência. Mas mesmo sem inteligência, constroem suas colmeias com precisão matemática, seja na Suíça, seja na Guiana. Bem intrigantes estas geômetras irracionais!
 
Havendo falta desta consideração da inteligência, mesmo as coisas mais bem ordenadas podem parecer aleatórias, como vemos afirmarem os ateus, que se lançam contra a ordem existente no mundo. “O injusto disse em si mesmo que queria pecar; não há temor de Deus ante seus olhos. (…) As palavras de sua boca são iniqüidade e engano; não quis instruir-se para fazer o bem” (Salmo 35, 2.4). “Quão magníficas são, Senhor, as tuas obras! Quão insondável é a profundidade dos teus desígnios! O homem insensato não conhecerá, e o néscio não compreenderá” (Salmo 91, 6-7).
 
Ao compararmos o comportamento dos ateus e das abelhas, não há dúvida: a verdade está com as abelhas!
 
2. A beleza
 
Explicar o belo é uma tarefa difícil. Platão já havia escrito na República: “O provérbio tem razão, Sócrates, o belo é difícil” (República, l. IV).
 
A causa desta dificuldade é múltipla. Como dissemos, o conceito de belo está intimamente ligado, e como que misturado, a vários outros grandes conceitos, cuja análise é delicada. Além disso, ele é muito complexo, e os inúmeros elementos que ele engloba exigem, para serem bem distinguidos e definidos, muito cuidado e precisão.
 
Mas é justamente pelo fato da beleza ser objetiva, de ter uma definição imutável, que nós podemos estudá-la usando os instrumentos que a Filosofia tomista nos dá.
 
Não se venha dizer que a Idade Média permaneceu fria a tudo aquilo que diz respeito à beleza, e que a lógica austera da filosofia tomista conseguiu fechar todos os horizontes ao belo.
 
A época em que São Tomás de Aquino viveu foi aquela que nos deu as mais magníficas catedrais, com vitrais que enchiam as igrejas de luz. Os novos modos de construção permitiam abrir imensas janelas decoradas, que tornavam as grandes naves das igrejas mais luminosas, brilhando com belos raios coloridos quando o sol incidia nelas. E não somente as catedrais chamam nossa atenção até hoje, e movem milhões de turistas todos os anos a visitá-las, como também os castelos, palácios, os edifícios civis, as pinturas, iluminuras, esculturas e objetos de uso quotidiano, todos datando da “Idade das Trevas”…
 
É verdade que São Tomás de Aquino não tratou da beleza com a mesma profundidade e com o mesmo desenvolvimento que ele deu à Metafísica, à Lógica, à Teologia. Mas não deixamos de encontrar em seus escritos várias observações sobre a beleza e os elementos que a constituem.
 
Existem noções metafísicas tão simples e universais que elas não podem ser definidas. Podemos descrevê-las, mas como são coisas que ultrapassam qualquer categoria, não podem ser colocadas em uma definição. Tais são as definições, por exemplo, de ser, ato, potência, verdadeiro, uno, bem, etc.
 
Mas a beleza é algo à parte. Ela se compõe de vários elementos que podem ser analisados.
 
Uma das melhores definições do belo dadas na Idade Média é a de Santo Alberto Magno, mestre de Santo Tomás de Aquino, definição que permanecerá célebre e exemplar: “A natureza do belo reside universalmente na viva luz que a forma difunde sobre as partes bem proporcionadas da matéria, ou sobre as diversas potencialidades, ou sobre as diversas operações materiais” (Santo Alberto Magno, Super Dionysium de divinis nominibus, IV, 72; in Opera Omnia, XXXVII/1, p. 182). Ou, de modo mais breve: A beleza é o resplendor da forma na proporção da matéria.
 
Esta definição exprime tão bem o que é a beleza, que ela merece ser explicada em detalhes.
 
a) Matéria e forma
 
A filosofia de Aristóteles reconhece nos seres corpóreos dois princípios substanciais, duas causas intrínsecas: matéria e forma, causa material e causa formal. A filosofia clássica elaborou e empregou vastamente estas duas noções, aprofundando-as e tornando-as mais sutis.
 
Utilizemos uma estátua como comparação para compreender melhor estes dois princípios constitutivos dos seres materiais. Este exemplo da estátua é o mais conhecido quando se trata de explicá-los, porque é um dos mais simples.
 
Uma estátua depende, para existir, da matéria com que é feita e da forma (a qual, neste exemplo, é mera figura exterior) que faz com que seja o que é. Sem mármore não existe estátua, muito menos sem figura, sem seu desenho exterior.
 
Uma estátua de Júpiter pode ser feita de mármore, de bronze, de madeira; e de um mesmo bloco de mármore posso fazer um Júpiter, um Apolo, uma Diana. De onde se vê que a matéria é indiferente à forma, e a forma é indiferente à matéria. São, pois, coisas distintas, princípios distintos do ser. Vê-se, também, que a forma é o que diferencia, o que determina: uma estátua de Júpiter, não de Diana. Também se vê que a matéria da estátua não pode existir sem a forma. Uma estatua de Apolo é mármore (ou bronze, madeira, gesso…) com forma de Apolo. O mármore sozinho não constitui estátua alguma, e não há figura de Apolo que não esteja posta em algum mármore (ou madeira, gesso…). A existência da estátua depende da matéria e da forma. Ambas, então, constituem a estátua, são causas que constituem a estátua , causas intrínsecas dela.
 
Mas temos que refinar o conceito de forma usado nesta comparação da estátua. Como diz um ditado latino, toda comparação é imperfeita.
 
A forma é mais importante do que a matéria. A matéria tem menos importância em relação à forma. Vale a pena observar que a língua inglesa inverteu o sentido destas palavras por uma curiosa mudança semântica, que revela o caráter inglês: “this is material to the fact” significa que algo é realmente importante; “this is only a formality” significa que algo não tem importância.
 
Mas suponhamos que a estátua em questão fosse de ouro. Ela valeria muito dinheiro, mesmo sendo mal esculpida. O mesmo vale para o caso em que tivéssemos uma estátua em gesso bem esculpida e outra em mármore esculpida com um pouco menos de técnica: ainda assim a estátua em mármore valeria mais em relação à estátua de gesso. Por que, se a matéria é menos importante que a forma? Isso parece ir contra o que acabamos de dizer.
 
Porque o mármore ou o ouro têm seu próprio ser físico antes de se ser estátua, mas a figura, a aparência de Apolo ou Júpiter, não. O mármore é substância e sua figura é um acidente, e “a substância prima sobre o acidente”.
 
Mas o mármore, para ser substância “mármore” precisa de algo que o faça mármore e não outra coisa. Este algo chama-se “forma substancial”. Mármore não é madeira ou ar, e para explicar essa diferença é necessário recorrer não a uma matéria determinada (mármore) e a uma forma acidental, uma figura exterior (de Apolo, Júpiter ou Diana), mas ao que se denomina matéria-prima (ou matéria absolutamente indeterminada) e forma substancial (princípio primeiro pelo qual a matéria se torna tal matéria). “Esses princípios intrínsecos são, na plena acepção da palavra, princípios, isto é, aquilo de que procede o corpo, real e primeiramente, e que não supõe nada anterior a ele. São, portanto, realidades metafísicas” (Régis Jolivet, Tratado de Filosofia, tomo I, Livraria Agir, Rio de Janeiro, 1969, p. 335).
 
A matéria é aquilo que Platão denominava uma espécie de não-ser, um puro “com o que” as coisas são feitas e que, por si mesmo, não é nada de feito, um princípio absolutamente indeterminado, incapaz de existir por si mesmo, mas capaz de existir por outra coisa, a forma.
 
A forma é um princípio ativo, que determina essa matéria puramente passiva, mais ou menos como a forma impressa pelo escultor determina a argila. A forma, unida à matéria, constitui com ela uma única coisa feita e existente, uma única e só substância corpórea, à qual permite não só ser isto ou aquilo (ter tal natureza específica) mas também existir, mais ou menos como a forma impressa pelo escultor permite à estátua ser o que é.
 
Por causa desta analogia com a forma exterior de uma estátua (“forma acidental”), Aristóteles chamou de forma (“forma substancial”), num sentido inteiramente especial e técnico, este princípio interior de que tratamos, e que determina a substância corpórea no seu próprio ser.
 
Em resumo, a causa material é aquilo de que as coisas são feitas, enquanto a causa formal é aquilo que faz da coisa o que ela é.
 
A doutrina de Aristóteles, que faz de cada ser corpóreo um composto de matéria (hyle) e de forma (morphè), foi denominada hilemorfismo.
 
Esta doutrina salva a realidade material das coisas, bem como a existência de uma distinção de natureza ou de essência entre os corpos que consideramos como de espécies diferentes; mostra que nos corpos sem vida e nos seres vivos irracionais existe a presença de um princípio substancial imaterial, mas que difere dos espíritos propriamente ditos, porque é incapaz de existir sem a matéria; permite compreender a união, no ser humano, da matéria e de uma alma espiritual, que é a forma do corpo humano, mas que difere das outras formas substanciais pelo fato de existir sem a matéria.
 
É a forma imaterial que faz com que as coisas sejam inteligíveis.
 
Nossa inteligência é imaterial.
 
O mundo visível é material.
 
Se este mundo visível fosse constituído unicamente por matéria, como querem os materialistas, seria impossível conhecê-lo com nossa inteligência imaterial.
 
Há algo imaterial nas coisas – a forma substancial delas – que se une à matéria para constituir cada ser individual e que permite que possam ser conhecidos por nossa inteligência imaterial.
 
Na filosofia de Aristóteles e de Santo Tomás, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e, em si mesma, absolutamente indeterminada (matéria), outra ativa e determinante (forma) (Cf. Jacques Maritain, Introdução geral à Filosofia, Agir Editora, 15ª. edição, 1987, p. 110).
 
A matéria não existe por si mesma, mas por sua forma substancial, e a forma existe na matéria. De modo que o que existe real e verdadeiramente é o composto de dois princípios, um ser material individual, seja ele qual for.
 
Aristóteles firma-se nestas noções inteligíveis, mas não imagináveis, esclarecendo que matéria e forma são dois princípios essencialmente incompletos, feitos um para o outro, e que se unem diretamente para constituir os corpos individuais. A matéria servirá, também, para distinguir os múltiplos indivíduos da mesma espécie: ela é princípio de individuação.
 
A matéria-prima dos corpos é impossível de ser representada por nossa imaginação. Tudo o que temos em nossa imaginação são imagens de seres diversos que conhecemos, todos constituídos por matéria já unida a uma forma. Mas a inteligência compreende o que ela significa: o que existe de indeterminado, de passivo nos corpos.
 
“Todas as dificuldades com que se debateu a especulação grega até Aristóteles provinham sobretudo da incapacidade em que se achavam os pensadores (…) de se libertar das representações imaginativas, para conceber apenas na inteligência realidades que, não sendo seres materiais, mas somente princípios de ser, só podem ser acessíveis à razão metafísica [isto é, não podem ser imaginadas, representadas na imaginação, mas concebidas somente na inteligência]” (Régis Jolivet, Tratado de Filosofia, tomo I, Livraria Agir, Rio de Janeiro, 1969, p. 334).
 
Fazendo uso das noções aristotélicas de matéria e forma ao definir a beleza, Santo Alberto Magno deu uma base filosófica sólida, um fundamento metafísico a ela, afirmando que a beleza pertence a tudo o que existe. A beleza é algo que está realmente nas coisas, e não é o fruto passageiro de uma impressão subjetiva, de um entusiasmo lírico.
 
b) Resplendor da forma
 
Os escolásticos, seguindo os antigos, viam o resplendor como uma característica essencial da beleza:
 
“A clareza pertence à essência da beleza” (Santo Tomás de Aquino, Comment. in lib. de Divin. Nomin., lect. VI).
 
“A luz embeleza, porque sem luz todas as coisas são feias” (Santo Tomás de Aquino, Comment. in Psalm., Ps. XXV, 5).
 
“A beleza [...] consiste numa certa claridade e na devida proporção” (Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica II-II, q. 180, a. 2, ad 3).
 
  •  Nossa inteligência conhece a verdade das coisas. Somente um ser inteligente consegue ver a ordem que existe num conjunto de outros seres, como explicamos acima. Os seres da criação podem ser conhecidos pela inteligência por causa da forma substancial imaterial que os constitui, sendo o princípio próprio de inteligibilidade de algo. As criaturas podem ser conhecidas pela inteligência do homem porque cada uma possui sua forma substancial própria.
 
Toda forma é um vestígio, um raio de luz que Deus pôs em cada ser criado, pela qual nossa inteligência pode ser iluminada.
 
“Toda forma, pela qual cada coisa tem o ser, é uma certa participação da claridade divina. (…) Cada realidade é bela e boa de acordo com sua própria forma” (Santo Tomás de Aquino, Comment. in lib. de Divin. Nomin., c. 4, lect. V).
  
Deus projeta um brilho que é a causa da beleza nas coisas. Esta luz e esta clareza, que provêm de Deus, contêm e se tornam a essência e a beleza das criaturas. É por isso que as criaturas são belas, pela essência radiante que têm, e que é uma participação da clareza divina. Elas mostram uma consonância com seu fim, que é Deus, uma consonância na composição que têm e, em terceiro lugar, uma consonância nas relações que têm com as outras criaturas.
  
O ser das coisas é uma certa luz (Cf. Santo Tomás de Aquino, Comment. in Liber de causis, prop. 6, lect. 6).
  
Quando conhecemos bem alguma coisa, dizemos que ela está clara para nós.
  
Ora, se está claro é porque tem luz.
  
Assim, o resplendor de que se trata aqui é um resplendor de inteligibilidade: esplendor da verdade, diziam os platônicos; esplendor da ordem, dizia Santo Agostinho (De vera relig., cap. 41); esplendor da forma, dizia Santo Tomás de Aquino na sua linguagem precisa de filósofo; resplendor da forma, dizia Santo Alberto Magno nesta definição que analisamos.
  
A clareza é a propriedade que um corpo possui de se mostrar de modo manifesto. É a facilidade de algo ser percebido pelos sentidos, o fato de não se esconder, mas de se manifestar. Um ser belo é limpo, evidente, claro para a vista e o ouvido.
  
Todo ser é a realização de uma essência. Aquilo que aprendemos pelos nossos conceitos sob um estado de universalidade existe realmente, mas nas próprias coisas, sob um estado de individualidade, não sob um estado de universalidade. Assim, por exemplo, há na realidade uma natureza humana (animal racional), que se encontra tanto em Pedro, como em Paulo e João etc., que não existe em si mesma ou em estado separado, mas somente nestes sujeitos individuais e identificada com cada um deles. 
 
Quando um ser se mostra tal como ele é, tal como Deus o fez, então a sua forma própria resplandece nele. Em todo ser que existe é possível ver o resplendor da forma que dispôs a matéria seguindo as leis da proporção.
  
Deus distribuiu suas perfeições em cada ser da criação, em cada indivíduo do gênero humano. Cada pessoa é única, com qualidades próprias que Deus distribuiu para que brilhem para os outros: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus” (São Mateus 5, 16).
  
Quando alguém se mostra realmente como um homem, como um animal racional, que deseja naturalmente conhecer a causa das coisas e que tem um senso natural de admiração quando as conhece, que coloca questões e busca respostas, quando a sua racionalidade se manifesta exteriormente por um comportamento inteligente, pelo uso de vestes, por exemplo, que tornam mais evidentes aquelas coisas que o homens têm como próprias e que os diferenciam dos animais, e não de roupas que exaltam sua animalidade e aquilo que ele possui em comum com os animais, então aí brilha diante dos homens a luz que Deus pôs em cada um.
  
Cícero, o orador romano, insiste sobre a beleza que pode e deve existir nas ações humanas: “Nós dizemos belo aquilo que corresponde à excelência do homem na medida em que se distingue dos outros animais” (Cícero, De Officiis, I, c. 27), ou seja, uma conduta em consonância com a inteligência. É por isso que os pecados contra a castidade, mais que os outros pecados, são ditos serem feios: porque quando o homem os comete ele se afasta maximamente do que é um comportamento conduzido pela inteligência e se inclina mais ao que é bruto. “O que é honesto possui uma beleza espiritual e é desejável”, diz Cícero (De Officiis, c. 5).
  
Quando alguém faz uma ação virtuosa, a ordem interna que existe na alma dele é manifestada exteriormente e é tão mais bem manifestada quanto mais a obra é bem feita e quanto maior é a retidão interna da alma. E na simplicidade de uma só ação ou de uma frase proferida podemos conhecer a ordem (ou a desordem) daquela alma. A boca fala da abundância do coração: “Assim como o cuidado que se tem da árvore se dá a conhecer no fruto, assim a palavra manifesta o pensamento do homem” (Eclesiástico 27, 7).
  
Em Nosso Senhor, e depois nos santos, a ordem que havia no interior resplandeceu exteriormente em ações bem proporcionadas, tornou-se claramente inteligível diante dos outros homens. Por isso suas obras foram belas, e os judeus dirão de Cristo: “Tudo tem feito bem; faz ouvir os surdos e falar os mudos” (S. Marcos 7, 37).
  
  • Quando um rapaz resolve usar um brinco, pintar o cabelo ou deixá-lo crescer, ou faz qualquer coisa semelhante para chamar a atenção dos outros, então ele busca brilhar por meio de uma luz estranha à luz que Deus pôs nele e se apaga, fazendo-se menos o que ele realmente é. Ora, “não se acende uma lâmpada e se põe debaixo do alqueire, mas sobre o candeeiro, a fim de que dê luz a todos os que estão na casa” (São Mateus 5, 15). 

  •   Uma moça que se veste não para ressaltar a sua humanidade, mas sim aquilo que tem em comum com os animais, apaga a luz que Deus pôs nela e que deveria brilhar diante dos homens: “O que é o sol para o mundo, quando nasce nas alturas de Deus, assim é a bondade duma mulher virtuosa para o ornamento da sua casa” (Eclesiástico 26, 21). 
 
“Nossa época exaltou a juventude e seus valores com tal frenesi que fez deste culto, se não uma religião, uma superstição; entretanto, nunca se envelheceu tanto e tão rápido como agora” (Octávio Paz, op. cit., pág. 16).
  
c) Na proporção da matéria
  
Para ser belo, um objeto deve possuir partes harmoniosamente unidas. Eis porque a beleza consiste na proporção das partes de um ser.
 
A natureza nos oferece inúmeros exemplos de uma harmoniosa organização dos seres.
  
O filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) descobriu uma espécie de curva chamada espiral logarítmica. Ela foi estudada pelo geômetra Jacques Bernoulli (1654-1705) e por isso é chamada também de espiral bernoulliana.
 
“Asseguram os geômetras que a bernoulliana (…) apresenta uma propriedade notável: Cresce, conservando-se semelhante a si própria, e exprime, desse modo, o crescimento harmonioso. Jacques Bernoulli tinha verdadeiro fanatismo pela espiral logarítmica, e considerava-a como uma das sete maravilhas da Matemática” (Malba Tahan, op. cit., págs. 60-61; itálicos no original).
  
Terminou pedindo que um pequeno arco desta espiral fosse gravado em seu túmulo, com a seguinte inscrição: Eadem numero mutata resurgo – Mudada no número, ressurjo a mesma.
  
Esta espiral está presente em uma infinidade de conchas e flores.
 
Encontramos também na natureza uma outra espiral, chamada espiral de Arquimedes. Esta espiral aparece na disposição geométrica das manchas coloridas que o pavão ostenta em sua cauda.
  
A sucessão de Fibonacci inicia-se com os números 0 e 1, que são básicos e constituem os seus primeiros termos. Os termos seguintes da sequência têm a seguinte regra de formação: cada termo é a soma dos dois que o precedem.
  
0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55 …
  
Ela se mostra de modo bastante notável na Botânica.
 
“Notaram os observadores que o tronco de uma árvore normal, a partir do tronco inicial, desdobra-se em galhos de acordo com a chamada lei fibonacciana. Do solo sai um tronco; do tronco surgem dois; desses dois surgem três; esses três formam cinco; dos cinco partem oito; e assim por diante. E a árvore, ao crescer, ao multiplicar seus ramos, não se afasta dessa lei” (Malba Tahan, op. cit., pág. 246).
  
Mais ainda. O número de ouro, equivalendo a 1,618 e simbolizado pela letra grega Φ, se encontra também na Botânica.
  
De que modo as plantas devem dispor de seus ramos a fim de que as folhas recebam o máximo de exposição à luz solar?
  
“Os ramos são ordenados de modo que nunca se superponham, isto é, um ramo não pode impedir que suas folhas façam sombra nas folhas que estão abaixo. Os ramos brotam do tronco seguindo um certo ângulo chamado ângulo ideal que é calculado com o auxílio do número Φ. Esse ângulo ideal é 360º dividido pelo quadrado de Φ. O quociente será: 137º 30’28’’ (valor aproximado). Esse ângulo é designado pela letra grega alfa: α” (Malba Tahan, op. cit., pág. 247).
 
Um esquema mostra, por ordem numérica, o surgimento das folhas em um ramo e o ângulo entre as folhas: entre as folhas 1 e 2 temos α aproximadamente igual a 137,5º = 85º + 52,5º, e este ângulo permanece constante entre as folhas 2 e 3, 3 e 4, 4 e 5, etc… A próxima folha a nascer sempre conserva esta angulação em relação à folha anterior.
  
A beleza é o resplendor da forma na proporção da matéria.
 
Assim, existe uma relação entre a proporção e a clareza. Elas constituem o essencial da beleza. Por isso, elas devem constituir uma certa unidade. A proporção das partes resulta da combinação e da ordenação que há entre elas, e que são o efeito da forma. Para a aparência exterior dos corpos, isso é evidente porque refletem a ordem que têm por meio da luz ambiente. Quanto às formas interiores, ou essências das coisas, pode-se dizer que este esplendor é precisamente a fascinação de sua inteligibilidade. 
 
Deste modo se unem clareza e harmonia, resplendor e proporção, permitindo que conheçamos objetivamente a beleza de uma coisa.

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