domingo, 8 de setembro de 2013

O mistério e a filosofia .

Por Joseph Pieper (Retirado do site da Editora Quandrante)

Não vamos falar aqui daquilo que a Filosofia ou certos filósofos opinam sobre o tema específico do “mistério”. Do que iremos tratar é do conceito de Filosofia e do filosofar, pois ambos caracterizam-se por terem uma certa relação com o que é misterioso.

Nos tempos culminantes da consciência filosófica – que aliás parecem estar chegando ao fim –, alguma vez esqueceu-se de que os conceitos de Filosofia e de filosofar são, desde a sua origem, conceitos mais negativos que positivos, ou pelo menos foram interpretados como tais. Não preciso entrar aqui em detalhes sobre a conhecida história de Pitágoras. Segundo uma antiga lenda, foi esse grande mestre do século VI antes de Cristo quem pela primeira vez empregou a palavra “filósofo”. Só Deus pode ser chamado sábio: o homem só pode ser – quando muito – um amoroso buscador da sabedoria.

Platão também fala da contraposição entre filosofia e sabedoria, entre sophos e philosophos. No diálogo Fedro, põe em boca de Sócrates: “Sólon e Homero não devem ser chamados de sábios. Isso parece-me, ó Fedro, grande demais: é algo que só corresponde a um Deus. Mas parece-me correto e adequado chamá-los de filósofos”. E no Banquete, Diótima pronuncia umas palavras que expressam, em formulação negativa, os mais profundos pensamentos platônicos: “Nenhum dentre os deuses filosofa”.

Pois bem: o que isso significa, senão que a Filosofia e o filosofar foram, desde o princípio, entendidos como algo que não é sophia, que não é sabedoria, que não é conhecimento, que não é compreensão, que não é posse da verdade?

Essa maneira de pensar não é uma particularidade pitagórico-platônica. Com efeito, Aristóteles – o fundador de um filosofar crítico-científico – vai pelo mesmo caminho, pelo menos no que se refere à Metafísica, a mais genuína disciplina filosófica. E Tomás de Aquino, em seu magistral comentário à Metafísica de Aristóteles, segue de forma escrupulosamente fiel a opinião do genial grego ao dizer que a verdade metafísica sobre o ser não é, em sentido estrito, algo cuja posse corresponda ao homem (non competi homini ut possessio): não é adquirida pelo homem como propriedade, mas como empréstimo (sicut aliquid mutuatum). E acrescenta a isso uma base especulativa cuja profundidade mal se consegue alcançar: diz que somente podemos enunciá-la. Tomás de Aquino diz que a sabedoria não pode ser uma propriedade do homem precisamente porque é desejada por si mesma; e aquilo que podemos possuir plenamente não nos pode proporcionar a satisfação de ser desejado por si mesmo: “unicamente é buscada por si mesma aquela sabedoria que não é suscetível de ser possuída pelo homem”.

Não é que o homem – segundo a opinião de Aristóteles e de São Tomás de Aquino – esteja separado da sophia ou não tenha nenhuma relação com ela. A questão filosófica incide precisamente na sabedoria: o filosofar consiste precisamente em inquirir os mais profundos fundamentos do conhecimento. Pois bem (e isso é algo que precisa ser dito da maneira mais rotunda): nós não somente não possuímos esse conhecimento como também está descartado que o possamos possuir, de modo que também não iremos possuí-lo no futuro. Sem dúvida estamos em condições de obter respostas para as questões das ciências particulares, mas tais respostas não nos podem proporcionar a satisfação de serem buscadas “por si mesmas”.

A essência das questões filosóficas consiste em indagar a última essência, o significado extremo, a raiz mais profunda de uma realidade. O modelo de uma autêntica questão filosófica é: Qual é o último e decisivo fundamento do homem, da verdade do conhecimento, da vida? Perguntas deste tipo apontam, por sua própria natureza, para uma resposta que pretende conter plenamente a essência daquilo pelo qual se pergunta. Como diz São Tomás (ao definir o que é compreender), tais perguntas requerem respostas nas quais a coisa é “conhecida a tal ponto que chega a ser reconhecida em si mesma”.

Com outras palavras: a resposta adequada a uma questão filosófica teria que ser uma resposta que esgotasse por completo o objeto; nela, a cognoscibilidade do real pelo que se pergunta teria que ser averiguada exaustivamente, de modo a não restar nada desconhecido, nada que não esteja já conhecido. Digo que essa seria uma resposta “adequada” para uma questão filosófica – “adequada” significa aqui que a resposta corresponde formalmente à pergunta –, mas devemos lembrar que a pergunta refere-se à última essência e às mais profundas raízes de uma realidade: a questão filosófica, pela sua própria natureza, pugna por uma resposta do conhecimento em sentido estrito. Mas, como diria São Tomás, nós só estamos em condições de compreender desse modo aquilo que é obra nossa (desde que seja realmente obra nossa: o mármore, por exemplo, não é ele mesmo obra do escultor).

Tudo o que dissemos até aqui nos faz compreender que a questão filosófica, por sua própria natureza, não pode ser respondida no mesmo nível em que é formulada. Nesse sentido, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino estão de perfeito acordo com a grande tradição de todo o gênero humano. Seria uma aberração racionalista perante a philosophia perennis lt;“filosofia perene”gt; querer passar por cima desse elemento negativo no conceito original de Filosofia. Lancemos novamente um olhar sobre a tradição da philosophia perennis, para ver se nela se mantém essa estranha e até irritante asserção.

Falando de maneira solene e, por assim dizer, pouco aristotélica, Aristóteles afirma que a questão do ser permanece aberta “em todos os tempos, agora e sempre”. São Tomás comenta essa frase da Metafísica não só sem fazer-lhe nenhuma objeção, como tornando-a sua. Ele mesmo diz, por exemplo, que o esforço de todos os filósofos não conseguiu ainda fazer vislumbrar a essência nem mesmo de um mosquito. A frase reaparece com freqüência na Suma Teológica e nas Questões disputadas: não conhecemos as diferenças essenciais entre as coisas, o que significa que não conhecemos as coisas em si mesmas; é essa a razão pela qual não lhes podemos dar nomes especiais. São Tomás fala inclusive da imbecilitas intellectus nostri, da idiotice do nosso espírito, que não consegue “ler” nas coisas naturais o que elas manifestam a respeito de Deus.

Parece realmente que São Tomás não somente estabeleceu – numa formulação extrema – os fundamentos de uma Teologia negativa (“o máximo conhecimento de Deus que o homem pode alcançar é o de saber que não conhecemos a Deus já que a Sua essência está acima de tudo o que dEle conhecemos”), como também estabeleceu o princípio de uma Filosofia negativa (cujo enunciado em palavras presta-se facilmente a abusos e a interpretações errôneas, mais ainda do que a Teologia negativa).

Essa particularidade essencial que se dá numa questão filosófica – o fato de ela exigir uma resposta que não pode ser dada de forma adequada – é uma diferença com relação às questões que se formulam nas ciências exatas. As ciências particulares têm, por princípio, uma relação completamente diferente com o seu objeto. Por sua própria natureza, as ciências particulares formulam as suas questões de tal forma que podem ser adequadamente respondidas, ou que pelo menos não sejam por princípio irrespondíveis. Um dia a Medicina saberá qual é a origem do câncer. Mas a questão da essência do conhecimento, do espírito, da vida; a questão do significado último de todo esse mundo maravilhoso e terrível; todas essas questões jamais poderão ser respondidas filosoficamente de um modo definitivo, apesar de estarem formuladas filosoficamente.

Na genuína questão filosófica pergunta-se expressamente pelo conhecimento da causa suprema (o qual é simplesmente, como diz São Tomás, a essência da sabedoria), mas a Filosofia, porém, continuará estando à sua busca, permanecerá a caminho enquanto o homem e a própria Humanidade estiverem também a caminho, in statu viatoris lt;“em condição de viajantes”gt;. Por isso a pretensão de ter encontrado a “fórmula do mundo” pode ser qualificada, sem nenhum reparo, de não-filosófica. Forma parte da essência da Filosofia o fato de ela nunca poder oferecer um “sistema fechado”, em que “fechado” significaria que no seu seio pode-se incluir adequadamente toda a realidade do mundo.

O que ocorre com esse elemento “negativo” da Filosofia, quando se trata da Filosofia cristã? É sabido – segundo uma opinião bastante difundida – que a Filosofia cristã realmente supera a Filosofia não-cristã pelo fato de poder oferecer respostas rotundas e definitivas.

Isso, porém, não é bem assim. De fato, a Filosofia cristã oferece alguma vantagem, ou pelo menos está em condições de oferecê-la, mas não porque disponha de respostas concludentes e definitivas sobre questões filosóficas. Em que consiste, pois, tal vantagem? Garrigou-Lagrange, no seu belo livro sobre o sentido do mistério, diz que a característica diferencial da Filosofia cristã é justamente não dispor de soluções concludentes, mas possuir no mais alto grau – mais do que em qualquer outra Filosofia – o sentido do mistério. Perguntemo-nos uma vez mais em que consiste essa diferença: como pode dar-se uma superioridade na Filosofia cristã, se nem mesmo ela pode oferecer uma solução definitiva para os problemas?

Pois bem: a superioridade de que aqui se trata consiste num maior grau de verdade. O maior grau de verdade reside em descobrir que o mundo e o próprio ser são um mistério e, portanto, inesgotáveis. Quanto mais profundamente se reconheça a estrutura da realidade, tanto mais claramente se verá que a realidade é um mistério. E o fundamento dessa inesgotabilidade é este: o mundo é criação, é uma criatura. O mundo reconhece a sua origem no reconhecimento incompreensível e criador de Deus. O fato de serem fruto do conhecimento criador divino – que supera absoluta e infinitamente o conhecimento humano – é o que dá a todos os seres esse seu caráter de inesgotabilidade e de mistério, que se manifesta de forma tanto mais convincente quanto mais profundamente sejam considerados.

Entendemos então por que a experiência mostra que a realidade, por ser criatura, é inesgotável, ao conhecê-la e compreendê-la muito mais profundamente que um sistema de teses lúcido e aparentemente fechado.

Mas ao nos remontarmos à verdade teológica, não acaba sendo possível a solução definitiva? Perante essa pergunta, é possível formular a seguinte contra-pergunta: O sentido da Teologia – o sentido do sagrado, por assim dizer – não estaria impedindo o pensamento humano de chegar a certas conclusões, cuja abstrata penetrabilidade talvez acarrete uma perigosa tentação e uma confusão, e que afinal não estariam de acordo com as múltiplas e misteriosas estruturas da realidade? Esse “impedimento” (que na verdade é um grande dom) faz com que a Filosofia cristã não seja mentalmente compreensível; ou, melhor dizendo: a complicação que aqui surge é precisamente uma outra característica diferencial da Filosofia cristã. Quando São Tomás se remonta aos argumentos teológicos, não o faz com a intenção de oferecer soluções definitivas: o que quer é romper as barreiras metodológicas que limitam tudo o que é “puramente filosófico”, e levar o autêntico ímpeto das questões filosóficas – superando as aporias do pensamento natural – para o terreno do mistério.

Antes de mais nada, falar de mistério não significa falar de algo exclusivamente negativo: não é referir-se somente à obscuridade. Olhando bem, mistério não significa obscuridade de modo nenhum: significa luz, mas uma luz de tal plenitude que nem o conhecimento humano nem a linguagem humana a podem captar na sua totalidade. Mistério não significa que o esforço do pensamento choca-se contra um muro. Significa, pelo contrário, que esse esforço atreve-se a penetrar naquilo que não se pode abarcar com a vista: o espaço – ilimitado em largura e profundidade – da Criação.

A aspiração e a vantagem da Filosofia cristã apóia-se, portanto, no fato de sentir-se chamada a conseguir uma visão mais profunda da verdade, na plenitude e na inesgotabilidade próprias da verdade. Quanto mais profunda seja a penetração na sua plenitude, tanto mais profunda será a visão da sua inesgotabilidade. A convicção da insuficiência do conhecimento humano cresce na mesma medida em que cresce esse mesmo conhecimento.

A Ciência pode por si mesma estabelecer limites no terreno do conhecimento positivo. Mas a Filosofia, cuja natureza é questionar as raízes do real e assim penetrar em seu caráter criatural, enfrenta-se formalmente com o incompreensível, com a criatura enquanto mistério.

Tradução: Quadrante

 

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